A matança do porco em casa dos meus avós era um acontecimento que me deixava sempre em pulgas, e esse alvoroço acabava apenas no dia em que se faziam as chouriças (ou chouriços se fossem mais grossos…).
O primeiro indício que me alertava para a proximidade do evento era uma alteração na dieta alimentar do porco escolhido. Se até ali ele comia de tudo, incluindo restos de cozinha, a partir de certa altura passava a haver um cuidado especial no menu, havendo por vezes algumas repreensões, principalmente às criadas, que por esta ou aquela razão negligenciavam detalhes imperdoáveis.
Só quando tinha os meus 14 ou 15 anos é que me foi permitido assistir à matança do porco. A partir daí fiquei por dentro dos pormenores. O matador, que era simultaneamente o capador, era antecipadamente contratado. A tarefa parecia-me tão fácil que sempre fiquei convencido que o chamavam porque os donos não tinham coragem de o fazer, dado o seu convívio diário com os animais.
A matança começava pelas 6 da manhã. O porco era amarrado com cordas em cima de um carro de bois, com a cabeça virada para o cabeçalho pousado no chão. Com a cabeça mais baixa o sangue sairia melhor. O matador, depois de lavar o sítio onde espetaria a faca, empurrava-a directamente ao coração. Quanto menos tempo durasse o berreiro do porco melhor era o matador.
O sangue, que saía pelo sítio do golpe, era aparado num alguidar e tinha que ficar uma pessoa a mexê-lo durante muito tempo para que não coagulasse. Servia para fazer o arroz de sarrabulho ou então era cozido para acompanhar os rojões.
Depois de morto era necessário chamuscar o porco. Era utilizada palha seca que se ia incendiando para queimar todos os pelos. Depois de chamuscado era criteriosamente lavado, com pedra-pomes e sabão até ficar com um aspecto avermelhado. Depois disso era pendurado pelo focinho num local fechado e era aberto de cima a baixo para lhe serem extraídas todas as vísceras. E ficava aberto, com uns pauzinhos e folhas de louro, durante 24 horas a escorrer.
No dia seguinte, que era o que mais gostava, o porco era desfeito, isto é, cortado em pedaços. Umas partes iam para a salgadeira, outras para serem cortadas aos bocadinhos, que ficavam em vinha-d’alhos para mais tarde fazer as tais chouriças que eram curadas ao fumeiro, outras para fazer rojões e ainda outras para dar aos vizinhos (era costume darem uns aos outros e, por isso, de Outubro a Fevereiro, os meses mais frios, havia sarrabulho pelo menos uma vez por semana. As tripas, depois de lavadas em não sei quantas águas, também eram aproveitadas para fazer as farinhotas ou farinheiras.
Nesse mesmo dia, ao fim da tarde, era a ocasião para encher as chouriças, de carne e de verde (as primeiras com a melhor carne e as segundas – havia quem lhe chamasse sanguinhas - com a pior e com muita cebola, previamente picada). Era durante essa azáfama que eu surripiava uns pedacitos de carne e me refugiava na lareira da cozinha a fazer umas espetadas como nunca mais comi na vida. Foi num dessas ocasiões que, inoportunamente chamado para fazer um qualquer recado, numa altura em que nem sequer tinha ainda provado a iguaria, eu abri a porta, apenas uma frincha para não me resfriar, e disse:
- Não posso, estou quente…
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A matança do porco em casa dos meus avós era um acontecimento que me deixava sempre em pulgas, e esse alvoroço acabava apenas no dia em que se faziam as chouriças (ou chouriços se fossem mais grossos…).
O primeiro indício que me alertava para a proximidade do evento era uma alteração na dieta alimentar do porco escolhido. Se até ali ele comia de tudo, incluindo restos de cozinha, a partir de certa altura passava a haver um cuidado especial no menu, havendo por vezes algumas repreensões, principalmente às criadas, que por esta ou aquela razão negligenciavam detalhes imperdoáveis.
Só quando tinha os meus 14 ou 15 anos é que me foi permitido assistir à matança do porco. A partir daí fiquei por dentro dos pormenores. O matador, que era simultaneamente o capador, era antecipadamente contratado. A tarefa parecia-me tão fácil que sempre fiquei convencido que o chamavam porque os donos não tinham coragem de o fazer, dado o seu convívio diário com os animais.
A matança começava pelas 6 da manhã. O porco era amarrado com cordas em cima de um carro de bois, com a cabeça virada para o cabeçalho pousado no chão. Com a cabeça mais baixa o sangue sairia melhor. O matador, depois de lavar o sítio onde espetaria a faca, empurrava-a directamente ao coração. Quanto menos tempo durasse o berreiro do porco melhor era o matador.
O sangue, que saía pelo sítio do golpe, era aparado num alguidar e tinha que ficar uma pessoa a mexê-lo durante muito tempo para que não coagulasse. Servia para fazer o arroz de sarrabulho ou então era cozido para acompanhar os rojões.
Depois de morto era necessário chamuscar o porco. Era utilizada palha seca que se ia incendiando para queimar todos os pelos. Depois de chamuscado era criteriosamente lavado, com pedra-pomes e sabão até ficar com um aspecto avermelhado. Depois disso era pendurado pelo focinho num local fechado e era aberto de cima a baixo para lhe serem extraídas todas as vísceras. E ficava aberto, com uns pauzinhos e folhas de louro, durante 24 horas a escorrer.
No dia seguinte, que era o que mais gostava, o porco era desfeito, isto é, cortado em pedaços. Umas partes iam para a salgadeira, outras para serem cortadas aos bocadinhos, que ficavam em vinha-d’alhos para mais tarde fazer as tais chouriças que eram curadas ao fumeiro, outras para fazer rojões e ainda outras para dar aos vizinhos (era costume darem uns aos outros e, por isso, de Outubro a Fevereiro, os meses mais frios, havia sarrabulho pelo menos uma vez por semana. As tripas, depois de lavadas em não sei quantas águas, também eram aproveitadas para fazer as farinhotas ou farinheiras.
Nesse mesmo dia, ao fim da tarde, era a ocasião para encher as chouriças, de carne e de verde (as primeiras com a melhor carne e as segundas – havia quem lhe chamasse sanguinhas - com a pior e com muita cebola, previamente picada). Era durante essa azáfama que eu surripiava uns pedacitos de carne e me refugiava na lareira da cozinha a fazer umas espetadas como nunca mais comi na vida. Foi num dessas ocasiões que, inoportunamente chamado para fazer um qualquer recado, numa altura em que nem sequer tinha ainda provado a iguaria, eu abri a porta, apenas uma frincha para não me resfriar, e disse:
- Não posso, estou quente…