NOVA ÁGUIA: REVISTA DE CULTURA PARA O SÉCULO XXI: Dangerous to me

04-08-2010
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Atravessou, devagar, mesas intermináveis arrombadas de livros. Não parou junto dos poetas, ignorou a subtileza de Borges e a crua violência de Philip Roth, não lhe mereceram os historiadores o mais simples olhar. Passou a outra sala: de um lado a encíclica do Papa, do outro o Seja Feliz Agora! e talvez um manual para druidas. Andou sempre, como se soubesse aonde havia de ir, como se à volta não houvesse mais nada. Tão longe. No último mostrador, quase escondida sob um arco de pedra, abriu devagar um álbum, enormes fotografias da Finlândia. Tinha o livro pousado, talvez não quisesse sujar os glaciares e os lagos com as suas mãos de rua e chão. De vez em quando virava uma página, voltou atrás para rever não sei que rio, não sei que terra. Mas passou depressa um grupo de crianças loiras. Se eu pudesse fugir, pensei, é nisso que ela está a pensar, se eu pudesse um dia chegar aqui. Não saí de onde estava, porque quase de certeza não tinha reparado em mim, não podia saber que do meu canto podia reconhecer as cores; fiquei quieto e quis pousar os livros que tinha escolhido mas não fui capaz, inúteis os Novos Estudos de História Medieval, subitamente inútil o Perspectives on the new Russia. E não sei porquê lembrei-me dos Pink Floyd, Hush now baby, baby don't you cryMama's gonna check out all your girl friends for youMama won't let anyone dirty get through Tenho-a encontrado na Baixa, mulher de olhos adolescentes embrulhada num enorme capote cinzento a arrastar dois sacos quase do seu tamanho onde talvez haja o cobertor de dormir. Tenho-a encontrado e da primeira vez (era a noite no Bairro Alto) pareceu-me uma hippie um pouco deslocada, só depois percebi, sem-abrigo (Mother do you think she's dangerous to me) Tantas vezes a encontrei e tantas penso que se não tivesse os olhos cinzentos, se fosse um homem baixo e barrigudo talvez os meus olhos tivessem demorado menos (Mother do you think she's good enough for me). E nunca lhe soube falar, precisas de quê, exactamente agora? (Mother do you think they'll like the song) E quando, Mestre, é que te vimos com fome e não te demos de comer. Ah, mas a mulher está parada na livraria a olhar os lagos da Finlândia mesmo que o Mestre seja uma história de adormecer, mesmo que eu tenha voz para lhe falar; e se eu pousar os livros que ia comprar e lhe disser toma o livro e os lagos da Finlândia, poderás vê-los quando a pedra te não quiser deixar dormir. Mas que adianta um livro a quem não tem onde o pousar, que adianta um mundo (Mother will she tear your little boy apart, mother will she break my heart)Talvez ela não veja, sim, talvez não queira os lagos da Finlândia, talvez ela seja louca e mais vale não lhe falar ainda havia um escândalo. Alguém devia fazer alguma coisa. E assim eu posso ler o Perspectives, mostrar-te a pureza das águas. Mother do you think they'll drop the bomb Se eu pudesse um dia chegar aqui. [a fotografia é de um lago da Finlândia, de que desconheço o autor; usei excertos de Mother, de Pink Floyd]


Atravessou, devagar, mesas intermináveis arrombadas de livros. Não parou junto dos poetas, ignorou a subtileza de Borges e a crua violência de Philip Roth, não lhe mereceram os historiadores o mais simples olhar. Passou a outra sala: de um lado a encíclica do Papa, do outro o Seja Feliz Agora! e talvez um manual para druidas. Andou sempre, como se soubesse aonde havia de ir, como se à volta não houvesse mais nada. Tão longe. No último mostrador, quase escondida sob um arco de pedra, abriu devagar um álbum, enormes fotografias da Finlândia. Tinha o livro pousado, talvez não quisesse sujar os glaciares e os lagos com as suas mãos de rua e chão. De vez em quando virava uma página, voltou atrás para rever não sei que rio, não sei que terra. Mas passou depressa um grupo de crianças loiras. Se eu pudesse fugir, pensei, é nisso que ela está a pensar, se eu pudesse um dia chegar aqui. Não saí de onde estava, porque quase de certeza não tinha reparado em mim, não podia saber que do meu canto podia reconhecer as cores; fiquei quieto e quis pousar os livros que tinha escolhido mas não fui capaz, inúteis os Novos Estudos de História Medieval, subitamente inútil o Perspectives on the new Russia. E não sei porquê lembrei-me dos Pink Floyd, Hush now baby, baby don't you cryMama's gonna check out all your girl friends for youMama won't let anyone dirty get through Tenho-a encontrado na Baixa, mulher de olhos adolescentes embrulhada num enorme capote cinzento a arrastar dois sacos quase do seu tamanho onde talvez haja o cobertor de dormir. Tenho-a encontrado e da primeira vez (era a noite no Bairro Alto) pareceu-me uma hippie um pouco deslocada, só depois percebi, sem-abrigo (Mother do you think she's dangerous to me) Tantas vezes a encontrei e tantas penso que se não tivesse os olhos cinzentos, se fosse um homem baixo e barrigudo talvez os meus olhos tivessem demorado menos (Mother do you think she's good enough for me). E nunca lhe soube falar, precisas de quê, exactamente agora? (Mother do you think they'll like the song) E quando, Mestre, é que te vimos com fome e não te demos de comer. Ah, mas a mulher está parada na livraria a olhar os lagos da Finlândia mesmo que o Mestre seja uma história de adormecer, mesmo que eu tenha voz para lhe falar; e se eu pousar os livros que ia comprar e lhe disser toma o livro e os lagos da Finlândia, poderás vê-los quando a pedra te não quiser deixar dormir. Mas que adianta um livro a quem não tem onde o pousar, que adianta um mundo (Mother will she tear your little boy apart, mother will she break my heart)Talvez ela não veja, sim, talvez não queira os lagos da Finlândia, talvez ela seja louca e mais vale não lhe falar ainda havia um escândalo. Alguém devia fazer alguma coisa. E assim eu posso ler o Perspectives, mostrar-te a pureza das águas. Mother do you think they'll drop the bomb Se eu pudesse um dia chegar aqui. [a fotografia é de um lago da Finlândia, de que desconheço o autor; usei excertos de Mother, de Pink Floyd]

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