O Cachimbo de Magritte: Mochos e ratos

05-08-2010
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Ao pequeno-almoço há notícias televisivas e um jornal, hábito retomado naturalmente, mesmo após ausências prolongadas. Na televisão aparece um helicóptero a sobrevoar filas compactas de automóveis, ao jeito espectacular das perseguições policiais nos EUA. O jornalista a bordo grita qualquer coisa sobre o “estado” do IC não sei quantos. A excitação do relator contrasta com a imobilidade indiferente dos figurantes acidentais. O “estado” do IC é a interminável fila dos desterrados para os subúrbios cosmopolitas — o “terceiro estado” do regime corporativo e socialista português. Tento o jornal. No caderno de Economia do Diário de Notícias, há uma peça sobre a legislação complementar à nova lei do arrendamento:As comissões arbitrais municipais (CAM) - organismos responsáveis pelo apuramento do coeficiente de conservação dos fogos e pela arbitragem entre inquilinos e senhorios - vão sair muito caras aos municípios, que terão de pagar centenas de euros por cada reunião. É que, de acordo com a legislação publicada, a participação dos representantes das associações de senhorios, de inquilinos, das ordens de Engenheiros, de Arquitectos e de Advogados é remunerada, cabendo este encargo às próprias câmaras.Se tivesse que escolher um candidato provável para a legislação que maiores danos causou a Portugal não teria dúvidas: a sucessão de disposições legislativas que desde os tempos de Salazar condicionam as rendas de casa. Ao longo de décadas, o condicionamento das rendas limitou as transacções no mercado de aluguer de habitação de forma arbitrária e politicamente oportunista. O valor capitalizado das perdas puras de excedente económico daí resultantes é certamente elevadíssimo (seria interessante conhecer estimativas empíricas para Portugal, se as houver). O desincentivo dinâmico à criação de nova habitação para arrendar é a principal explicação para a “terciarização” do centro das cidades e para o simultâneo crescimento brutal dos subúrbios.Os efeitos redistributivos da arbitrariedade legal não foram menos devastadores. Aqueles que tinham as suas poupanças aplicadas em imóveis para arrendamento viram os seus rendimentos presentes e futuros congelados, e só quem tenha um profundo desconhecimento da sociedade portuguesa é que poderá supor que se tratavam principalmente de “ricos”. Em contrapartida, aos arrendatários de imóveis urbanos saiu a “sorte grande” por via legislativa: a perda de rendimento dos proprietários correspondeu a um aumento do rendimento (imputável) aos inquilinos. Os proprietários deixaram de o ser, para todos os efeitos relevantes, os inquilinos “adquiriram direitos” que os tornaram mais proprietários do que os verdadeiros e ainda receberam um generosíssimo subsídio político. Volta e meia cai mais um prédio, no fim de uma longa ruína, para ilustração das consequências.A legislação também ajudou outros grupos sociais de nítidos pobrezinhos, designadamente empreiteiros de construção civil, consórcios imobiliários e entidades bancárias. Periodicamente — de quatro em quatro anos — os beneficiados agradecem e retribuem aos generosos benfeitores políticos. A este respeito, o estudo dos financiadores político-partidários pode revelar-se muito instrutivo.E aqui estamos. Eu sentado, o “terceiro estado” da Nação parado na estrada para a capital do socialismo, de onde foi expulso pelo condicionamento legal, o helicóptero lá em cima e o jornal cá em baixo, a anunciar o mais recente abuso legislativo para compor este crime de lesa-pátria: umas comissões jeitosinhas, encarregues de determinar se os imóveis necessitam ou não de obras.Há comissões por todo o lado: mochos vigilantes, que nos poupam ao fardo da responsabilidade; que estudam as leis retorcidas e se aliviam de recomendações que por má sorte as retorcem ainda mais. Depois lá estão eles, os mochos na longa noite legislativa, por feliz coincidência os únicos capazes de se orientarem na selva das leis e de nos salvarem de um triste fim.Entre os mochos encarregues de determinar os “coeficientes de conservação” estão “representantes” das Ordens dos Arquitectos e Engenheiros. É o equilíbrio do regime socialista e corporativo. O legislador, sempre generoso com o dinheiro dos outros, entendeu remunerar “condignamente” os elementos envolvidos. Em resultado, para os maiores municípios (com mais de 100 000 habitantes), cada reunião vai custar à volta de 700 euros. Sem garantias de deliberação, evidentemente. Para (ainda maior) sossego do povo, a legislação que cria estas comissões atribui-lhes carácter “opcional”. É pois uma sugestão do legislador amigo, que se não for seguida transfere o poder decisório para a autarquia. Ou seja: desde as “comissões” até ao burocrata camarário, todos são considerados competentes para decidir sobre a propriedade privada — excepto, obviamente, o proprietário.É necessário compreender que esta salada governamental de decretos, comissões e pareceres continuará a destruir riqueza, na tentativa de manter o controlo político sobre a sociedade e de transferir a maior parcela possível do excedente económico para os grupos de privilegiados do regime. Periodicamente, a oligarquia dirigente manifesta a sua “surpresa e preocupação” com os resultados em termos de bem estar do exercício legislativo de destruição e saque. A minha versão da “lei de bronze” das oligarquias é simples: os eleitores têm os governantes que merecem. Se os portugueses continuarem a aceitar a vida na comunidade política com a passividade do fatalismo providencial, nada mudará. E onde há abundância de ratos, haverá sempre mochos “interessados”.


Ao pequeno-almoço há notícias televisivas e um jornal, hábito retomado naturalmente, mesmo após ausências prolongadas. Na televisão aparece um helicóptero a sobrevoar filas compactas de automóveis, ao jeito espectacular das perseguições policiais nos EUA. O jornalista a bordo grita qualquer coisa sobre o “estado” do IC não sei quantos. A excitação do relator contrasta com a imobilidade indiferente dos figurantes acidentais. O “estado” do IC é a interminável fila dos desterrados para os subúrbios cosmopolitas — o “terceiro estado” do regime corporativo e socialista português. Tento o jornal. No caderno de Economia do Diário de Notícias, há uma peça sobre a legislação complementar à nova lei do arrendamento:As comissões arbitrais municipais (CAM) - organismos responsáveis pelo apuramento do coeficiente de conservação dos fogos e pela arbitragem entre inquilinos e senhorios - vão sair muito caras aos municípios, que terão de pagar centenas de euros por cada reunião. É que, de acordo com a legislação publicada, a participação dos representantes das associações de senhorios, de inquilinos, das ordens de Engenheiros, de Arquitectos e de Advogados é remunerada, cabendo este encargo às próprias câmaras.Se tivesse que escolher um candidato provável para a legislação que maiores danos causou a Portugal não teria dúvidas: a sucessão de disposições legislativas que desde os tempos de Salazar condicionam as rendas de casa. Ao longo de décadas, o condicionamento das rendas limitou as transacções no mercado de aluguer de habitação de forma arbitrária e politicamente oportunista. O valor capitalizado das perdas puras de excedente económico daí resultantes é certamente elevadíssimo (seria interessante conhecer estimativas empíricas para Portugal, se as houver). O desincentivo dinâmico à criação de nova habitação para arrendar é a principal explicação para a “terciarização” do centro das cidades e para o simultâneo crescimento brutal dos subúrbios.Os efeitos redistributivos da arbitrariedade legal não foram menos devastadores. Aqueles que tinham as suas poupanças aplicadas em imóveis para arrendamento viram os seus rendimentos presentes e futuros congelados, e só quem tenha um profundo desconhecimento da sociedade portuguesa é que poderá supor que se tratavam principalmente de “ricos”. Em contrapartida, aos arrendatários de imóveis urbanos saiu a “sorte grande” por via legislativa: a perda de rendimento dos proprietários correspondeu a um aumento do rendimento (imputável) aos inquilinos. Os proprietários deixaram de o ser, para todos os efeitos relevantes, os inquilinos “adquiriram direitos” que os tornaram mais proprietários do que os verdadeiros e ainda receberam um generosíssimo subsídio político. Volta e meia cai mais um prédio, no fim de uma longa ruína, para ilustração das consequências.A legislação também ajudou outros grupos sociais de nítidos pobrezinhos, designadamente empreiteiros de construção civil, consórcios imobiliários e entidades bancárias. Periodicamente — de quatro em quatro anos — os beneficiados agradecem e retribuem aos generosos benfeitores políticos. A este respeito, o estudo dos financiadores político-partidários pode revelar-se muito instrutivo.E aqui estamos. Eu sentado, o “terceiro estado” da Nação parado na estrada para a capital do socialismo, de onde foi expulso pelo condicionamento legal, o helicóptero lá em cima e o jornal cá em baixo, a anunciar o mais recente abuso legislativo para compor este crime de lesa-pátria: umas comissões jeitosinhas, encarregues de determinar se os imóveis necessitam ou não de obras.Há comissões por todo o lado: mochos vigilantes, que nos poupam ao fardo da responsabilidade; que estudam as leis retorcidas e se aliviam de recomendações que por má sorte as retorcem ainda mais. Depois lá estão eles, os mochos na longa noite legislativa, por feliz coincidência os únicos capazes de se orientarem na selva das leis e de nos salvarem de um triste fim.Entre os mochos encarregues de determinar os “coeficientes de conservação” estão “representantes” das Ordens dos Arquitectos e Engenheiros. É o equilíbrio do regime socialista e corporativo. O legislador, sempre generoso com o dinheiro dos outros, entendeu remunerar “condignamente” os elementos envolvidos. Em resultado, para os maiores municípios (com mais de 100 000 habitantes), cada reunião vai custar à volta de 700 euros. Sem garantias de deliberação, evidentemente. Para (ainda maior) sossego do povo, a legislação que cria estas comissões atribui-lhes carácter “opcional”. É pois uma sugestão do legislador amigo, que se não for seguida transfere o poder decisório para a autarquia. Ou seja: desde as “comissões” até ao burocrata camarário, todos são considerados competentes para decidir sobre a propriedade privada — excepto, obviamente, o proprietário.É necessário compreender que esta salada governamental de decretos, comissões e pareceres continuará a destruir riqueza, na tentativa de manter o controlo político sobre a sociedade e de transferir a maior parcela possível do excedente económico para os grupos de privilegiados do regime. Periodicamente, a oligarquia dirigente manifesta a sua “surpresa e preocupação” com os resultados em termos de bem estar do exercício legislativo de destruição e saque. A minha versão da “lei de bronze” das oligarquias é simples: os eleitores têm os governantes que merecem. Se os portugueses continuarem a aceitar a vida na comunidade política com a passividade do fatalismo providencial, nada mudará. E onde há abundância de ratos, haverá sempre mochos “interessados”.

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