Trespassados

18-04-2011
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Não vão ser só os portugueses a ficar muito pobres nos próximos dez anos. Até as raças superiores terão que conter despesas e isso pode ser uma vantagem para nós: mais pobres, os do Norte talvez se sintam tentados a trocar Bali ou o Rajastão como destinos de férias de praia ou "culturais" em favor de lugares mais baratos: as praias e o património exótico situado nas traseiras das suas casas. Portugal pode ser um desses destinos caseiros de emergência e, em vez de investirmos em eólicas, ou seja, de atirarmos dinheiro ao vento, devíamos dedicar-nos a melhorar as praias, os acessos às praias, os hotéis, os campos de golfe, o património histórico-artístico português... e a disfarçar o melhor que for possível a devastação da paisagem urbana e rural a que nos dedicamos com afinco há 50 anos.

Como escrevi a semana passada, do ponto de vista das artes antigas, Portugal não tem mais que uma dúzia de obras de arquitectura únicas, no seu género, no quadro europeu, e não tem pintores e escultores que mereçam uma viagem Munique-Lisboa. Em contrapartida, além das arquitecturas, tem uma vantagem patrimonial que pode explorar: a história artística do país e até a sua pobreza criaram ambientes únicos, inexistentes no resto da Europa.

Em primeiro lugar, temos os lugares onde há azulejo azul e branco (incluindo o respectivo museu em Lisboa). Não que estes azulejos sejam mais bonitos do que aqueles, multicoloridos, que foram criados no mundo muçulmano de Sevilha a Samarcanda. Mas os azulejos de tipo português só existem em Portugal e no Brasil. Em segundo lugar, o azulejo contribuiu de maneira decisiva para a criação de igrejas com interiores muito especiais: visitem-se, por exemplo, a Conceição dos Cardais em Lisboa ou o "Convento Novo" em Évora, obras do início do século XVIII. Daquilo não há em mais lado nenhum: as paredes estão revestidas com azulejos, painéis de pintura, molduras de talha, mármores embutidos, altares dourados. A presença de todas estas coisas em conjunto é mais significativa que cada elemento em si. Se há barroco em Portugal, é este: o esplendor da simplicidade. Seguidamente temos os claustros dos conventos, tão equilibrados e harmoniosos como os da Itália gótica e renascentista: vejam-se os claustros de D. Afonso V na Batalha, dos mosteiros do Lorvão, Grijó, São Bento da Vitória no Porto e tantos outros. As casas nobres setecentistas do vale do Lima criam outro ambiente único: não há muitas paisagens construídas com tanta coerência de conjunto. Por fim, o melhor de tudo: as vilas e aldeias que o "desenvolvimento" não destruiu, como Viana do Castelo, Óbidos, Pedrógão Grande, Castelo de Vide, Évora e muitas outras povoações por Trás-os-Montes, a Beira Interior, o Alentejo.

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No final das contas isto já foi tudo trespassado às raças superiores. Agora é só questão de as convencer a aproveitarem as vantagens: o mínimo que podemos fazer é mostrar-lhes sítios bonitos, alindar esses sítios, escondermos a fealdade... e levá-las à praia.

Historiador

Não vão ser só os portugueses a ficar muito pobres nos próximos dez anos. Até as raças superiores terão que conter despesas e isso pode ser uma vantagem para nós: mais pobres, os do Norte talvez se sintam tentados a trocar Bali ou o Rajastão como destinos de férias de praia ou "culturais" em favor de lugares mais baratos: as praias e o património exótico situado nas traseiras das suas casas. Portugal pode ser um desses destinos caseiros de emergência e, em vez de investirmos em eólicas, ou seja, de atirarmos dinheiro ao vento, devíamos dedicar-nos a melhorar as praias, os acessos às praias, os hotéis, os campos de golfe, o património histórico-artístico português... e a disfarçar o melhor que for possível a devastação da paisagem urbana e rural a que nos dedicamos com afinco há 50 anos.

Como escrevi a semana passada, do ponto de vista das artes antigas, Portugal não tem mais que uma dúzia de obras de arquitectura únicas, no seu género, no quadro europeu, e não tem pintores e escultores que mereçam uma viagem Munique-Lisboa. Em contrapartida, além das arquitecturas, tem uma vantagem patrimonial que pode explorar: a história artística do país e até a sua pobreza criaram ambientes únicos, inexistentes no resto da Europa.

Em primeiro lugar, temos os lugares onde há azulejo azul e branco (incluindo o respectivo museu em Lisboa). Não que estes azulejos sejam mais bonitos do que aqueles, multicoloridos, que foram criados no mundo muçulmano de Sevilha a Samarcanda. Mas os azulejos de tipo português só existem em Portugal e no Brasil. Em segundo lugar, o azulejo contribuiu de maneira decisiva para a criação de igrejas com interiores muito especiais: visitem-se, por exemplo, a Conceição dos Cardais em Lisboa ou o "Convento Novo" em Évora, obras do início do século XVIII. Daquilo não há em mais lado nenhum: as paredes estão revestidas com azulejos, painéis de pintura, molduras de talha, mármores embutidos, altares dourados. A presença de todas estas coisas em conjunto é mais significativa que cada elemento em si. Se há barroco em Portugal, é este: o esplendor da simplicidade. Seguidamente temos os claustros dos conventos, tão equilibrados e harmoniosos como os da Itália gótica e renascentista: vejam-se os claustros de D. Afonso V na Batalha, dos mosteiros do Lorvão, Grijó, São Bento da Vitória no Porto e tantos outros. As casas nobres setecentistas do vale do Lima criam outro ambiente único: não há muitas paisagens construídas com tanta coerência de conjunto. Por fim, o melhor de tudo: as vilas e aldeias que o "desenvolvimento" não destruiu, como Viana do Castelo, Óbidos, Pedrógão Grande, Castelo de Vide, Évora e muitas outras povoações por Trás-os-Montes, a Beira Interior, o Alentejo.

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No final das contas isto já foi tudo trespassado às raças superiores. Agora é só questão de as convencer a aproveitarem as vantagens: o mínimo que podemos fazer é mostrar-lhes sítios bonitos, alindar esses sítios, escondermos a fealdade... e levá-las à praia.

Historiador

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