O Cachimbo de Magritte: Ganhou o Salazar. E agora?

07-08-2010
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Para surpresa da RTP e horror dos bem pensantes, Salazar venceu ontem o concurso telegénico dos "Grandes Portugueses". Já aqui escrevi sobre a importância que isso (não) tem. Depois de ver a nocturna gala em que o "serviço público" de televisão anunciou os resultados, chorrilho de disparates a que só resisti por amor à pátria e súbita descoberta de que Odete Santos me faz lembrar os Monty Python, deixo três notinhas apenas. 1. A vitória de Salazar choca, sem dúvida, tal como o segundo lugar de Cunhal. E pelas mesmas razões: são os maiores inimigos da liberdade que Portugal conheceu no século XX. Que tenham ambos vencido uma eleição democrática soa a tragicomédia. Mas nada mais. Não se trata de uma "restauração de nada", como de imediato reconheceu Jaime Nogueira Pinto, nem de uma "apologia do fascismo", como logo a seguir clamou a espumante Odete. O país não é salazarista. Os Bourbons não voltam. A reacção não passará. Até amanhã, camaradas. 2. Uma das explicações para este resultado incómodo foi logo dada em directo e é repetida pelo Francisco no post aqui abaixo: o voto de protesto. Dos 80 mil votos em Salazar, muitos correspondem aos inevitáveis descontentes do actual regime. O facto de serem inevitáveis não é lá muito tranquilizante. Hoje, todos aceitamos a democracia - mesmo a maior parte dos que votaram no ditador de Santa Comba, estou certo (já não estou tão certo quanto aos que votaram em Cunhal). Faz parte da natureza da democracia não gerar grande entusiasmo, a não ser, já Tocqueville notou, se estiver em perigo. De resto, não exalta ninguém. É o reino da mediocridade. É um dado adquirido. É o que temos. E o que temos parece quase sempre pior do que um passado mítico (Salazar) ou um futuro utópico (Cunhal). A realidade parece quase sempre menos poética do que o ideal. Por isso Churchill definiu a democracia como "o pior dos regimes, excepto todos os outros". Os ingleses, que o elegeram o maior dos patrícios no concurso lá da terra, sabem-no bem. Não porque tenham votado nele na BBC, mas porque lutaram a seu lado contra Hitler. Por cá não tivemos essa sorte, graças a Deus. A democracia não nos custou "sangue, suor e lágrimas", mas apenas um ano de PREC e a luta de Soares e Sá Carneiro para normalizar as coisas. É muito, mas não parece. E, assim, a memória não guarda mais do que a revolução dos cravos, o primeiro dia do resto das nossas vidas, a poesia que está na rua, etc. - e o aumento do custo de vida, o desemprego, a Casa Pia, o arrastão, o "apito dourado", o Major, o Santana, o Manel Pinho e as maternidades que fecham. Esquecemo-nos do que significa viver sem liberdade.Já Salazar e Cunhal, como todos os mortos, só têm virtudes. Paz à sua alma. Se é que tinham alma, claro.3. Este resultado deveria ser uma lição para a esquerda que usa o antifascismo como arma de arremesso. No 31 da Armada, o Henrique Burnay critica todos os que contam a história do Estado Novo a preto e branco, com os maus de um lado e os bons do outro. Tem carradas de razão. Bastava ver a RTP 1 ontem à noite. Comentando o desfecho do concurso, Clara Fereira Alves lamentava que, mais uma vez, tenham sido "os mal intencionados" (sic) a votar, enquanto os "bem intencionados" (sic) se abstêm. Ana Gomes preocupava-se com "a nossa imagem lá fora". Leonor Pinhão invocava a "bondade" de Afonso Henriques (a sério) contra as malfeitorias (adivinhem...) do Salazar. Odete Santos, antes de converter o palco num Conselho Nacional do CDS, gritava que o verdadeiro líder está em "osmose com o povo", e dava o exemplo de Cunhal - no mesmíssimo programa em que o "povo" decidia estar em osmose com Salazar. O único aspecto positivo desta brincadeira talvez seja o fim da superioridade moral dos que, do Bloco ao PS, acusam sempre os adversários de "fascismo". Pode ser que lá cheguemos. Graças ao mauzão do Salazar, agora tenho um sonho: o sonho de que o concurso ainda venha a servir para alguma coisa.


Para surpresa da RTP e horror dos bem pensantes, Salazar venceu ontem o concurso telegénico dos "Grandes Portugueses". Já aqui escrevi sobre a importância que isso (não) tem. Depois de ver a nocturna gala em que o "serviço público" de televisão anunciou os resultados, chorrilho de disparates a que só resisti por amor à pátria e súbita descoberta de que Odete Santos me faz lembrar os Monty Python, deixo três notinhas apenas. 1. A vitória de Salazar choca, sem dúvida, tal como o segundo lugar de Cunhal. E pelas mesmas razões: são os maiores inimigos da liberdade que Portugal conheceu no século XX. Que tenham ambos vencido uma eleição democrática soa a tragicomédia. Mas nada mais. Não se trata de uma "restauração de nada", como de imediato reconheceu Jaime Nogueira Pinto, nem de uma "apologia do fascismo", como logo a seguir clamou a espumante Odete. O país não é salazarista. Os Bourbons não voltam. A reacção não passará. Até amanhã, camaradas. 2. Uma das explicações para este resultado incómodo foi logo dada em directo e é repetida pelo Francisco no post aqui abaixo: o voto de protesto. Dos 80 mil votos em Salazar, muitos correspondem aos inevitáveis descontentes do actual regime. O facto de serem inevitáveis não é lá muito tranquilizante. Hoje, todos aceitamos a democracia - mesmo a maior parte dos que votaram no ditador de Santa Comba, estou certo (já não estou tão certo quanto aos que votaram em Cunhal). Faz parte da natureza da democracia não gerar grande entusiasmo, a não ser, já Tocqueville notou, se estiver em perigo. De resto, não exalta ninguém. É o reino da mediocridade. É um dado adquirido. É o que temos. E o que temos parece quase sempre pior do que um passado mítico (Salazar) ou um futuro utópico (Cunhal). A realidade parece quase sempre menos poética do que o ideal. Por isso Churchill definiu a democracia como "o pior dos regimes, excepto todos os outros". Os ingleses, que o elegeram o maior dos patrícios no concurso lá da terra, sabem-no bem. Não porque tenham votado nele na BBC, mas porque lutaram a seu lado contra Hitler. Por cá não tivemos essa sorte, graças a Deus. A democracia não nos custou "sangue, suor e lágrimas", mas apenas um ano de PREC e a luta de Soares e Sá Carneiro para normalizar as coisas. É muito, mas não parece. E, assim, a memória não guarda mais do que a revolução dos cravos, o primeiro dia do resto das nossas vidas, a poesia que está na rua, etc. - e o aumento do custo de vida, o desemprego, a Casa Pia, o arrastão, o "apito dourado", o Major, o Santana, o Manel Pinho e as maternidades que fecham. Esquecemo-nos do que significa viver sem liberdade.Já Salazar e Cunhal, como todos os mortos, só têm virtudes. Paz à sua alma. Se é que tinham alma, claro.3. Este resultado deveria ser uma lição para a esquerda que usa o antifascismo como arma de arremesso. No 31 da Armada, o Henrique Burnay critica todos os que contam a história do Estado Novo a preto e branco, com os maus de um lado e os bons do outro. Tem carradas de razão. Bastava ver a RTP 1 ontem à noite. Comentando o desfecho do concurso, Clara Fereira Alves lamentava que, mais uma vez, tenham sido "os mal intencionados" (sic) a votar, enquanto os "bem intencionados" (sic) se abstêm. Ana Gomes preocupava-se com "a nossa imagem lá fora". Leonor Pinhão invocava a "bondade" de Afonso Henriques (a sério) contra as malfeitorias (adivinhem...) do Salazar. Odete Santos, antes de converter o palco num Conselho Nacional do CDS, gritava que o verdadeiro líder está em "osmose com o povo", e dava o exemplo de Cunhal - no mesmíssimo programa em que o "povo" decidia estar em osmose com Salazar. O único aspecto positivo desta brincadeira talvez seja o fim da superioridade moral dos que, do Bloco ao PS, acusam sempre os adversários de "fascismo". Pode ser que lá cheguemos. Graças ao mauzão do Salazar, agora tenho um sonho: o sonho de que o concurso ainda venha a servir para alguma coisa.

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