O Cachimbo de Magritte: Quando comíamos com talheres

07-08-2010
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Há uma nova epidemia que se propaga pelos Estados europeus. É uma praga de despotismo legislativo, que reduz sistematicamente a esfera de privacidade, alegando sempre a benignidade dos fins como justificação para os meios. O despotismo legislativo viaja depressa e propaga-se através dos aeroportos. Na era da “guerra ao terrorismo” (como é que se combate um conceito?) é nos aeroportos que os governos testam os limites da tolerância dos “súbditos” e ensaiam novas formas de submissão.Os aeroportos são cada vez mais semelhantes a prisões: espaços de vigilância intensa e permanente, destinada a detectar e isolar qualquer comportamento “suspeito”. Em nome do “terror” tornaram-se habituais as filas de pessoas, que à ordem dos esbirros se despem, descalçam e são revistadas. Mas anteontem havia algo de diferente: muitas das pessoas imobilizadas na fila de inspecção faziam-se acompanhar por sacos de plástico transparentes. Lá dentro a banalidade dos objectos quotidianos cuja exposição pública é uma abdicação humilhante à mais elementar privacidade. É o resultado visível das novas medidas de “segurança” no espaço aéreo europeu. A bem de todos e de cada um, evidentemente.Este triste espectáculo não passaria despercebido a Foucault. A sua visão peculiar (e insuportável) da história ocidental assenta num modo de exercício do poder, onde o objectivo primordial é preservar a “normalidade” e submeter os que exibem comportamentos desviantes através da vigilância e da punição. Nos hospícios e prisões Foucault via o funcionamento transparente deste princípio de submissão política. A “transparência” tinha, aliás, um papel proeminente na teoria de Foucault, que considerava o Panopticon desenhado pelos Bentham como uma metáfora dos efeitos sociais do poder político: um espaço delimitado, onde não há como, nem por onde escapar; onde todos se observam mutuamente e a “norma” de conduta é interiorizada e aceite. O aspecto mais interessante é que o efeito disciplinador dos mecanismos de controlo tende a dispensar a coerção: precisamente porque espaços sociais como os aeroportos são intensamente vigiados, raramente é necessário governá-los como prisões.Não há nada de “benigno” no crescente abuso do poder legislativo em nome da "segurança". As medidas indiscriminadas que estão a transformar os aeroportos em Panopticons limitam de forma intolerável a privacidade e a folha de parra da “guerra ao terror” é curta para tapar tanto descaramento legislativo. O mais inquietante é que os governos e a generalidade das pessoas aparentam acomodar-se facilmente às “medidas de excepção”. No caso do poder político-burocrático não surpreende, mas a acomodação passiva pelas pessoas aos abusos de que são alvo sugere que os seus limites de tolerância à intromissão na esfera de privacidade podem ser “redefinidos” de forma permanente. Os aeroportos são um campo experimental; sem reacção nem protesto, a anormalidade tenderá a tornar-se “normal” e o “estado de excepção” poderá muito bem ser o período de adaptação a mais uma redução permanente da privacidade.Um dos primeiros a abordar “cientificamente” as implicações políticas da psicologia humana foi Thomas Hobbes. O medo era a emoção a ter em conta, especialmente o medo da humilhação extrema —“a morte violenta às mãos de outro homem”— que justificava racionalmente a instituição colectiva de um poder político com autoridade ilimitada. É ainda o "medo de uma morte violenta" que os governos invocam como justificação para ausência de limites ao despotismo legislativo. As realidades do seu tempo e as certezas cruas de Hobbes sobre a hierarquia “natural” da força física na espécie humana impediram-no de considerar a verdadeira humilhação extrema: o medo de uma morte violenta às mãos de uma mulher armada com um frasco de Blédine. Na barbárie tardia do séc. XXI, o psicologismo mecanicista de Hobbes degenerou em farsa.Os estranhos mundos de Hobbes e de Foucault são insuportáveis porque neles não há, verdadeiramente, homens: há autómatos, incapazes de exercerem agência moral. Os instituidores do Leviathan são uma espécie de bonecos de corda, impelidos continuamente em busca de satisfação dos seus desejos desordenados, numa deturpação grotesca da lei do movimento natural. Incapazes de parar e confinados aos limites comportamentais do seu autismo social, só uma autoridade racional, brutal e ilimitada é susceptível de introduzir alguma ordem e garantir a segurança neste mundo. É nesta Utopia horrível que os espaços públicos hiper-vigiados se estão a tornar. Sem reacção, um dia pensaremos com uma mistura de desejo e incredulidade nos tempos em que não éramos “perigosos” quando comíamos com talheres. Welcome aboard.


Há uma nova epidemia que se propaga pelos Estados europeus. É uma praga de despotismo legislativo, que reduz sistematicamente a esfera de privacidade, alegando sempre a benignidade dos fins como justificação para os meios. O despotismo legislativo viaja depressa e propaga-se através dos aeroportos. Na era da “guerra ao terrorismo” (como é que se combate um conceito?) é nos aeroportos que os governos testam os limites da tolerância dos “súbditos” e ensaiam novas formas de submissão.Os aeroportos são cada vez mais semelhantes a prisões: espaços de vigilância intensa e permanente, destinada a detectar e isolar qualquer comportamento “suspeito”. Em nome do “terror” tornaram-se habituais as filas de pessoas, que à ordem dos esbirros se despem, descalçam e são revistadas. Mas anteontem havia algo de diferente: muitas das pessoas imobilizadas na fila de inspecção faziam-se acompanhar por sacos de plástico transparentes. Lá dentro a banalidade dos objectos quotidianos cuja exposição pública é uma abdicação humilhante à mais elementar privacidade. É o resultado visível das novas medidas de “segurança” no espaço aéreo europeu. A bem de todos e de cada um, evidentemente.Este triste espectáculo não passaria despercebido a Foucault. A sua visão peculiar (e insuportável) da história ocidental assenta num modo de exercício do poder, onde o objectivo primordial é preservar a “normalidade” e submeter os que exibem comportamentos desviantes através da vigilância e da punição. Nos hospícios e prisões Foucault via o funcionamento transparente deste princípio de submissão política. A “transparência” tinha, aliás, um papel proeminente na teoria de Foucault, que considerava o Panopticon desenhado pelos Bentham como uma metáfora dos efeitos sociais do poder político: um espaço delimitado, onde não há como, nem por onde escapar; onde todos se observam mutuamente e a “norma” de conduta é interiorizada e aceite. O aspecto mais interessante é que o efeito disciplinador dos mecanismos de controlo tende a dispensar a coerção: precisamente porque espaços sociais como os aeroportos são intensamente vigiados, raramente é necessário governá-los como prisões.Não há nada de “benigno” no crescente abuso do poder legislativo em nome da "segurança". As medidas indiscriminadas que estão a transformar os aeroportos em Panopticons limitam de forma intolerável a privacidade e a folha de parra da “guerra ao terror” é curta para tapar tanto descaramento legislativo. O mais inquietante é que os governos e a generalidade das pessoas aparentam acomodar-se facilmente às “medidas de excepção”. No caso do poder político-burocrático não surpreende, mas a acomodação passiva pelas pessoas aos abusos de que são alvo sugere que os seus limites de tolerância à intromissão na esfera de privacidade podem ser “redefinidos” de forma permanente. Os aeroportos são um campo experimental; sem reacção nem protesto, a anormalidade tenderá a tornar-se “normal” e o “estado de excepção” poderá muito bem ser o período de adaptação a mais uma redução permanente da privacidade.Um dos primeiros a abordar “cientificamente” as implicações políticas da psicologia humana foi Thomas Hobbes. O medo era a emoção a ter em conta, especialmente o medo da humilhação extrema —“a morte violenta às mãos de outro homem”— que justificava racionalmente a instituição colectiva de um poder político com autoridade ilimitada. É ainda o "medo de uma morte violenta" que os governos invocam como justificação para ausência de limites ao despotismo legislativo. As realidades do seu tempo e as certezas cruas de Hobbes sobre a hierarquia “natural” da força física na espécie humana impediram-no de considerar a verdadeira humilhação extrema: o medo de uma morte violenta às mãos de uma mulher armada com um frasco de Blédine. Na barbárie tardia do séc. XXI, o psicologismo mecanicista de Hobbes degenerou em farsa.Os estranhos mundos de Hobbes e de Foucault são insuportáveis porque neles não há, verdadeiramente, homens: há autómatos, incapazes de exercerem agência moral. Os instituidores do Leviathan são uma espécie de bonecos de corda, impelidos continuamente em busca de satisfação dos seus desejos desordenados, numa deturpação grotesca da lei do movimento natural. Incapazes de parar e confinados aos limites comportamentais do seu autismo social, só uma autoridade racional, brutal e ilimitada é susceptível de introduzir alguma ordem e garantir a segurança neste mundo. É nesta Utopia horrível que os espaços públicos hiper-vigiados se estão a tornar. Sem reacção, um dia pensaremos com uma mistura de desejo e incredulidade nos tempos em que não éramos “perigosos” quando comíamos com talheres. Welcome aboard.

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