Dias com árvores: O aceno das couves pela manhã

19-12-2009
marcar artigo


Mesmo sem a ajuda da SRU, a minha rua tem-se reabilitado. Não chegará a cem metros de extensão, e já foi uma humilde travessa; ascendeu a rua quando, pela mudança de nome, se quis homenagear um obscuro professor universitário. Um único prédio ocupa todo um lado da rua; do outro lado, casas de três ou quatro pisos, decrépitas quando as conheci, têm vindo a ser metodicamente reconstruídas. Numa delas, com a tinta amarela ainda brilhante, há no último piso uma varanda com floreiras, mas não são flores nem arbustos ornamentais que lá de cima nos acenam; são antes taludas couves que, além de fornecerem a sopa de cada dia, terão já guarnecido o bacalhau da última consoada. Ainda que eu seja também um praticante diário da sopa - mas não da sopa do vizinho, que não conheço e nunca me convidou para a sua mesa -, confesso que preferia, pela manhã, ver outra coisa a saudar-me da varanda em frente que não essas ramalhudas pencas. Ao lado das couves, a figura em cerâmica vermelha, de um puto rechonchudo carregando um peixe ao ombro, não é alegria que baste para os meus olhos.As couves na varanda poderão ser uma reminiscência aldeã na cidade, o quintal possível de alguém que pôde outrora amanhar o seu quinhão de terreno. Fantasiando um pouco, poderiam também ser o resultado de uma prática já com vários anos mas cada vez mais em voga: refiro-me às hortas pedagógicas. Na Quinta do Covelo, por exemplo, e se forem por diante os projectos divulgados há quinze dias na imprensa, haverá hortas pedagógicas capazes de alimentar bairros inteiros. Não quero mal-entendidos: defendo a existência de tais hortas, e sei bem que a desgraciosa couve não é o único vegetal que as crianças cultivam nos seus talhões. O que contesto é que se queira despertar as crianças para o fascínio das plantas pela via única do utilitarismo alimentar, ignorando a estética e a beleza. Por que não se ensina jardinagem às crianças? Não seria, para grande parte delas, mais atraente, e até mais útil na vida adulta que vai ser a sua, compor um canteiro e ver brotar as flores do que cultivar tomates e rabanetes? Talvez falte só um nome chamativo para motivar políticos, professores e projectistas: que floresçam então muitos jardins didácticos para proveito de crianças e adultos.Fotos: castanheiros da Quinta do Covelo em Dezembro de 2006; Narcissus tazetta


Mesmo sem a ajuda da SRU, a minha rua tem-se reabilitado. Não chegará a cem metros de extensão, e já foi uma humilde travessa; ascendeu a rua quando, pela mudança de nome, se quis homenagear um obscuro professor universitário. Um único prédio ocupa todo um lado da rua; do outro lado, casas de três ou quatro pisos, decrépitas quando as conheci, têm vindo a ser metodicamente reconstruídas. Numa delas, com a tinta amarela ainda brilhante, há no último piso uma varanda com floreiras, mas não são flores nem arbustos ornamentais que lá de cima nos acenam; são antes taludas couves que, além de fornecerem a sopa de cada dia, terão já guarnecido o bacalhau da última consoada. Ainda que eu seja também um praticante diário da sopa - mas não da sopa do vizinho, que não conheço e nunca me convidou para a sua mesa -, confesso que preferia, pela manhã, ver outra coisa a saudar-me da varanda em frente que não essas ramalhudas pencas. Ao lado das couves, a figura em cerâmica vermelha, de um puto rechonchudo carregando um peixe ao ombro, não é alegria que baste para os meus olhos.As couves na varanda poderão ser uma reminiscência aldeã na cidade, o quintal possível de alguém que pôde outrora amanhar o seu quinhão de terreno. Fantasiando um pouco, poderiam também ser o resultado de uma prática já com vários anos mas cada vez mais em voga: refiro-me às hortas pedagógicas. Na Quinta do Covelo, por exemplo, e se forem por diante os projectos divulgados há quinze dias na imprensa, haverá hortas pedagógicas capazes de alimentar bairros inteiros. Não quero mal-entendidos: defendo a existência de tais hortas, e sei bem que a desgraciosa couve não é o único vegetal que as crianças cultivam nos seus talhões. O que contesto é que se queira despertar as crianças para o fascínio das plantas pela via única do utilitarismo alimentar, ignorando a estética e a beleza. Por que não se ensina jardinagem às crianças? Não seria, para grande parte delas, mais atraente, e até mais útil na vida adulta que vai ser a sua, compor um canteiro e ver brotar as flores do que cultivar tomates e rabanetes? Talvez falte só um nome chamativo para motivar políticos, professores e projectistas: que floresçam então muitos jardins didácticos para proveito de crianças e adultos.Fotos: castanheiros da Quinta do Covelo em Dezembro de 2006; Narcissus tazetta

marcar artigo