O Cachimbo de Magritte: A mentira verdadeira

05-08-2010
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Pacheco Pereira assina na edição de hoje do Público a segunda parte da sua interpretação pessoal sobre a ocupação militar do Iraque em 2003. Neste segundo texto, a ‘mentira’ é o elemento central. Diz Pacheco Pereira que não houve mentira (sempre cuidadosamente rodeada de aspas) “porque Bush e Blair estavam convencidos de que as armas de destruição maciça existiam no Iraque”. Como, aliás, também estavam a generalidade dos serviços de intelligence ocidentais, mesmo daqueles que se opunham politicamente à ocupação; como estavam a generalidade dos responsáveis por instituições internacionais com envolvimento na matéria; como estavam até as chefias militares iraquianas. Onde a administração norte-americana e os seus aliados erraram, diz Pacheco Pereira, “foi em deixar centrar a sua argumentação nas armas, o que resultou das pressões de Colin Powell e do Departamento de Estado para obter uma resolução das Nações Unidas, e que levou à apresentação de "provas" que vieram a revelar-se inconsistentes ou falsas”.Não foi um erro: foi a consequência de uma mentira sobre a natureza da guerra e dos objectivos políticos a alcançar através dela. Mas para que se perceba que espécie de mentira e quais as consequências políticas é preciso descer ao níveis profundos do ground zero da estratégia, tarefa quase impossível pela extraordinária quantidade de entulho propagandístico na qual defensores e opositores a enterraram ao longo dos últimos cinco anos. Evidentemente, este não é o suporte adequado para um texto com esse objectivo, pelo que me vou limitar a duas observações.Primeiro, a convicção generalizada de que o regime iraquiano dispunha de arsenais químicos, biológicos e de um programa activo de desenvolvimento de armamento nuclear exclui a tese conspiratória da mentira. Afirmar o contrário não é ‘só’ inconsistente com a evidência factual disponível e com os melhores trabalhos de investigação histórica e jornalística entretanto produzidos. É também inconsistente com a lógica mais elementar: nenhum governo advoga nas mais altas instâncias internacionais sobre a necessidade urgente de uma invasão militar cuja legalidade é duvidosa mesmo para alguns dos seus defensores, sabendo de antemão que o argumento em que funda a reivindicação de legitimidade política (e moral) é falso. Nenhuma liderança militar racional prepara uma operação da dimensão da Operation Iraqi Freedom condicionando o plano a uma contingência (ataques químicos ou biológicos do inimigo) que lhe causa desvantagens tácticas, psicológicas e financeiras, sabendo que o inimigo não dispõe de tal armamento. Nenhum governante no seu juízo perfeito gasta mais de mil milhões de dólares –o valor actualizado estimado do custo total de busca de WMD’s no Iraque após 2003– procurando o que sabe que não existe. Não é surpreendente que isto não desencoraje muitos dos opositores à ocupação do Iraque: a histeria irracional (‘eles’ mentem!) é impermeável à argumentação lógica.Segundo, houve de facto uma mentira. Uma mentira que excede os limites difusos do imperativo da ‘razão de Estado’, que Pacheco Pereira invoca quando diz que “todos os governos democráticos a praticam”. Uma mentira cujas consequências políticas são graves e permanecem como condicionante na disputa política das presidenciais americanas. A administração norte-americana eleita em 2000 nunca foi uma entidade monolítica comandada por neoconservadores, nem a resposta política aos ataques de 11 de Setembro foi ‘neoconservadora’. A facção neoconservadora (Wolfowitz, Perle, Woolsey) só tomou o controlo político das operações em 2002, assumindo a preparação de um plano de invasão militar do Iraque, um plano que foi sempre justificado como uma guerra preemptiva e prudente (Richard Perle disse muito claramente: “the casus belli is that we know Saddam Hussein possesses chemical and biological weapons” e relatórios britânicos de intelligence chegaram a sugerir que os arsenais iraquianos poderiam ser mobilizados “em 45 minutos”) seguida de um processo de ‘democratização’, onde o papel das forças militares era pouco claro, mas presumia-se que se resumiria a uma presença limitada e dissuasora de instabilidade.Toda a conduta justificável à luz da razão de Estado, incluindo a mentira, terá de ser demonstrada como protectora do interesse nacional. Ora a guerra do Iraque veio a revelar-se preventiva e imprudente, ao comprometer recursos militares e financeiros numa guerra a prazo indefinido, sem que tal tivesse sido claramente explicitado, debatido e validado politicamente. Mais grave ainda: a presidência norte-americana agiu sempre como se não fosse esse o caso quando sabia perfeitamente que os objectivos políticos que tinha estabelecido exigiam um envolvimento militar a prazo indefinido. Quando George W. Bush declarou, em Maio de 2003, a bordo de um porta-aviões americano o fim das principais operações de combate, fê-lo em frente a um estandarte com a inscrição “Mission Accomplished”. Bush sabia que não se tratava de "missão cumprida": a missão era outra —e comprida. É esta a essência da mentira politicamente relevante. O número de baixas até então não chegava à centena e meia; hoje já se ultrapassaram os 4000 mortos. Este preço de sangue e de dinheiro pago pela coligação ocidental no Iraque não foi previsto e viola gravemente o princípio da prudência que deve presidir à condução dos assuntos de Estado, sobretudo porque havia alternativas à ocupação militar do Iraque. Daí que seja impossível tratar a falta de honestidade política como justificável à luz da razão de Estado. John McCain, cuja grandeza política é incomparavelmente superior à do actual presidente, está sob pressão por ter sido simplesmente honesto e responsável, admitindo que a presença militar americana no Iraque –e não a guerra, como falsamente reclamam os Democratas– se poderá prolongar por várias décadas. É ainda o preço da mentira política de Bush.Nota final: no artigo “Rumsfeldiana”, cujo título é uma derivação de um notório ‘filme de conspiração’ (Syriana) mencionei a importância de se compreender a ‘mentira verdadeira’. Rumsfeld foi um dos rostos políticos da guerra do Iraque, não foi de modo algum o único nem sequer o principal responsável. Mereceu o ‘destaque’ do título por essa visibilidade e pela sequência de erros clamorosos que ainda hoje são sentidos. A título de exemplo, quando se iniciaram os saques de Bagdad, em vez de perceber a importância crucial de assegurar a segurança civil para a confiança no Leviathan americano, Rumsfeld disse simplesmente: “stuff happens!”. Ao secretário de Defesa norte-americano exige-se mais do que a passividade introspectiva de uma personagem de David Mamet. Ironicamente, o saque do Museu Nacional de Bagdad é ainda hoje uma das principais fontes de receita dos insurgentes iraquianos: stuff does happen. Richard Perle garantia: we know. Não sabia e também não foram os known unknowns de Rumsfeld que se revelaram trágicos: foi, como disse Mark Twain, what you think you know and it isn’t so.


Pacheco Pereira assina na edição de hoje do Público a segunda parte da sua interpretação pessoal sobre a ocupação militar do Iraque em 2003. Neste segundo texto, a ‘mentira’ é o elemento central. Diz Pacheco Pereira que não houve mentira (sempre cuidadosamente rodeada de aspas) “porque Bush e Blair estavam convencidos de que as armas de destruição maciça existiam no Iraque”. Como, aliás, também estavam a generalidade dos serviços de intelligence ocidentais, mesmo daqueles que se opunham politicamente à ocupação; como estavam a generalidade dos responsáveis por instituições internacionais com envolvimento na matéria; como estavam até as chefias militares iraquianas. Onde a administração norte-americana e os seus aliados erraram, diz Pacheco Pereira, “foi em deixar centrar a sua argumentação nas armas, o que resultou das pressões de Colin Powell e do Departamento de Estado para obter uma resolução das Nações Unidas, e que levou à apresentação de "provas" que vieram a revelar-se inconsistentes ou falsas”.Não foi um erro: foi a consequência de uma mentira sobre a natureza da guerra e dos objectivos políticos a alcançar através dela. Mas para que se perceba que espécie de mentira e quais as consequências políticas é preciso descer ao níveis profundos do ground zero da estratégia, tarefa quase impossível pela extraordinária quantidade de entulho propagandístico na qual defensores e opositores a enterraram ao longo dos últimos cinco anos. Evidentemente, este não é o suporte adequado para um texto com esse objectivo, pelo que me vou limitar a duas observações.Primeiro, a convicção generalizada de que o regime iraquiano dispunha de arsenais químicos, biológicos e de um programa activo de desenvolvimento de armamento nuclear exclui a tese conspiratória da mentira. Afirmar o contrário não é ‘só’ inconsistente com a evidência factual disponível e com os melhores trabalhos de investigação histórica e jornalística entretanto produzidos. É também inconsistente com a lógica mais elementar: nenhum governo advoga nas mais altas instâncias internacionais sobre a necessidade urgente de uma invasão militar cuja legalidade é duvidosa mesmo para alguns dos seus defensores, sabendo de antemão que o argumento em que funda a reivindicação de legitimidade política (e moral) é falso. Nenhuma liderança militar racional prepara uma operação da dimensão da Operation Iraqi Freedom condicionando o plano a uma contingência (ataques químicos ou biológicos do inimigo) que lhe causa desvantagens tácticas, psicológicas e financeiras, sabendo que o inimigo não dispõe de tal armamento. Nenhum governante no seu juízo perfeito gasta mais de mil milhões de dólares –o valor actualizado estimado do custo total de busca de WMD’s no Iraque após 2003– procurando o que sabe que não existe. Não é surpreendente que isto não desencoraje muitos dos opositores à ocupação do Iraque: a histeria irracional (‘eles’ mentem!) é impermeável à argumentação lógica.Segundo, houve de facto uma mentira. Uma mentira que excede os limites difusos do imperativo da ‘razão de Estado’, que Pacheco Pereira invoca quando diz que “todos os governos democráticos a praticam”. Uma mentira cujas consequências políticas são graves e permanecem como condicionante na disputa política das presidenciais americanas. A administração norte-americana eleita em 2000 nunca foi uma entidade monolítica comandada por neoconservadores, nem a resposta política aos ataques de 11 de Setembro foi ‘neoconservadora’. A facção neoconservadora (Wolfowitz, Perle, Woolsey) só tomou o controlo político das operações em 2002, assumindo a preparação de um plano de invasão militar do Iraque, um plano que foi sempre justificado como uma guerra preemptiva e prudente (Richard Perle disse muito claramente: “the casus belli is that we know Saddam Hussein possesses chemical and biological weapons” e relatórios britânicos de intelligence chegaram a sugerir que os arsenais iraquianos poderiam ser mobilizados “em 45 minutos”) seguida de um processo de ‘democratização’, onde o papel das forças militares era pouco claro, mas presumia-se que se resumiria a uma presença limitada e dissuasora de instabilidade.Toda a conduta justificável à luz da razão de Estado, incluindo a mentira, terá de ser demonstrada como protectora do interesse nacional. Ora a guerra do Iraque veio a revelar-se preventiva e imprudente, ao comprometer recursos militares e financeiros numa guerra a prazo indefinido, sem que tal tivesse sido claramente explicitado, debatido e validado politicamente. Mais grave ainda: a presidência norte-americana agiu sempre como se não fosse esse o caso quando sabia perfeitamente que os objectivos políticos que tinha estabelecido exigiam um envolvimento militar a prazo indefinido. Quando George W. Bush declarou, em Maio de 2003, a bordo de um porta-aviões americano o fim das principais operações de combate, fê-lo em frente a um estandarte com a inscrição “Mission Accomplished”. Bush sabia que não se tratava de "missão cumprida": a missão era outra —e comprida. É esta a essência da mentira politicamente relevante. O número de baixas até então não chegava à centena e meia; hoje já se ultrapassaram os 4000 mortos. Este preço de sangue e de dinheiro pago pela coligação ocidental no Iraque não foi previsto e viola gravemente o princípio da prudência que deve presidir à condução dos assuntos de Estado, sobretudo porque havia alternativas à ocupação militar do Iraque. Daí que seja impossível tratar a falta de honestidade política como justificável à luz da razão de Estado. John McCain, cuja grandeza política é incomparavelmente superior à do actual presidente, está sob pressão por ter sido simplesmente honesto e responsável, admitindo que a presença militar americana no Iraque –e não a guerra, como falsamente reclamam os Democratas– se poderá prolongar por várias décadas. É ainda o preço da mentira política de Bush.Nota final: no artigo “Rumsfeldiana”, cujo título é uma derivação de um notório ‘filme de conspiração’ (Syriana) mencionei a importância de se compreender a ‘mentira verdadeira’. Rumsfeld foi um dos rostos políticos da guerra do Iraque, não foi de modo algum o único nem sequer o principal responsável. Mereceu o ‘destaque’ do título por essa visibilidade e pela sequência de erros clamorosos que ainda hoje são sentidos. A título de exemplo, quando se iniciaram os saques de Bagdad, em vez de perceber a importância crucial de assegurar a segurança civil para a confiança no Leviathan americano, Rumsfeld disse simplesmente: “stuff happens!”. Ao secretário de Defesa norte-americano exige-se mais do que a passividade introspectiva de uma personagem de David Mamet. Ironicamente, o saque do Museu Nacional de Bagdad é ainda hoje uma das principais fontes de receita dos insurgentes iraquianos: stuff does happen. Richard Perle garantia: we know. Não sabia e também não foram os known unknowns de Rumsfeld que se revelaram trágicos: foi, como disse Mark Twain, what you think you know and it isn’t so.

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