A ministra da Saúde, Ana Jorge, tem pronta uma portaria que define os incentivos financeiros a atribuir aos profissionais das unidades de saúde familiar: médicos, enfermeiros e pessoal administrativo. A actividade dessas unidades inclui apoio domiciliário a grávidas, acompanhamento de doentes hipertensos, consultas em horário pós-laboral e aos fins-de-semana, etc. Na prática, traduz-se na atribuição de médico de família aos doentes-alvo. Depois de aprovado (vai começar agora a fase de negociação com os sindicatos), o diploma permitirá que os profissionais dessas unidades recebam “montantes aliciantes” pelo seu trabalho. Devemos presumir que, sem os referidos incentivos, esses profissionais cruzam os braços. De que cabecinha terá partido a lógica dos incentivos financeiros? Não tenho nada contra nem me incomodam os grandes salários. Pelo contrário. O que me incomoda são os pequenos salários, que devem afectar 90% da população activa, e as pensões de miséria, que afectam talvez dois terços dos pensionistas. Pré-existindo salário, um incentivo financeiro é uma aberração, e uma dupla aberração em profissionais de prestígio, por muito que o dr. Eduardo Barroso diga o contrário. O dr. Eduardo Barroso foi durante muitos anos director do serviço de cirurgia-geral e transplantação do Hospital Curry Cabral, de Lisboa, e é hoje presidente da Autoridade para os Serviços de Sangue e de Transplantação. Conforme publicado na edição da revista Visão da semana passada, terá recebido, em 2007, só em “prémios”, mais de 277 mil euros. Ontem, na televisão, disse que o valor divulgado peca por defeito: os seus proventos reais, só em “prémios”, seriam ligeiramente superiores. O ponto não é o montante. Se os gestores das empresas públicas auferem os salários que auferem (e benefits correlatos), um cirurgião de transplantes deve ser remunerado em conformidade. A ideia de “prémios” é que me parece abstrusa. Quando um profissional como o dr. Eduardo Barroso vem dizer, como ainda ontem repetiu enfaticamente na televisão, que sem incentivos financeiros, ou seja, sem “prémios”, os médicos das unidades de transplantes vão a correr para o privado, alguma coisa vai mal no Serviço Nacional de Saúde. A lenda dos privados tem de ser desmontada, porque os privados fazem contas, e ninguém acredita que um hospital privado esteja disposto a gastar mais de oito milhões de euros por ano em 136 transplantes hepáticos (cerca de 7,5 milhões de euros) e 46 transplantes renais (cerca de 600 mil euros), que foi quanto gastou o Hospital Curry Cabral no ano passado. No privado, com tais gastos, a que preço ficariam as intervenções para quem delas necessitasse? Portanto, talvez seja altura de recomendar a tão ilustres profissionais que não devem hesitar. Se o privado está disposto a atribuir-lhes estatuto de marajá, força! Infelizmente, a questão não se esgota nos cirurgiões de elite. A portaria que define os incentivos financeiros a atribuir aos profissionais das unidades de saúde familiar, que a ministra vai começar a negociar com os sindicatos, suscita a maior perplexidade. Por este andar, teremos bombeiros a exigir incentivo financeiro para combater fogos fora do concelho da sua residência e, por associação, profissionais de todas as áreas (de telefonistas a fiscais de finanças) a lutar por tratamento igual. Etiquetas: Política nacional, Saúde, Sociedade
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A ministra da Saúde, Ana Jorge, tem pronta uma portaria que define os incentivos financeiros a atribuir aos profissionais das unidades de saúde familiar: médicos, enfermeiros e pessoal administrativo. A actividade dessas unidades inclui apoio domiciliário a grávidas, acompanhamento de doentes hipertensos, consultas em horário pós-laboral e aos fins-de-semana, etc. Na prática, traduz-se na atribuição de médico de família aos doentes-alvo. Depois de aprovado (vai começar agora a fase de negociação com os sindicatos), o diploma permitirá que os profissionais dessas unidades recebam “montantes aliciantes” pelo seu trabalho. Devemos presumir que, sem os referidos incentivos, esses profissionais cruzam os braços. De que cabecinha terá partido a lógica dos incentivos financeiros? Não tenho nada contra nem me incomodam os grandes salários. Pelo contrário. O que me incomoda são os pequenos salários, que devem afectar 90% da população activa, e as pensões de miséria, que afectam talvez dois terços dos pensionistas. Pré-existindo salário, um incentivo financeiro é uma aberração, e uma dupla aberração em profissionais de prestígio, por muito que o dr. Eduardo Barroso diga o contrário. O dr. Eduardo Barroso foi durante muitos anos director do serviço de cirurgia-geral e transplantação do Hospital Curry Cabral, de Lisboa, e é hoje presidente da Autoridade para os Serviços de Sangue e de Transplantação. Conforme publicado na edição da revista Visão da semana passada, terá recebido, em 2007, só em “prémios”, mais de 277 mil euros. Ontem, na televisão, disse que o valor divulgado peca por defeito: os seus proventos reais, só em “prémios”, seriam ligeiramente superiores. O ponto não é o montante. Se os gestores das empresas públicas auferem os salários que auferem (e benefits correlatos), um cirurgião de transplantes deve ser remunerado em conformidade. A ideia de “prémios” é que me parece abstrusa. Quando um profissional como o dr. Eduardo Barroso vem dizer, como ainda ontem repetiu enfaticamente na televisão, que sem incentivos financeiros, ou seja, sem “prémios”, os médicos das unidades de transplantes vão a correr para o privado, alguma coisa vai mal no Serviço Nacional de Saúde. A lenda dos privados tem de ser desmontada, porque os privados fazem contas, e ninguém acredita que um hospital privado esteja disposto a gastar mais de oito milhões de euros por ano em 136 transplantes hepáticos (cerca de 7,5 milhões de euros) e 46 transplantes renais (cerca de 600 mil euros), que foi quanto gastou o Hospital Curry Cabral no ano passado. No privado, com tais gastos, a que preço ficariam as intervenções para quem delas necessitasse? Portanto, talvez seja altura de recomendar a tão ilustres profissionais que não devem hesitar. Se o privado está disposto a atribuir-lhes estatuto de marajá, força! Infelizmente, a questão não se esgota nos cirurgiões de elite. A portaria que define os incentivos financeiros a atribuir aos profissionais das unidades de saúde familiar, que a ministra vai começar a negociar com os sindicatos, suscita a maior perplexidade. Por este andar, teremos bombeiros a exigir incentivo financeiro para combater fogos fora do concelho da sua residência e, por associação, profissionais de todas as áreas (de telefonistas a fiscais de finanças) a lutar por tratamento igual. Etiquetas: Política nacional, Saúde, Sociedade