O caso do Centro Comercial Stop, um decrépito shopping tomado por dezenas de bandas, que se tornou num espaço modelo de criatividade, mostra, para a organização do Future Places, o interesse deste festival, que ontem terminou. Pedro Rios (texto) e Paulo Pimenta (fotografia)
Heitor Alvelos, curador do Future Placesa A Praça dos Poveiros não costuma ser isto: um grupo de miúdos em delírio por poder pegar em letras de esferovite e formar impropérios dirigidos ao primeiro-ministro, um homem de malas feitas para Barcelona, com o cachecol do clube local, a pedir que o fotografassem ao lado da palavra "Roxana", uma outra mensagem descontente ("o futuro não é o Sócrates") montada numa parede e o convencional "Amo-te" no chão.
Habituado a intervir na rua, sobretudo através do grafíti., Miguel Januário, artista de rua, deixou essa tarefa nas mãos do povo, anteontem à tarde. O convite passava por deixar qualquer pessoa pegar em dezenas de letras e "escrever o futuro". Os resultados fizeram-no sorrir.
Type the Future foi uma das intervenções do Future Places, festival que ocupou parte da cidade entre terça-feira e ontem. "A Praça dos Poveiros precisa de ser reinventada em termos da sua narrativa", diz Heitor Alvelos, curador do festival e professor da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP). A praça, esventrada pela entrada para um parque de estacionamento subterrâneo, é, para a maioria dos portuenses, um mero local de passagem. O festival tentou imaginar um futuro em que assim não fosse. Um futuro estranho, como o da garagem Passos Manuel, transformada em auditório de uma orquestra...de automóveis.
O Future Places, que se insere no programa de cooperação estabelecido entre a Universidade do Texas, em Austin, nos Estados Unidos, e as universidades do Porto e Nova de Lisboa (ver caixa), propôs uma reflexão sobre o papel dos media digitais nas culturas locais, mas também sobre a forma como a cultura e a economia criativa pode participar no desenvolvimento. Quer também "perspectivar locais de futuro", acrescenta Heitor Alvelos.
Não quer ser confundido com um dos muitos festivais de artes, muitos deles com que têm surgido no Porto nos últimos anos. "Há festivais que abrem momentos de catarse e de ruptura. Há uma missão nesses festivais, o que não invalida o Future Places, que pretende um trabalho mais contínuo", explica. "Não quer audiência, não quer espectadores passivos. O desafio é que as pessoas participem no que está a ser feito".
No Porto, já "há importantes lugares de futuro, como o Maus Hábitos", o centro do Future Places deste ano, afirma Karen Gustafson, coordenadora, em Austin, do programa de media digitais do acordo entre a Universidade do Texas e Portugal. "É uma incubadora de culturas emergentes e é um modelo para outras cidades".
Durante os dias do festival, o espaço da Rua Passos Manuel acolheu uma fábrica de t-shirts, uma instalação interactiva com sons captados em vários pontos do Porto, um "laboratório de comida" e a sede da Rádio Futura, que acompanhou o Future Places no éter e na Internet. O festival espalhou-se também por outros locais da cidade, como o Centro Comercial Stop e a FBAUP.
Margens e instituições
Há duas semanas, quando uma centena de músicos que ensaiam no Centro Comercial Stop (um decrépito shopping do Porto que ganhou uma segunda vida com a transformação das lojas em salas de ensaios) subiram ao palco da sala Suggia, Heitor Alvelos não conseguir não sentir uma pontinha de orgulho.
Em 2008, o Future Places imaginou um futuro diferente para aquela comunidade e ei-lo concretizado no palco maior da Casa da Música: uma comunidade, nascida à margem das instituições, no mais "institucional" dos palcos musicais da cidade, uma "ponte entre um shopping falido e um auditório para música erudita". A produzir algo "que só podia vir daqui", do Porto. "O mérito é dos músicos. Foram eles que criaram esta realidade. O nosso papel é muito mais o de viabilização", reflecte o curador, que assinala que as instituições culturais do Porto "estão a fazer uma leitura correcta" do contexto em que se movem. Ao apostar nos músicos do Stop, a Casa da Música "está a compreender que estes sectores são fundamentais para que ela se renove".
O fenómeno impressiona também os outros dois curadores do Future Places. Bruce Pennycook, professor de composição musical na Universidade do Texas, diz que "não há muitas cidades com sítios destes". Karen Gustafson acrescenta: "Penso que o Stop representa uma enorme mudança cultural num curto período de tempo, o que mostra o poder da organização de comunidades. Tantos músicos trabalhavam lado a lado em termos de espaço, mas não estavam ligados numa comunidade coesa. Nos últimos dois anos, parece que isto mudou radicalmente e que o Stop se tornou um ponto de encontro cultural poderoso, com um grande potencial para intervenções futuras".
Necessidade de explosão
O caso do Stop, que este ano recebeu um dos vários workshops do programa, é sintomático do "momento particularmente interessante" que o Porto atravessa, afirma Heitor Alvelos. "Há muita gente com vontade de fazer coisas. A aparente ausência de recursos torna as pessoas mais criativas" e obriga-as a criar "outras lógicas" de criação e divulgação do trabalho. No Porto, "muita da vanguarda vem do improviso", refere.
"Há uma necessidade de explosão nesta cidade", observa Miguel Januário. Uma necessidade que, para o artista, nasce também do que diz ser a falta de aposta do actual Executivo camarário na cultura. É um "anti-estímulo que se torna estímulo" e que é visível no fervilhar nocturno da Baixa, reflecte.
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No Porto, Heitor Alvelos detecta outros problemas, que não são exclusivos da cidade. O "problema crónico do trânsito que encrava a cidade, sem que se veja vontade de alguém para o resolver", a "agonia" contínua do comércio tradicional - matizada, ainda assim, por novas lojas e novas ideias de comércio, em campos como a moda - e o "alheamento" cívico. Também nesta questão os media digitais têm uma palavra a dizer. O Future Places montou um workshop sobre como montar e manter uma rádio na Internet e mostrou a experiência Hiperbarrio, uma comunidade de jovens bloggers de Medellín, na Colômbia.
"Um dos papéis do Future Places é mostrar às pessoas em todo o mundo os extraordinários recursos criativos e tecnológicos que o Porto pode oferecer. O Porto possui uma cultura imensamente rica, diversa e é a casa de uma das universidades de topo do país, que está a produzir inovações na engenharia, no design, nas artes", frisa Karen Gustafson.
Falta, porém, "ocupar uma posição mais visível na cena global". A cidade "deve ser reconhecida pelo que é: o local fértil para as indústrias tecnológicas e para a comunidade mundial de media digitais. O Future Places é uma parte deste esforço para aumentar a visibilidade do Porto como centro de actividades criativas".
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O caso do Centro Comercial Stop, um decrépito shopping tomado por dezenas de bandas, que se tornou num espaço modelo de criatividade, mostra, para a organização do Future Places, o interesse deste festival, que ontem terminou. Pedro Rios (texto) e Paulo Pimenta (fotografia)
Heitor Alvelos, curador do Future Placesa A Praça dos Poveiros não costuma ser isto: um grupo de miúdos em delírio por poder pegar em letras de esferovite e formar impropérios dirigidos ao primeiro-ministro, um homem de malas feitas para Barcelona, com o cachecol do clube local, a pedir que o fotografassem ao lado da palavra "Roxana", uma outra mensagem descontente ("o futuro não é o Sócrates") montada numa parede e o convencional "Amo-te" no chão.
Habituado a intervir na rua, sobretudo através do grafíti., Miguel Januário, artista de rua, deixou essa tarefa nas mãos do povo, anteontem à tarde. O convite passava por deixar qualquer pessoa pegar em dezenas de letras e "escrever o futuro". Os resultados fizeram-no sorrir.
Type the Future foi uma das intervenções do Future Places, festival que ocupou parte da cidade entre terça-feira e ontem. "A Praça dos Poveiros precisa de ser reinventada em termos da sua narrativa", diz Heitor Alvelos, curador do festival e professor da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP). A praça, esventrada pela entrada para um parque de estacionamento subterrâneo, é, para a maioria dos portuenses, um mero local de passagem. O festival tentou imaginar um futuro em que assim não fosse. Um futuro estranho, como o da garagem Passos Manuel, transformada em auditório de uma orquestra...de automóveis.
O Future Places, que se insere no programa de cooperação estabelecido entre a Universidade do Texas, em Austin, nos Estados Unidos, e as universidades do Porto e Nova de Lisboa (ver caixa), propôs uma reflexão sobre o papel dos media digitais nas culturas locais, mas também sobre a forma como a cultura e a economia criativa pode participar no desenvolvimento. Quer também "perspectivar locais de futuro", acrescenta Heitor Alvelos.
Não quer ser confundido com um dos muitos festivais de artes, muitos deles com que têm surgido no Porto nos últimos anos. "Há festivais que abrem momentos de catarse e de ruptura. Há uma missão nesses festivais, o que não invalida o Future Places, que pretende um trabalho mais contínuo", explica. "Não quer audiência, não quer espectadores passivos. O desafio é que as pessoas participem no que está a ser feito".
No Porto, já "há importantes lugares de futuro, como o Maus Hábitos", o centro do Future Places deste ano, afirma Karen Gustafson, coordenadora, em Austin, do programa de media digitais do acordo entre a Universidade do Texas e Portugal. "É uma incubadora de culturas emergentes e é um modelo para outras cidades".
Durante os dias do festival, o espaço da Rua Passos Manuel acolheu uma fábrica de t-shirts, uma instalação interactiva com sons captados em vários pontos do Porto, um "laboratório de comida" e a sede da Rádio Futura, que acompanhou o Future Places no éter e na Internet. O festival espalhou-se também por outros locais da cidade, como o Centro Comercial Stop e a FBAUP.
Margens e instituições
Há duas semanas, quando uma centena de músicos que ensaiam no Centro Comercial Stop (um decrépito shopping do Porto que ganhou uma segunda vida com a transformação das lojas em salas de ensaios) subiram ao palco da sala Suggia, Heitor Alvelos não conseguir não sentir uma pontinha de orgulho.
Em 2008, o Future Places imaginou um futuro diferente para aquela comunidade e ei-lo concretizado no palco maior da Casa da Música: uma comunidade, nascida à margem das instituições, no mais "institucional" dos palcos musicais da cidade, uma "ponte entre um shopping falido e um auditório para música erudita". A produzir algo "que só podia vir daqui", do Porto. "O mérito é dos músicos. Foram eles que criaram esta realidade. O nosso papel é muito mais o de viabilização", reflecte o curador, que assinala que as instituições culturais do Porto "estão a fazer uma leitura correcta" do contexto em que se movem. Ao apostar nos músicos do Stop, a Casa da Música "está a compreender que estes sectores são fundamentais para que ela se renove".
O fenómeno impressiona também os outros dois curadores do Future Places. Bruce Pennycook, professor de composição musical na Universidade do Texas, diz que "não há muitas cidades com sítios destes". Karen Gustafson acrescenta: "Penso que o Stop representa uma enorme mudança cultural num curto período de tempo, o que mostra o poder da organização de comunidades. Tantos músicos trabalhavam lado a lado em termos de espaço, mas não estavam ligados numa comunidade coesa. Nos últimos dois anos, parece que isto mudou radicalmente e que o Stop se tornou um ponto de encontro cultural poderoso, com um grande potencial para intervenções futuras".
Necessidade de explosão
O caso do Stop, que este ano recebeu um dos vários workshops do programa, é sintomático do "momento particularmente interessante" que o Porto atravessa, afirma Heitor Alvelos. "Há muita gente com vontade de fazer coisas. A aparente ausência de recursos torna as pessoas mais criativas" e obriga-as a criar "outras lógicas" de criação e divulgação do trabalho. No Porto, "muita da vanguarda vem do improviso", refere.
"Há uma necessidade de explosão nesta cidade", observa Miguel Januário. Uma necessidade que, para o artista, nasce também do que diz ser a falta de aposta do actual Executivo camarário na cultura. É um "anti-estímulo que se torna estímulo" e que é visível no fervilhar nocturno da Baixa, reflecte.
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No Porto, Heitor Alvelos detecta outros problemas, que não são exclusivos da cidade. O "problema crónico do trânsito que encrava a cidade, sem que se veja vontade de alguém para o resolver", a "agonia" contínua do comércio tradicional - matizada, ainda assim, por novas lojas e novas ideias de comércio, em campos como a moda - e o "alheamento" cívico. Também nesta questão os media digitais têm uma palavra a dizer. O Future Places montou um workshop sobre como montar e manter uma rádio na Internet e mostrou a experiência Hiperbarrio, uma comunidade de jovens bloggers de Medellín, na Colômbia.
"Um dos papéis do Future Places é mostrar às pessoas em todo o mundo os extraordinários recursos criativos e tecnológicos que o Porto pode oferecer. O Porto possui uma cultura imensamente rica, diversa e é a casa de uma das universidades de topo do país, que está a produzir inovações na engenharia, no design, nas artes", frisa Karen Gustafson.
Falta, porém, "ocupar uma posição mais visível na cena global". A cidade "deve ser reconhecida pelo que é: o local fértil para as indústrias tecnológicas e para a comunidade mundial de media digitais. O Future Places é uma parte deste esforço para aumentar a visibilidade do Porto como centro de actividades criativas".