O Cachimbo de Magritte: Os Limites do Pluralismo

07-08-2010
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Pouco antes da celebração dos 50 anos do Tratado de Roma, e numa altura em que vários se queixam da ausência de genuínos debates públicos europeus, estalou uma expressiva controvérsia europeia, envolvendo celebridades como Timothy Garton Ash, Ian Buruma ou Pascal Bruckner. Tudo começou a propósito de comentários feitos por Ash à personalidade de Ayaan Hirsi Ali, a Somali que, depois de fugir a um casamento arranjado, chegou a deputada no Parlamento holandês, e agora vive exilada nos EUA sob o patrocínio do American Enterprise Institute. Pelo caminho, Ayaan Hirsi Ali converteu-se ao ateísmo militante e, devido às suas críticas ferozes do Islão e da passividade europeia, tornou-se numa espécie de pin-up girl do conservadorismo americano e do republicanismo francês (não, não me enganei). Apesar do fascínio considerável de Ayaan Hirsi Ali, o debate deslizou rapidamente para o confronto europeu contemporâneo entre “multiculturalismo” e “republicanismo” no contexto da resposta aos desafios civilizacionais do nosso continente, em particular o desafio de algumas manifestações do Islamismo.Não vale a pena recapitular os argumentos esgrimidos entre as duas posições. Quando as coisas azedaram, o “multiculturalismo” não passava de cobardia moral e preguiça intelectual, ao passo que o "republicanismo" obedecia sem vergonha ao jacobinismo que persiste em nos assombrar. Assinalo, de passagem, que, no Inverno de 2007, tanto o “multiculturalismo” – como se pode verificar nos países que mais fervorosamente o acolheram, Inglaterra, Holanda, Suécia – como o “republicanismo” – que tem dificuldades em França, para não dizer que ninguém fora das fronteiras francesas mostrou vontade de o importar –, lambem as suas feridas, perplexos com as suas próprias fraquezas.Porém, a importância do problema não pode ser ignorada. E a sua urgência obriga-nos a prestar atenção. É preciso notar que a solução “multiculturalista” não coincide com a prática americana. Basta dizer que o cultivo do patriotismo americano é suficientemente vigoroso e sincero para desgostar um verdadeiro “multiculturalista”, e que o culto da Constituição, bem como os rituais e costumes universalmente aceites no discurso público dos EUA, ainda não se vergaram à dissipação de uma identidade política geral.O lugar-comum de se dizer que vivemos em democracias políticas e em sociedades pluralistas não deve, porém, esconder o facto de ser necessário um permanente esforço de conciliação entre ambas as dimensões da nossa existência colectiva. As democracias são regimes de deliberação pública, da determinação em comum do bem colectivo, o que pressupõe, em maior ou menor grau, o uso de uma linguagem comum, ou pelo menos de uma linguagem que seja inteligível para todos os cidadãos. Ora, a extensão do pluralismo até às suas últimas consequências – como em algumas versões exorbitantes do “multiculturalismo” – coloca em risco a inteligibilidade necessária da linguagem pública, e com ela a própria democracia política. A democracia fomenta e lida com facilidade com uma sociedade pluralista. Uma foi feita para a outra. Mas uma sociedade permanentemente dividida em guetos sociais e culturais nega radicalmente a esfera pública de cidadania onde decorre a discussão sobre os problemas colectivos. Não vale a pena assustar as criancinhas com os fantasmas do conformismo opressor ou da histeria dos consensos agressivos. As identidades pré-políticas podem perfeitamente florescer em harmonia com uma identidade política que as abranja a todas. Contudo, o que a despolitização em curso na Europa tem de perigoso é a subversão da identidade política e a sua submissão completa a identidades de outro tipo. Não se admirem se o Estado de Direito for arrastado para a confusão: uma juíza Alemã já indicou o caminho. É por isso que a velha Democracia tem de explicar à nova Europa que até o pluralismo tem limites.


Pouco antes da celebração dos 50 anos do Tratado de Roma, e numa altura em que vários se queixam da ausência de genuínos debates públicos europeus, estalou uma expressiva controvérsia europeia, envolvendo celebridades como Timothy Garton Ash, Ian Buruma ou Pascal Bruckner. Tudo começou a propósito de comentários feitos por Ash à personalidade de Ayaan Hirsi Ali, a Somali que, depois de fugir a um casamento arranjado, chegou a deputada no Parlamento holandês, e agora vive exilada nos EUA sob o patrocínio do American Enterprise Institute. Pelo caminho, Ayaan Hirsi Ali converteu-se ao ateísmo militante e, devido às suas críticas ferozes do Islão e da passividade europeia, tornou-se numa espécie de pin-up girl do conservadorismo americano e do republicanismo francês (não, não me enganei). Apesar do fascínio considerável de Ayaan Hirsi Ali, o debate deslizou rapidamente para o confronto europeu contemporâneo entre “multiculturalismo” e “republicanismo” no contexto da resposta aos desafios civilizacionais do nosso continente, em particular o desafio de algumas manifestações do Islamismo.Não vale a pena recapitular os argumentos esgrimidos entre as duas posições. Quando as coisas azedaram, o “multiculturalismo” não passava de cobardia moral e preguiça intelectual, ao passo que o "republicanismo" obedecia sem vergonha ao jacobinismo que persiste em nos assombrar. Assinalo, de passagem, que, no Inverno de 2007, tanto o “multiculturalismo” – como se pode verificar nos países que mais fervorosamente o acolheram, Inglaterra, Holanda, Suécia – como o “republicanismo” – que tem dificuldades em França, para não dizer que ninguém fora das fronteiras francesas mostrou vontade de o importar –, lambem as suas feridas, perplexos com as suas próprias fraquezas.Porém, a importância do problema não pode ser ignorada. E a sua urgência obriga-nos a prestar atenção. É preciso notar que a solução “multiculturalista” não coincide com a prática americana. Basta dizer que o cultivo do patriotismo americano é suficientemente vigoroso e sincero para desgostar um verdadeiro “multiculturalista”, e que o culto da Constituição, bem como os rituais e costumes universalmente aceites no discurso público dos EUA, ainda não se vergaram à dissipação de uma identidade política geral.O lugar-comum de se dizer que vivemos em democracias políticas e em sociedades pluralistas não deve, porém, esconder o facto de ser necessário um permanente esforço de conciliação entre ambas as dimensões da nossa existência colectiva. As democracias são regimes de deliberação pública, da determinação em comum do bem colectivo, o que pressupõe, em maior ou menor grau, o uso de uma linguagem comum, ou pelo menos de uma linguagem que seja inteligível para todos os cidadãos. Ora, a extensão do pluralismo até às suas últimas consequências – como em algumas versões exorbitantes do “multiculturalismo” – coloca em risco a inteligibilidade necessária da linguagem pública, e com ela a própria democracia política. A democracia fomenta e lida com facilidade com uma sociedade pluralista. Uma foi feita para a outra. Mas uma sociedade permanentemente dividida em guetos sociais e culturais nega radicalmente a esfera pública de cidadania onde decorre a discussão sobre os problemas colectivos. Não vale a pena assustar as criancinhas com os fantasmas do conformismo opressor ou da histeria dos consensos agressivos. As identidades pré-políticas podem perfeitamente florescer em harmonia com uma identidade política que as abranja a todas. Contudo, o que a despolitização em curso na Europa tem de perigoso é a subversão da identidade política e a sua submissão completa a identidades de outro tipo. Não se admirem se o Estado de Direito for arrastado para a confusão: uma juíza Alemã já indicou o caminho. É por isso que a velha Democracia tem de explicar à nova Europa que até o pluralismo tem limites.

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