Almanaque Republicano

21-01-2011
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EPITÁFIO - por Miguel de Unamuno [Parte II]"Mas de entre as muitas coisas, todas elas vergonhosíssimas, que ouvi acerca do infeliz monarca, a que porventura se me afigura mais grave, se bem que de um ponto de vista de moral corrente possa aos outros não o parecer, é que ele desprezava o seu povo. O pecado mais grave de D. Carlos, o seu pecado imperdoável, é que desprezava Portugal. Costumava dizer, falando da pátria onde reinava: Isto é uma piolheira. E assim como o Evangelho diz que pecados contra o Espírito Santo não têm remissão nem nesta vida nem na outra, assim é pecado irremissível o desprezo de um soberano pelo seu povo. A circunstância de não ser um homem privado de inteligência ou sequer vulgar, agrava a sua culpa a este respeito. O defunto D. Carlos não era um idiota nem se pode dizer que fosse uma inteligência inteiramente vulgar. O que ele foi sempre foi um egoísta astuto e um desenfreado gozador da vida. O seu corpo era reflexo da sua alma: nele o físico revelava o moral. Era do tipo de Falstaff.E este desgraçado monarca fez uma espécie de pacto com João Franco, o ditador, a quem muitos agora culpam da morte daquele e do seu filho. Incluindo a própria rainha viúva. O pacto consistiu em que Franco daria ao rei aquilo de que este necessitava, ouro, justificando de uma ou de outra maneira os adiantamentos ou antecipações ilegais do Tesouro Público e aumentando-lhe a lista civil, e o rei daria a Franco o que a este apetecia com frenesi do monomaníaco: o poder. Porque o apetite do poder que atingira Franco era uma verdadeira loucura. Recordando o que se conta do negociante Yanque ao dizer ao seu filho: my son, make money, honestly if you can, but make Money (meu filho, faz dinheiro, honradamente se puderes, mas faz dinheiro), - cabe dizer que o lema de Franco era: conserva o poder, honradamente se puderes, mas conserva-o.Entre os portugueses que conheço, até os mais hostis ao ex-ditador reconhecem, quando falam serena e desapaixonadamente, que Franco tinha de princípio certas boas intenções e propunha-se, caso lhe fosse possível, introduzir ordem e rigor na desconcertada e corrompida administração pública portuguesa. Mas antes disso, e sobretudo, o seu propósito era exercer e deter o poder. Para lograr levar a cabo esses seus supostos bons propósitos havia um grande obstáculo, que era a própria causa do seu poder: ter transigido com as artimanhas do rei. É difícil cimentar uma administração honrada com um poder que deve a sua origem a uma violação da estrita honradez pública.Franco cometeu imensos atropelos para reduzir o montante das dívidas do rei. E chamar-lhes dívidas é o menos que se pode dizer... No fundo, para o ditador tratava-se, mais do que ser honrado, de parecê-lo. A virtude era para ele uma arma. Ao serviço do seu frenético apetite de mandar tinha uma enorme dose de hipocrisia. Mentia com o coração na mão, segundo palavras de Guerra Junqueiro. Assim chegou a enganar muita gente acerca dos seus propósitos de regeneração económica. E contribuía para que nele acreditassem o facto de João Franco, sendo riquíssimo, dono de uma enorme fortuna pessoal, estar livre da suspeita de perseguir o lucro.E ambos, o rei e o seu ministro, desconheciam o seu povo. O que nada tem de estranho, visto que o desconhecia - e continua talvez a desconhecer - a maior parte dos portugueses europeizantes ou europeizados e tão pouco o conhecemos muitos dos que, há algum tempo, atentamente o tomamos como objecto do nosso estudo".(continua)[pré-publicação de um texto de M. Unamuno, que faz parte da Antologia sobre esse importante pensador, intitulada "Portugal, Povo de Suicidas" e a sair brevemente sob edição da Livraria Letra Livre (com tradução de Rui Caeiro)]J.M.M.


EPITÁFIO - por Miguel de Unamuno [Parte II]"Mas de entre as muitas coisas, todas elas vergonhosíssimas, que ouvi acerca do infeliz monarca, a que porventura se me afigura mais grave, se bem que de um ponto de vista de moral corrente possa aos outros não o parecer, é que ele desprezava o seu povo. O pecado mais grave de D. Carlos, o seu pecado imperdoável, é que desprezava Portugal. Costumava dizer, falando da pátria onde reinava: Isto é uma piolheira. E assim como o Evangelho diz que pecados contra o Espírito Santo não têm remissão nem nesta vida nem na outra, assim é pecado irremissível o desprezo de um soberano pelo seu povo. A circunstância de não ser um homem privado de inteligência ou sequer vulgar, agrava a sua culpa a este respeito. O defunto D. Carlos não era um idiota nem se pode dizer que fosse uma inteligência inteiramente vulgar. O que ele foi sempre foi um egoísta astuto e um desenfreado gozador da vida. O seu corpo era reflexo da sua alma: nele o físico revelava o moral. Era do tipo de Falstaff.E este desgraçado monarca fez uma espécie de pacto com João Franco, o ditador, a quem muitos agora culpam da morte daquele e do seu filho. Incluindo a própria rainha viúva. O pacto consistiu em que Franco daria ao rei aquilo de que este necessitava, ouro, justificando de uma ou de outra maneira os adiantamentos ou antecipações ilegais do Tesouro Público e aumentando-lhe a lista civil, e o rei daria a Franco o que a este apetecia com frenesi do monomaníaco: o poder. Porque o apetite do poder que atingira Franco era uma verdadeira loucura. Recordando o que se conta do negociante Yanque ao dizer ao seu filho: my son, make money, honestly if you can, but make Money (meu filho, faz dinheiro, honradamente se puderes, mas faz dinheiro), - cabe dizer que o lema de Franco era: conserva o poder, honradamente se puderes, mas conserva-o.Entre os portugueses que conheço, até os mais hostis ao ex-ditador reconhecem, quando falam serena e desapaixonadamente, que Franco tinha de princípio certas boas intenções e propunha-se, caso lhe fosse possível, introduzir ordem e rigor na desconcertada e corrompida administração pública portuguesa. Mas antes disso, e sobretudo, o seu propósito era exercer e deter o poder. Para lograr levar a cabo esses seus supostos bons propósitos havia um grande obstáculo, que era a própria causa do seu poder: ter transigido com as artimanhas do rei. É difícil cimentar uma administração honrada com um poder que deve a sua origem a uma violação da estrita honradez pública.Franco cometeu imensos atropelos para reduzir o montante das dívidas do rei. E chamar-lhes dívidas é o menos que se pode dizer... No fundo, para o ditador tratava-se, mais do que ser honrado, de parecê-lo. A virtude era para ele uma arma. Ao serviço do seu frenético apetite de mandar tinha uma enorme dose de hipocrisia. Mentia com o coração na mão, segundo palavras de Guerra Junqueiro. Assim chegou a enganar muita gente acerca dos seus propósitos de regeneração económica. E contribuía para que nele acreditassem o facto de João Franco, sendo riquíssimo, dono de uma enorme fortuna pessoal, estar livre da suspeita de perseguir o lucro.E ambos, o rei e o seu ministro, desconheciam o seu povo. O que nada tem de estranho, visto que o desconhecia - e continua talvez a desconhecer - a maior parte dos portugueses europeizantes ou europeizados e tão pouco o conhecemos muitos dos que, há algum tempo, atentamente o tomamos como objecto do nosso estudo".(continua)[pré-publicação de um texto de M. Unamuno, que faz parte da Antologia sobre esse importante pensador, intitulada "Portugal, Povo de Suicidas" e a sair brevemente sob edição da Livraria Letra Livre (com tradução de Rui Caeiro)]J.M.M.

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