O Cachimbo de Magritte: A conquista de Lisboa revisitada (ou De como a polémica está a tornar-se um diálogo de surdos)

05-08-2010
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Ontem, no Público, o Rui Tavares "encerrou" a nossa polémica, admitindo por mim os meus supostos erros. O Rui que me desculpe, mas gostaria de ser eu a admitir os meus erros. Tenho esta mania burguesa da propriedade privada. Vou continuar a conversa aqui no Cachimbo. Até porque, na pressa de fazer a festa, lançar os foguetes e apanhar as canas, ele voltou exactamente ao início da questão.Diz o Rui que eu "estava errado ao ter antes escrito que nenhum documento referia a existência de judeus em Lisboa na época" da conquista cristã. E cita de novo a kina de Abraham Ibn Ezra, dedicada a uma comunidade judaica presente em Lisboa até 1140. Como disse na primeira carta ao Director, a existência de judeus em Lisboa em 1147 é muito provável. Mas provável não significa provado. Se o Rui defende essa existência, deveria ser ele a prová-la. O que tenta fazer com um poema de 1140. Uma fonte que diz o que queremos na data errada é o pior azar de um historiador, talvez apenas superado por uma fonte que não diz o que queremos.Com a mesma fonte, poderíamos lançar uma hipótese diferente. É sabido que o domínio almorávida na Península Ibérica trouxe consigo uma vaga de intolerância para com cristãos e judeus. As fontes coevas relatam a destruição dos santuários de São Vicente de Sagres e dos Santos Mártires de Lisboa (no segundo caso, o pseudo-Osberno). Não custa imaginar, e custará menos ao Rui do que a mim, que a fuga de Ibn Ezra para o Norte de África, e depois para Itália e França, se deva à perseguição islâmica. E se o desaparecimento dos judeus lisboetas entre 1140 e o reinado de Afonso III (ou Sancho I) tiver por causa essa perseguição? A hipótese é menos provável do que a do Rui, mas já que estamos a imaginar...Quanto ao bairro dos moçárabes, não vale a pena deslocar outra vez o foco da questão. A frase original "muçulmanos, judeus e cristãos viviam dentro da cerca moura" dá a entender que muçulmanos, judeus e cristãos viviam habitualmente dentro da cerca moura. Não viviam: tinham bairros separados - e o dos cristãos estava fora da cerca moura. Só em condições excepcionais, como um cerco, isto seria diferente. O Rui insiste que a sua frase "era correcta em todos os pontos". E eu insisto que, afinal, não tenho o monopólio dos "raciocínios arrevesados". O mesmo se diga da famosa "violência descontrolada". Primeiro, o Rui asseverava que "os cruzados passaram a fio de espada muçulmanos, judeus e cristãos que viviam dentro da cerca moura". Quantos? Muitos? Poucos? Todos? Isso não sabia - porque ninguém sabe. Depois, passou para a "violência descontrolada" do saque, mesmo sem saber o número de mortos. A mim, esse número parece-me relevante para classificar o facto como "talvez o pior momento da história da Lisboa portuguesa", já que se trata de uma classificação, ou como uma "matança" superior à de 1506, que teve 2 mil a 4 mil mortos. Ao Rui não parece tal coisa. Basta-lhe citar Mattoso, que supõe violências "muito mais arbitrárias, cruéis e generalizadas" do que narra o pseudo-Osberno. Também as suponho, mas é o Rui que inscreve 1147 na competição com 1506 e não com a suposição de Mattoso. Por estas e por outras, o Rui acusa-me de falta de liberalidade na interpretação das fontes. Há-de concordar que, para um historiador, isso não é propriamente um defeito.


Ontem, no Público, o Rui Tavares "encerrou" a nossa polémica, admitindo por mim os meus supostos erros. O Rui que me desculpe, mas gostaria de ser eu a admitir os meus erros. Tenho esta mania burguesa da propriedade privada. Vou continuar a conversa aqui no Cachimbo. Até porque, na pressa de fazer a festa, lançar os foguetes e apanhar as canas, ele voltou exactamente ao início da questão.Diz o Rui que eu "estava errado ao ter antes escrito que nenhum documento referia a existência de judeus em Lisboa na época" da conquista cristã. E cita de novo a kina de Abraham Ibn Ezra, dedicada a uma comunidade judaica presente em Lisboa até 1140. Como disse na primeira carta ao Director, a existência de judeus em Lisboa em 1147 é muito provável. Mas provável não significa provado. Se o Rui defende essa existência, deveria ser ele a prová-la. O que tenta fazer com um poema de 1140. Uma fonte que diz o que queremos na data errada é o pior azar de um historiador, talvez apenas superado por uma fonte que não diz o que queremos.Com a mesma fonte, poderíamos lançar uma hipótese diferente. É sabido que o domínio almorávida na Península Ibérica trouxe consigo uma vaga de intolerância para com cristãos e judeus. As fontes coevas relatam a destruição dos santuários de São Vicente de Sagres e dos Santos Mártires de Lisboa (no segundo caso, o pseudo-Osberno). Não custa imaginar, e custará menos ao Rui do que a mim, que a fuga de Ibn Ezra para o Norte de África, e depois para Itália e França, se deva à perseguição islâmica. E se o desaparecimento dos judeus lisboetas entre 1140 e o reinado de Afonso III (ou Sancho I) tiver por causa essa perseguição? A hipótese é menos provável do que a do Rui, mas já que estamos a imaginar...Quanto ao bairro dos moçárabes, não vale a pena deslocar outra vez o foco da questão. A frase original "muçulmanos, judeus e cristãos viviam dentro da cerca moura" dá a entender que muçulmanos, judeus e cristãos viviam habitualmente dentro da cerca moura. Não viviam: tinham bairros separados - e o dos cristãos estava fora da cerca moura. Só em condições excepcionais, como um cerco, isto seria diferente. O Rui insiste que a sua frase "era correcta em todos os pontos". E eu insisto que, afinal, não tenho o monopólio dos "raciocínios arrevesados". O mesmo se diga da famosa "violência descontrolada". Primeiro, o Rui asseverava que "os cruzados passaram a fio de espada muçulmanos, judeus e cristãos que viviam dentro da cerca moura". Quantos? Muitos? Poucos? Todos? Isso não sabia - porque ninguém sabe. Depois, passou para a "violência descontrolada" do saque, mesmo sem saber o número de mortos. A mim, esse número parece-me relevante para classificar o facto como "talvez o pior momento da história da Lisboa portuguesa", já que se trata de uma classificação, ou como uma "matança" superior à de 1506, que teve 2 mil a 4 mil mortos. Ao Rui não parece tal coisa. Basta-lhe citar Mattoso, que supõe violências "muito mais arbitrárias, cruéis e generalizadas" do que narra o pseudo-Osberno. Também as suponho, mas é o Rui que inscreve 1147 na competição com 1506 e não com a suposição de Mattoso. Por estas e por outras, o Rui acusa-me de falta de liberalidade na interpretação das fontes. Há-de concordar que, para um historiador, isso não é propriamente um defeito.

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