Jerónimo de Sousa, quando interpela, quando debate, não é malcriado como o primeiro-ministro. E não tem a arrogância insolente do arrivista provinciano. Não se comporta como um troca-tintas compulsivo, não tropeça constantemente na verdade das proclamações qua atira aos sete ventos. É, decerto, um homem duro, mas parece ter coração. Já o vi genuinamente comovido diante de crianças que visitava. Noutra altura, ouvi-o de garganta apertada dizendo que deviam ser aquelas as privilegiadas. No trato com as pessoas que vai encontrando pela rua, tem um calor simples que Cunhal não irradiava. Não exibe, mas acontece-lhe no rosto um sorriso autêntico e enrugado - não plástico e reluzente. Está uma história escrita naquele rosto. Jerónimo não é um choramingas bipolar. Pelo contrário, as lágrimas públicas do primeiro-ministro não são mais do que a reacção da sua vaidade tocada. Sócrates comove-se consigo, não com os outros. Na verdade, raramente sai de si e os outros, para ele, existem apenas como irritantes obstáculos a arredar, como prolongamentos da sua vontade birrenta, ou como figurantes úteis. No entanto, - anteontem, no parlamento, notei isso mais uma vez - quando Jerónimo de Sousa se refere a Manuela Ferreira Leite ou se lhe dirige, transparece nele um azedume, que me parece ser algo como um ressentimento de classe. Talvez Manuela Ferreira Leite represente para ele, corporize, a distância "social" que a vida lhe mostrou. É injusto, mas subjectivamente compreensível. Certamente que, no seu percurso escolar, lhe foi indicado não poucas vezes, implícita e explicitamente, qual era o seu "lugar natural". O lugar que lhe estava necessariamente destinado. (A militância ideológica que abraçou ensina-lhe, precisamente, que essa necessidade não existe.) Provavelmente, a tomada de consciência da distância (mais distância do que mera diferença), antes de "teoricamente" injusta, é vivida subjectivamente como dolorida. Não sei se Jerónimo de Sousa terá consciência desse seu condicionamento do olhar. É o ar em que respira e nós não vemos o ar que respiramos.
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Jerónimo de Sousa, quando interpela, quando debate, não é malcriado como o primeiro-ministro. E não tem a arrogância insolente do arrivista provinciano. Não se comporta como um troca-tintas compulsivo, não tropeça constantemente na verdade das proclamações qua atira aos sete ventos. É, decerto, um homem duro, mas parece ter coração. Já o vi genuinamente comovido diante de crianças que visitava. Noutra altura, ouvi-o de garganta apertada dizendo que deviam ser aquelas as privilegiadas. No trato com as pessoas que vai encontrando pela rua, tem um calor simples que Cunhal não irradiava. Não exibe, mas acontece-lhe no rosto um sorriso autêntico e enrugado - não plástico e reluzente. Está uma história escrita naquele rosto. Jerónimo não é um choramingas bipolar. Pelo contrário, as lágrimas públicas do primeiro-ministro não são mais do que a reacção da sua vaidade tocada. Sócrates comove-se consigo, não com os outros. Na verdade, raramente sai de si e os outros, para ele, existem apenas como irritantes obstáculos a arredar, como prolongamentos da sua vontade birrenta, ou como figurantes úteis. No entanto, - anteontem, no parlamento, notei isso mais uma vez - quando Jerónimo de Sousa se refere a Manuela Ferreira Leite ou se lhe dirige, transparece nele um azedume, que me parece ser algo como um ressentimento de classe. Talvez Manuela Ferreira Leite represente para ele, corporize, a distância "social" que a vida lhe mostrou. É injusto, mas subjectivamente compreensível. Certamente que, no seu percurso escolar, lhe foi indicado não poucas vezes, implícita e explicitamente, qual era o seu "lugar natural". O lugar que lhe estava necessariamente destinado. (A militância ideológica que abraçou ensina-lhe, precisamente, que essa necessidade não existe.) Provavelmente, a tomada de consciência da distância (mais distância do que mera diferença), antes de "teoricamente" injusta, é vivida subjectivamente como dolorida. Não sei se Jerónimo de Sousa terá consciência desse seu condicionamento do olhar. É o ar em que respira e nós não vemos o ar que respiramos.