ESTAÇÕES DIFERENTES

05-08-2010
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BORAT (ou como Putin parte ainda mais o verniz já duvidoso da "democracia" (riso contido) russa) Ainda não vi o filme em casa, pelo que talvez este comentário seja prematuro. Ou não. Mas a ideia subjacente trouxe-me um pensamento ou dois acerca de algo que volta e meia volta ao bulício da discussão pública, veiculado geralmente por uma obra ou manifestação artística provocatória. A Rússia, esse país democrático ( ahahahahahaha, enfim, desculpem... lembrei-me ao mesmo tempo do Bernardino Soares que em pleno parlamento ponderou se a Coreia do Norte não seria uma democracia... ) proibiu a exibição do filme "Borat", num claríssimo exercício de censura que faz recordar (ainda mais) os tempos da cortina de ferro e da clausura de pensamento. Primeiro jornalistas assassinadas, depois espiões envenenados, e agora censura clara e inequívoca de obras consideradas provocatórias. E quando o Estado começa a meter os garfos nas concepções do que é ou não apropriado para os seus constituintes, bem, dá-me sempre uma coceira complicada na consciência e um arrepio de terror profundo. É como me dizerem que as liberdades cívicas nos EUA podem ser sacrificadas em nome da "segurança". Nunca gostei do "Grande Irmão", seja qual for o conceito a que se aplique, especialmente no que concerne a uma cambada de "iluminados pela força" que possam decidir o que é ou não apropriado para mim. Como disse, não vi o filme, e ao que parece, é ofensivo em toda a linha, embora crie aquele riso culpado que todas as coisas mais ou menos politicamente incorrectas nos provocam. Muitos jornais internacionais, especialmente anglófonos, chamam-lhe o filme mais engraçado do ano, e assim que tiver um tempinho, o meu cartão Medeia vai ser usado mais uma vez, ah pois é! Mas vamos lá tentar por algumas ideias em ordem, para ver as perspectivas em que as mesmas podem ser vistas: 1 - Quem tenha visto o "Southpark - complete and uncut", terá tido provavelmente a mesma sensação. Matt Stone e Trey Parker disparam a eito nesse filme, e quase ninguém é poupado. Uma relação gay entre Saddam Hussein e o Diabo é um dos momentos altos, e todas as comunidades, de judeus a "hillbillies", levam porrada de criar bicho. Resultado? Hilariedade geral, e embora de quando em vez nos perguntemos se deveríamos rir de certas coisas, o diafragma lá anda de cima para baixo, e a gargalhada aparece. E nessa altura, alguns vieram dizer de sua justiça, visivelmente ofendidos, mas a questão era a mesma. O humor por vezes pode ser selvagem, mas se for inteligente, dificilmente poderá justificar-se qualquer censura aos seus efeitos. Isto porque o mau gosto censura-se a si mesmo, julgo eu. Mas este filme tem um outro problema. A projecção internacional, e o facto de não ser em desenhos animados, fez com que alguns "democratas" (riso contido novamente) mostrassem a sua verdadeira cara, essa sim, digna de repugnância. 2 - Ainda relativamente a South Park, só o estúpido do Tom Cruise veio tentar impedir a transmissão de um episódio onde se gozava (compreensivelmente) com a Cientologia, o que vindo de um artista, que fez de T.J. Mackey (Magnólia) numa das mais conseguidas mas politicamente incorrectas personagens de sempre, é inadmissível e até mesmo pleno de uma traição aos níveis mais sagrados de integridade artística e consciência pessoal. 3 - Lembram-se do Pulp Fiction? Lembram-se da quantidade de (brilhantes) cenas que eram em si horríveis, mas que nos levavam à gargalhada selvagem? Recordam a cena em que John Travolta e Samuel L. Jackson vão no carro e acidentalmente rebentam com a cabeça do passageiro do banco traseiro porque alguém se esqueceu de accionar a trava de segurança na arma? Essa cena originou uma gargalhada colectiva no cinema onde estava, e eu era um dos que ria mais alto. Caraças, era horrível, mas a malta riu a bom rir. 4 - Alguém já contou ou ouviu uma anedota étnica, sobre deficientes, sobre o holocausto? E riram-se? Pois... é provável que sim. 5 - Evidentemente que todos temos telhados de vidro. E dando a outra face, é óbvio que por muito que possamos rir-nos de nós próprios, e devamos fazê-lo com a frequência desejável, não digo de forma nenhuma que o respeito pelas pessoas e suas convicções possa ser posta em causa de todas as formas. Não é tudo justificável. Mas o humor tem essa génese. Procura a perspectiva inteligente e engraçada de qualquer ideia, mesmo que por vezes possa parecer incómodo. Caraças, o melhor período do Herman José foi o seu período mais "incorrecto", o qual deixou profundas saudades. O “Allô Allô” goza com um período negro da história da humanidade, e ninguém se queixa, e por aí fora. (Para quando uma série paralela a falar do grande terror stalinista?) E os exemplos são imensos. 6 - Também é justo perguntar se algo parecido fosse feito a uma consciência colectiva de nação ou religião, por exemplo, suscitaria ou não este tipo de reacção. Em países onde o Creacionismo inacreditavelmente põe em causa a teoria da evolução das espécies, um filme paralelo em gozo e audácia no âmbito da Igreja provavelmente lançaria autos de fé conceptuais pelos quatro cantos do globo. 7 - Aplicando isto ao Corão, é bom nem falar... As caricaturas de Maomé deram o que deram, e o discurso do Ratzinger também, portanto, tolerância e sentido de humor é algo que certa parte do Islão não tem definitivamente. Argumentar onde não há racionalidade mínima, é escusado. 8- Em suma, seja o filme ofensivo ou não, a verdade é que as manifestações de censura a mim agastam-me, especialmente no que diz respeito ao humor, mas aceito que hajam alguns limites para a expressão artística, como haverão para tudo, julgo eu. Mas deve ter-se muito cuidado ao traçá-los, e sobretudo, nunca decidir pelas consciências, mas deixar decidir conscientemente. E antes gozar com algo do que incitar à violência, ao desrespeito e maus-tratos à liberdade e integridade humana em nome desse mesmo algo. Por isso, e tudo e mais alguma coisa, vou ver o filme. Mesmo que não goste, não julgo que a censura tenha por si mesma qualquer justificação. Embora, e tenho de admitir, tudo o que incite com seriedade à violência, à crueldade e à limitação injustificada dos direitos humanos deva ser muito bem analisada. Facções neonazis, Ku Klux Klan, subjugação e negação de direitos sociais a minorias étnicas, politicas ou de género, não tem humor. Tem uma intenção clara de denegar direitos fundamentais, e embora lhes reconheça um direito de manifestação, não tenho problemas alguns em denegar acção política concreta em associações que incitem a estes actos, como criação de partidos políticos nazis, por exemplo. Não sou tão politicamente incorrecto como gostaria, talvez.... Mas lá está, todos já contámos anedotas de negros, de alentejanos, piadas sexistas, etc.... São, em meu ver, coisas bem diferentes. Portanto, vou ver o filme. Tenho direito a pensar pela minha cabeça.Felizmente!

BORAT (ou como Putin parte ainda mais o verniz já duvidoso da "democracia" (riso contido) russa) Ainda não vi o filme em casa, pelo que talvez este comentário seja prematuro. Ou não. Mas a ideia subjacente trouxe-me um pensamento ou dois acerca de algo que volta e meia volta ao bulício da discussão pública, veiculado geralmente por uma obra ou manifestação artística provocatória. A Rússia, esse país democrático ( ahahahahahaha, enfim, desculpem... lembrei-me ao mesmo tempo do Bernardino Soares que em pleno parlamento ponderou se a Coreia do Norte não seria uma democracia... ) proibiu a exibição do filme "Borat", num claríssimo exercício de censura que faz recordar (ainda mais) os tempos da cortina de ferro e da clausura de pensamento. Primeiro jornalistas assassinadas, depois espiões envenenados, e agora censura clara e inequívoca de obras consideradas provocatórias. E quando o Estado começa a meter os garfos nas concepções do que é ou não apropriado para os seus constituintes, bem, dá-me sempre uma coceira complicada na consciência e um arrepio de terror profundo. É como me dizerem que as liberdades cívicas nos EUA podem ser sacrificadas em nome da "segurança". Nunca gostei do "Grande Irmão", seja qual for o conceito a que se aplique, especialmente no que concerne a uma cambada de "iluminados pela força" que possam decidir o que é ou não apropriado para mim. Como disse, não vi o filme, e ao que parece, é ofensivo em toda a linha, embora crie aquele riso culpado que todas as coisas mais ou menos politicamente incorrectas nos provocam. Muitos jornais internacionais, especialmente anglófonos, chamam-lhe o filme mais engraçado do ano, e assim que tiver um tempinho, o meu cartão Medeia vai ser usado mais uma vez, ah pois é! Mas vamos lá tentar por algumas ideias em ordem, para ver as perspectivas em que as mesmas podem ser vistas: 1 - Quem tenha visto o "Southpark - complete and uncut", terá tido provavelmente a mesma sensação. Matt Stone e Trey Parker disparam a eito nesse filme, e quase ninguém é poupado. Uma relação gay entre Saddam Hussein e o Diabo é um dos momentos altos, e todas as comunidades, de judeus a "hillbillies", levam porrada de criar bicho. Resultado? Hilariedade geral, e embora de quando em vez nos perguntemos se deveríamos rir de certas coisas, o diafragma lá anda de cima para baixo, e a gargalhada aparece. E nessa altura, alguns vieram dizer de sua justiça, visivelmente ofendidos, mas a questão era a mesma. O humor por vezes pode ser selvagem, mas se for inteligente, dificilmente poderá justificar-se qualquer censura aos seus efeitos. Isto porque o mau gosto censura-se a si mesmo, julgo eu. Mas este filme tem um outro problema. A projecção internacional, e o facto de não ser em desenhos animados, fez com que alguns "democratas" (riso contido novamente) mostrassem a sua verdadeira cara, essa sim, digna de repugnância. 2 - Ainda relativamente a South Park, só o estúpido do Tom Cruise veio tentar impedir a transmissão de um episódio onde se gozava (compreensivelmente) com a Cientologia, o que vindo de um artista, que fez de T.J. Mackey (Magnólia) numa das mais conseguidas mas politicamente incorrectas personagens de sempre, é inadmissível e até mesmo pleno de uma traição aos níveis mais sagrados de integridade artística e consciência pessoal. 3 - Lembram-se do Pulp Fiction? Lembram-se da quantidade de (brilhantes) cenas que eram em si horríveis, mas que nos levavam à gargalhada selvagem? Recordam a cena em que John Travolta e Samuel L. Jackson vão no carro e acidentalmente rebentam com a cabeça do passageiro do banco traseiro porque alguém se esqueceu de accionar a trava de segurança na arma? Essa cena originou uma gargalhada colectiva no cinema onde estava, e eu era um dos que ria mais alto. Caraças, era horrível, mas a malta riu a bom rir. 4 - Alguém já contou ou ouviu uma anedota étnica, sobre deficientes, sobre o holocausto? E riram-se? Pois... é provável que sim. 5 - Evidentemente que todos temos telhados de vidro. E dando a outra face, é óbvio que por muito que possamos rir-nos de nós próprios, e devamos fazê-lo com a frequência desejável, não digo de forma nenhuma que o respeito pelas pessoas e suas convicções possa ser posta em causa de todas as formas. Não é tudo justificável. Mas o humor tem essa génese. Procura a perspectiva inteligente e engraçada de qualquer ideia, mesmo que por vezes possa parecer incómodo. Caraças, o melhor período do Herman José foi o seu período mais "incorrecto", o qual deixou profundas saudades. O “Allô Allô” goza com um período negro da história da humanidade, e ninguém se queixa, e por aí fora. (Para quando uma série paralela a falar do grande terror stalinista?) E os exemplos são imensos. 6 - Também é justo perguntar se algo parecido fosse feito a uma consciência colectiva de nação ou religião, por exemplo, suscitaria ou não este tipo de reacção. Em países onde o Creacionismo inacreditavelmente põe em causa a teoria da evolução das espécies, um filme paralelo em gozo e audácia no âmbito da Igreja provavelmente lançaria autos de fé conceptuais pelos quatro cantos do globo. 7 - Aplicando isto ao Corão, é bom nem falar... As caricaturas de Maomé deram o que deram, e o discurso do Ratzinger também, portanto, tolerância e sentido de humor é algo que certa parte do Islão não tem definitivamente. Argumentar onde não há racionalidade mínima, é escusado. 8- Em suma, seja o filme ofensivo ou não, a verdade é que as manifestações de censura a mim agastam-me, especialmente no que diz respeito ao humor, mas aceito que hajam alguns limites para a expressão artística, como haverão para tudo, julgo eu. Mas deve ter-se muito cuidado ao traçá-los, e sobretudo, nunca decidir pelas consciências, mas deixar decidir conscientemente. E antes gozar com algo do que incitar à violência, ao desrespeito e maus-tratos à liberdade e integridade humana em nome desse mesmo algo. Por isso, e tudo e mais alguma coisa, vou ver o filme. Mesmo que não goste, não julgo que a censura tenha por si mesma qualquer justificação. Embora, e tenho de admitir, tudo o que incite com seriedade à violência, à crueldade e à limitação injustificada dos direitos humanos deva ser muito bem analisada. Facções neonazis, Ku Klux Klan, subjugação e negação de direitos sociais a minorias étnicas, politicas ou de género, não tem humor. Tem uma intenção clara de denegar direitos fundamentais, e embora lhes reconheça um direito de manifestação, não tenho problemas alguns em denegar acção política concreta em associações que incitem a estes actos, como criação de partidos políticos nazis, por exemplo. Não sou tão politicamente incorrecto como gostaria, talvez.... Mas lá está, todos já contámos anedotas de negros, de alentejanos, piadas sexistas, etc.... São, em meu ver, coisas bem diferentes. Portanto, vou ver o filme. Tenho direito a pensar pela minha cabeça.Felizmente!

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