NOVA ÁGUIA: REVISTA DE CULTURA PARA O SÉCULO XXI: O VELHO

04-08-2010
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“...pode dizer-se que um lavrador do nosso Douro ou Trás-os-Montes tem mais saber implícito na sua linguagem que qualquer indivíduo mais ou menos literalizante...”Leonardo Coimbra*Com as mãos calejadas e já acentuadamente deformadas pela artrite e pelos anos, o Velho manuseia habilmente a tesoura. A poda já está no fim, e de vez em quando ele olha para trás, contemplando o vinhedo que antes de ser seu foi de seu Pai, e antes deste, de seu Avô. Longe vão os tempos de fome trazida pelo míldio e o oídio, ou pela filoxera. Hoje o vinhedo estende-se, cheio de saúde, garantindo todos os anos boas vindimas. Paciente, o Velho continua a sua tarefa. Cada cana é por ele examinada com atenção para escolher o local exacto onde é desferido o golpe. Atrás de si, as borracheiras, nome dado às canas podadas, alinham-se como um exército vegetal em repouso retemperador de forças para o novo combate que se avizinha. Ano após ano, o ritual é executado com os mesmos gestos. Nem o Velho sabe como faz para determinar quais as canas a serem cortadas, e onde as corta. Aprendeu era ainda um gaiato, assim que trocou os bancos da Escola pelos corredores de terra ladeados pelas parras e cachos perfumados. Aprendeu vendo fazer. Aprendeu porque queria fazer, imitar o seu Pai. Seguia-o enquanto podava, em silêncio, que o seu pai era Homem de poucas falas. Mas absorvia tudo o que via. E assim que a sua mão atingiu o tamanho que lhe permitiu segurar firmemente na tesoura, começou a ajudar. Desde então, não houve um ano que não o fizesse. Agora, tantos anos depois, é com uma mágoa serena que observa estes socalcos. Atrás de si, nunca teve quem andasse. Ninguém aprendeu consigo os gestos, ninguém ao aprender os gestos se apaixonou como ele pela terra. Nem filhos, nem netos irão, um dia, percorrer estes socalcos, cana por cana. Quando a Morte o levar (e, sabe-o bem, não tardará muito, sente-o nos ossos e na alma), o seu amado vinhedo será vendido. Não mais o seu sangue avidará neste chão. Encolhe os ombros e diz, de si para si: “Paciência”. A vinha perdurará. Não sabe bem porquê, mas nesse momento, só isso lhe parece importante. "O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso da natureza. Socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis da visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta."Miguel Torga*** excerto de “Em louvor das maiorias”, in A Tribuna de 13 de Maio de 1920** in Diário XIIFoto retirada daqui.


“...pode dizer-se que um lavrador do nosso Douro ou Trás-os-Montes tem mais saber implícito na sua linguagem que qualquer indivíduo mais ou menos literalizante...”Leonardo Coimbra*Com as mãos calejadas e já acentuadamente deformadas pela artrite e pelos anos, o Velho manuseia habilmente a tesoura. A poda já está no fim, e de vez em quando ele olha para trás, contemplando o vinhedo que antes de ser seu foi de seu Pai, e antes deste, de seu Avô. Longe vão os tempos de fome trazida pelo míldio e o oídio, ou pela filoxera. Hoje o vinhedo estende-se, cheio de saúde, garantindo todos os anos boas vindimas. Paciente, o Velho continua a sua tarefa. Cada cana é por ele examinada com atenção para escolher o local exacto onde é desferido o golpe. Atrás de si, as borracheiras, nome dado às canas podadas, alinham-se como um exército vegetal em repouso retemperador de forças para o novo combate que se avizinha. Ano após ano, o ritual é executado com os mesmos gestos. Nem o Velho sabe como faz para determinar quais as canas a serem cortadas, e onde as corta. Aprendeu era ainda um gaiato, assim que trocou os bancos da Escola pelos corredores de terra ladeados pelas parras e cachos perfumados. Aprendeu vendo fazer. Aprendeu porque queria fazer, imitar o seu Pai. Seguia-o enquanto podava, em silêncio, que o seu pai era Homem de poucas falas. Mas absorvia tudo o que via. E assim que a sua mão atingiu o tamanho que lhe permitiu segurar firmemente na tesoura, começou a ajudar. Desde então, não houve um ano que não o fizesse. Agora, tantos anos depois, é com uma mágoa serena que observa estes socalcos. Atrás de si, nunca teve quem andasse. Ninguém aprendeu consigo os gestos, ninguém ao aprender os gestos se apaixonou como ele pela terra. Nem filhos, nem netos irão, um dia, percorrer estes socalcos, cana por cana. Quando a Morte o levar (e, sabe-o bem, não tardará muito, sente-o nos ossos e na alma), o seu amado vinhedo será vendido. Não mais o seu sangue avidará neste chão. Encolhe os ombros e diz, de si para si: “Paciência”. A vinha perdurará. Não sabe bem porquê, mas nesse momento, só isso lhe parece importante. "O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso da natureza. Socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis da visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta."Miguel Torga*** excerto de “Em louvor das maiorias”, in A Tribuna de 13 de Maio de 1920** in Diário XIIFoto retirada daqui.

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