Para a escrita, as mãos são pouco importantesO essencial é o que se calçaHoje estou outra vez como o tolo no meio da ponte. Não sei o que escrever. Mas, subitamente, vem-me à lembrança uma antiga história que ouvi ao meu avô. E já tenho assunto, porque vou a correr comprar uns sapatos de escrever.Voltei. Agora sim, posso começar…O Chico Molhinho foi admitido para uma grande empresa. Como tinha o curso secundário, ingressou na contabilidade. Mas logo verificou que tinha enormes dificuldades em perceber o que se estava a passar à sua volta, onde só ouvia palavras estranhas ao seu vocabulário (balancete, diário, razão, etc., etc.) e só o mandavam fazer recados. Intrigado e assustado resolveu investigar. Ao fim de duas ou três semanas, viu que um aspecto a ter em conta, ao fim e ao cabo aquele pormenor que o diferenciava dos demais, eram os sapatos.Originário de uma família pobre, o coitado usava uns sapatos comprados na feira há mais de um ano atrás. As solas deviam ser de papelão, a cor do pretenso cabedal já era indefinida e estavam mais cambados que a Torre de Pisa. Todos os outros funcionários calçavam sapatos pretos, brilhantes do lustro da graxa que por certo diariamente aplicavam.No próprio dia da descoberta, chegado a casa, contou a desdita aos pais e a mãe resolveu logo o assunto. Virou-se para o marido:- O rapaz tem razão. Vai já com ele ao Tone Tamanqueiro comprar-lhe uns sapatos.E saíram de imediato para a missão. Para além de muitos tipos de chancas, com e sem tacholas na sola, que eram o maná dos consertadores de furos nos pneus, o estabelecimento do Tone Tamanqueiro tinha para venda apenas 2 ou 3 modelos de sapatos. E nenhum deles se assemelhava aos dos colegas, pelo que o nosso Chico Molhinho começou a fazer focinhos às amostras.- Ó raio de rapaz… Não me digas que não gostas de nenhuns. Olha que eu nunca comprei para mim uns sapatos deste preço. Afinal o que é que tu queres?O Chico estava desolado. Com os sapatos que tinha na sua frente continuaria a ser diferente dos outros. Hesitou, titubeou, mas lá desembuchou:- Nenhuns destes servem para o que eu preciso. O que eu quero são uns sapatos de escrever.
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Para a escrita, as mãos são pouco importantesO essencial é o que se calçaHoje estou outra vez como o tolo no meio da ponte. Não sei o que escrever. Mas, subitamente, vem-me à lembrança uma antiga história que ouvi ao meu avô. E já tenho assunto, porque vou a correr comprar uns sapatos de escrever.Voltei. Agora sim, posso começar…O Chico Molhinho foi admitido para uma grande empresa. Como tinha o curso secundário, ingressou na contabilidade. Mas logo verificou que tinha enormes dificuldades em perceber o que se estava a passar à sua volta, onde só ouvia palavras estranhas ao seu vocabulário (balancete, diário, razão, etc., etc.) e só o mandavam fazer recados. Intrigado e assustado resolveu investigar. Ao fim de duas ou três semanas, viu que um aspecto a ter em conta, ao fim e ao cabo aquele pormenor que o diferenciava dos demais, eram os sapatos.Originário de uma família pobre, o coitado usava uns sapatos comprados na feira há mais de um ano atrás. As solas deviam ser de papelão, a cor do pretenso cabedal já era indefinida e estavam mais cambados que a Torre de Pisa. Todos os outros funcionários calçavam sapatos pretos, brilhantes do lustro da graxa que por certo diariamente aplicavam.No próprio dia da descoberta, chegado a casa, contou a desdita aos pais e a mãe resolveu logo o assunto. Virou-se para o marido:- O rapaz tem razão. Vai já com ele ao Tone Tamanqueiro comprar-lhe uns sapatos.E saíram de imediato para a missão. Para além de muitos tipos de chancas, com e sem tacholas na sola, que eram o maná dos consertadores de furos nos pneus, o estabelecimento do Tone Tamanqueiro tinha para venda apenas 2 ou 3 modelos de sapatos. E nenhum deles se assemelhava aos dos colegas, pelo que o nosso Chico Molhinho começou a fazer focinhos às amostras.- Ó raio de rapaz… Não me digas que não gostas de nenhuns. Olha que eu nunca comprei para mim uns sapatos deste preço. Afinal o que é que tu queres?O Chico estava desolado. Com os sapatos que tinha na sua frente continuaria a ser diferente dos outros. Hesitou, titubeou, mas lá desembuchou:- Nenhuns destes servem para o que eu preciso. O que eu quero são uns sapatos de escrever.