Octávio V. Gonçalves: Redução dos vencimentos: a anatomia de uma Taxa Pinóquio

21-01-2011
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Nem o esbanjamento de milhões de euros em pareceres jurídicos permitiu ao governo encontrar uma solução legal, séria e transparente para implementar a tecnicidade requerida pela decisão de reduzir, a título definitivo, o vencimento base dos funcionários públicos.
Receoso dos vícios de inconstitucionalidade que a imposição unilateral de um corte salarial sempre acarretaria, o governo optou, ao arrepio do conceito por si adoptado e divulgado de "cortes salariais", pelo recurso à aplicação de uma "taxa de redução remuneratória", transferindo a problemática jurídica para o domínio do direito tributário.
Tendo em conta, quer a jurisprudência do Tribunal Constitucional (referencio em baixo partes de dois acórdãos, onde se estabelece o entendimento concordante do conceito de "taxa") e o consenso académico na conceptualização jurídica do termo "taxa" - aqui claramente inaplicáveis, quer as habilidades recorridas para dar a aparência de manutenção de um vencimento base (quem sabe, para as estatísticas internacionais) e para travestir um corte salarial efectivo e permanente numa solução aldrabada em forma de taxação desprovida de relação bilateral, não tenho dúvidas que estamos perante uma conduta manhosa que só poderia ter como resultado uma espécie de Taxa Pinóquio, bem ao estilo do modus operandi do chefe do governo.
Dos acórdãos e da literatura jurídica decorre, qualquer que seja a circunstância, que a aplicação de uma taxa pressupõe necessariamente a utilização (ocorrida ou passível de ocorrer) de um bem ou de um serviço, pelo que o facto tributário da taxa deve ser adequado a revelar uma contraprestação específica (individualizada) a favor do sujeito a quem ela é exigida, além de que o valor da taxa tem de equivaler ao benefício (económico) auferido pelo sujeito passivo.
Obviamente, o direito ao salário não se enquadra na noção de utilização de bem ou serviço, nem o governo procedeu ou procede à identificação e especificação desse bem ou serviço.
Confirma, pois, este procedimento a forma ardilosa e pouco transparente que este governo utiliza para se relacionar com os cidadãos e, sobretudo, para, em desespero de causa, procurar resolver os problemas graves que a sua própria desgovernação gera e/ou acentua.

Taxa: consiste em receitas públicas determinadas por lei, a favor de pessoas colectivas de direito público, resultantes da utilização de serviços e/ou bens públicos e da concessão de autorizações administrativas. Constituem desta forma uma contrapartida da utilização de algo, pelo que configuram uma relação bilateral entre os sujeitos envolvidos e de forma voluntária.

Acórdão n.º 177/2010 - Processo n.º 742/09

ACÓRDÃO Nº 354/98 (2ª Secção do Tribunal Constitucional):
"(...)
Importa, então começar por estabelecer a distinção entre taxa e imposto.
Pois bem: a taxa distingue-se do imposto pelo seu carácter bilateral ou sinalagmático, em contraste com o carácter unilateral deste.O imposto é, na verdade, uma "prestação pecuniária, coactiva e unilateral, sem o carácter de sanção, exigida pelo Estado com vista à realização de fins públicos" [cf. JOSÉ JOAQUIM TEIXEIRA RIBEIRO, (Lições de Finanças Públicas, Coimbra, 1977, páginas 262 e 267).A taxa - diz o mesmo autor - é a "quantia coactivamente paga pela utilização individualizada de bens semipúblicos" (ou seja, de bens que "satisfazem, além de necessidades colectivas, necessidades individuais, isto é, necessidades de satisfação activa, necessidades cuja satisfação exige a procura das coisas pelo consumidor") "ou como o preço autoritariamente fixado de tal utilização". No entanto, nem sempre é precisa a efectiva utilização dos bens para serem devidas taxas. Casos há (o caso das propinas, por exemplo), em que o pagamento das taxas precede a utilização dos bens. As taxas são, então, devidas pela simples possibilidade dessa utilização. Por isso, se os bens não vierem a ser utilizados, não haverá lugar à restituição das quantias pagas. Mas, mesmo nestes casos em que o pagamento precede a utilização, "a exigência das taxas continua [...] exclusivamente relacionada com a utilização dos bens", já que são "conveniências da cobrança" que justificam que as taxas sejam pagas em momento anterior ao da efectiva utilização dos bens.Dado que a obrigação de as pagar não é negocialmente assumida, as taxas são sempre receitas coactivas - e, portanto, receitas de direito público. As receitas patrimoniais, ao contrário, são negocialmente assumidas (e, assim, pagas voluntariamente), pelo que constituem receitas de direito privado.As utilizações dos bens por que se pagam taxas, "essas podem ser voluntárias ou obrigatórias. E as utilizações obrigatórias, por seu turno, ainda podem ser ou não solicitadas" (é deste último tipo a taxa de justiça paga pelo réu condenado no processo).Geralmente, porém, a utilização dos bens semipúblicos é voluntária.As taxas são normalmente inferiores ao custo dos bens. Mas há taxas iguais a esse custo e, até, superiores a ele. Mas, ainda neste último caso, em que nos encontramos perante "preços lucrativos", as taxas não se "transmudam em receitas patrimoniais, visto continuarem coactivas, nem constituem impostos na parte excedente ao custo, visto manterem o seu carácter bilateral" [cf. "Noção Jurídica de Taxa" (Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 117º, páginas 289 e seguintes)].Por isso - sublinhou-se no acórdão nº 640/95 e repetiu-se no acórdão nº 1140/96 (publicados no Diário da República, II série, de 20 de Janeiro de 1996 e de 10 de Fevereiro de 1997, respectivamente) -, em princípio, são insindicáveis por este Tribunal as opções que o legislador (ou a Administração) fizerem na fixação dos montantes das taxas. Este Tribunal só deve cassar tais opções, "se, entre o montante do tributo e o custo do bem ou serviço prestado, houver uma desproporção intolerável - se a taxa for de montante manifestamente excessivo".[Sobre os conceitos de taxa e de imposto, cf., na jurisprudência deste Tribunal, entre outros, o acórdão nº 497/89 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14º volume, páginas 227 e seguintes), e, por último, o acórdão nº 1140/96 (acabado de citar), no qual se indica muita outra doutrina]. (...)".

Nem o esbanjamento de milhões de euros em pareceres jurídicos permitiu ao governo encontrar uma solução legal, séria e transparente para implementar a tecnicidade requerida pela decisão de reduzir, a título definitivo, o vencimento base dos funcionários públicos.
Receoso dos vícios de inconstitucionalidade que a imposição unilateral de um corte salarial sempre acarretaria, o governo optou, ao arrepio do conceito por si adoptado e divulgado de "cortes salariais", pelo recurso à aplicação de uma "taxa de redução remuneratória", transferindo a problemática jurídica para o domínio do direito tributário.
Tendo em conta, quer a jurisprudência do Tribunal Constitucional (referencio em baixo partes de dois acórdãos, onde se estabelece o entendimento concordante do conceito de "taxa") e o consenso académico na conceptualização jurídica do termo "taxa" - aqui claramente inaplicáveis, quer as habilidades recorridas para dar a aparência de manutenção de um vencimento base (quem sabe, para as estatísticas internacionais) e para travestir um corte salarial efectivo e permanente numa solução aldrabada em forma de taxação desprovida de relação bilateral, não tenho dúvidas que estamos perante uma conduta manhosa que só poderia ter como resultado uma espécie de Taxa Pinóquio, bem ao estilo do modus operandi do chefe do governo.
Dos acórdãos e da literatura jurídica decorre, qualquer que seja a circunstância, que a aplicação de uma taxa pressupõe necessariamente a utilização (ocorrida ou passível de ocorrer) de um bem ou de um serviço, pelo que o facto tributário da taxa deve ser adequado a revelar uma contraprestação específica (individualizada) a favor do sujeito a quem ela é exigida, além de que o valor da taxa tem de equivaler ao benefício (económico) auferido pelo sujeito passivo.
Obviamente, o direito ao salário não se enquadra na noção de utilização de bem ou serviço, nem o governo procedeu ou procede à identificação e especificação desse bem ou serviço.
Confirma, pois, este procedimento a forma ardilosa e pouco transparente que este governo utiliza para se relacionar com os cidadãos e, sobretudo, para, em desespero de causa, procurar resolver os problemas graves que a sua própria desgovernação gera e/ou acentua.

Taxa: consiste em receitas públicas determinadas por lei, a favor de pessoas colectivas de direito público, resultantes da utilização de serviços e/ou bens públicos e da concessão de autorizações administrativas. Constituem desta forma uma contrapartida da utilização de algo, pelo que configuram uma relação bilateral entre os sujeitos envolvidos e de forma voluntária.

Acórdão n.º 177/2010 - Processo n.º 742/09

ACÓRDÃO Nº 354/98 (2ª Secção do Tribunal Constitucional):
"(...)
Importa, então começar por estabelecer a distinção entre taxa e imposto.
Pois bem: a taxa distingue-se do imposto pelo seu carácter bilateral ou sinalagmático, em contraste com o carácter unilateral deste.O imposto é, na verdade, uma "prestação pecuniária, coactiva e unilateral, sem o carácter de sanção, exigida pelo Estado com vista à realização de fins públicos" [cf. JOSÉ JOAQUIM TEIXEIRA RIBEIRO, (Lições de Finanças Públicas, Coimbra, 1977, páginas 262 e 267).A taxa - diz o mesmo autor - é a "quantia coactivamente paga pela utilização individualizada de bens semipúblicos" (ou seja, de bens que "satisfazem, além de necessidades colectivas, necessidades individuais, isto é, necessidades de satisfação activa, necessidades cuja satisfação exige a procura das coisas pelo consumidor") "ou como o preço autoritariamente fixado de tal utilização". No entanto, nem sempre é precisa a efectiva utilização dos bens para serem devidas taxas. Casos há (o caso das propinas, por exemplo), em que o pagamento das taxas precede a utilização dos bens. As taxas são, então, devidas pela simples possibilidade dessa utilização. Por isso, se os bens não vierem a ser utilizados, não haverá lugar à restituição das quantias pagas. Mas, mesmo nestes casos em que o pagamento precede a utilização, "a exigência das taxas continua [...] exclusivamente relacionada com a utilização dos bens", já que são "conveniências da cobrança" que justificam que as taxas sejam pagas em momento anterior ao da efectiva utilização dos bens.Dado que a obrigação de as pagar não é negocialmente assumida, as taxas são sempre receitas coactivas - e, portanto, receitas de direito público. As receitas patrimoniais, ao contrário, são negocialmente assumidas (e, assim, pagas voluntariamente), pelo que constituem receitas de direito privado.As utilizações dos bens por que se pagam taxas, "essas podem ser voluntárias ou obrigatórias. E as utilizações obrigatórias, por seu turno, ainda podem ser ou não solicitadas" (é deste último tipo a taxa de justiça paga pelo réu condenado no processo).Geralmente, porém, a utilização dos bens semipúblicos é voluntária.As taxas são normalmente inferiores ao custo dos bens. Mas há taxas iguais a esse custo e, até, superiores a ele. Mas, ainda neste último caso, em que nos encontramos perante "preços lucrativos", as taxas não se "transmudam em receitas patrimoniais, visto continuarem coactivas, nem constituem impostos na parte excedente ao custo, visto manterem o seu carácter bilateral" [cf. "Noção Jurídica de Taxa" (Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 117º, páginas 289 e seguintes)].Por isso - sublinhou-se no acórdão nº 640/95 e repetiu-se no acórdão nº 1140/96 (publicados no Diário da República, II série, de 20 de Janeiro de 1996 e de 10 de Fevereiro de 1997, respectivamente) -, em princípio, são insindicáveis por este Tribunal as opções que o legislador (ou a Administração) fizerem na fixação dos montantes das taxas. Este Tribunal só deve cassar tais opções, "se, entre o montante do tributo e o custo do bem ou serviço prestado, houver uma desproporção intolerável - se a taxa for de montante manifestamente excessivo".[Sobre os conceitos de taxa e de imposto, cf., na jurisprudência deste Tribunal, entre outros, o acórdão nº 497/89 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14º volume, páginas 227 e seguintes), e, por último, o acórdão nº 1140/96 (acabado de citar), no qual se indica muita outra doutrina]. (...)".

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