O poder como sequela

23-10-2010
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AHistória está sempre a pregar-nos partidas. O comunismo percorreu a História do século XX como a promessa de um futuro radioso, mas quando o século chegou ao fim não passava de uma ideia morta. As purgas, as mortes, o Gulag, as perseguições, a liberdade aniquilada. O lado oculto do ideal era um mundo grotesco, paranóico, disfuncional. Foi uma partida que a História pregou aos homens, mas não teve lá muita graça.

Anacrónico, o comunismo sobreviveu até ao novo século. Chegou lá por dois caminhos. A China compreendeu que o capitalismo era o futuro do comunismo e prospera. Tal como o comunismo, este gigante tem duas faces. A radiosa é concreta, da cor do dinheiro. A negra é feita da exploração selvagem do trabalho contra a qual o comunismo se ergueu e da repressão dos direitos humanos. Crimes que a potência global em que a China se tornou escondem.

Mas como acontece nas histórias de novos-ricos, a China tem um irmão desgraçado e não tem outro remédio além de aturá-lo. Esse vizinho é a Coreia do Norte.

Se a China descobriu as vantagens de combinar o mercado livre e a ditadura do proletariado, na Coreia do Norte o regime sobrevive graças a uma combinação ainda mais exótica, anacrónica e contraditória. Em Pyongyang faz-se a ponte entre o marxismo-leninismo e a monarquia absoluta. Não parecem interessados em mudar.

É assim desde a fundação do país, em 1948. Kim Il-sung, o Grande Líder, o primeiro chefe, morreu em 1994 mas continua no centro da mitologia do regime. Ele é o inventor da juche, a ideologia que pretende distinguir o comunismo norte-coreano como único no mundo. Mas o que torna original este regime, a verdadeira juche, é a transmissão do poder de pai para filho. E ao "Grande Líder" sucedeu o "Querido Líder", Kim Jong-il, hoje o senhor da Coreia do Norte e em cujo reinado o país se tornou numa potência nuclear. Agora, chegou a vez do terceiro membro da dinastia. Kim Jong-un, o filho mais novo do actual líder, foi apresentado no domingo às massas e presenciou aquela que terá sido a maior parada militar da história do país.

Kim primeiro, Kim segundo, Kim terceiro.

O povo é quem mais ordena.

Mas esta monarquia vermelha é realmente singular. O que a distingue é cada sucessor ser potencialmente pior do que o antecessor. Mais do que uma dinastia, é uma sequela. Como no cinema, o original é que conta, as sequelas são para fazer render o peixe e para esquecer.

É o que está escrito nesta fotografia de Kim segundo, pai, à direita, e Kim que virá a ser terceiro, filho, à esquerda.

Kim segundo é um típico caso edipiano. Escondido atrás dos seus óculos escuros, é o protótipo do filho esmagado pelo pai. Cada fotografia sua é um tratado de psicanálise. Aparece sempre rodeado por pequenos generais de enormes bonés de estilo soviético, com sorrisos liliputianos - o inferno é governado por homens submissos.

Perante o sucessor, Kim perde um pouco a aura de filho que nunca se libertou. E na expressão que a câmara captou escapa uma desconfiança, um cepticismo e também pena, não se sabe se do filho, se de si próprio se do país.

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Como se a entronização de Kim terceiro fosse um ocaso. a

miguel.gaspar@publico.pt

AHistória está sempre a pregar-nos partidas. O comunismo percorreu a História do século XX como a promessa de um futuro radioso, mas quando o século chegou ao fim não passava de uma ideia morta. As purgas, as mortes, o Gulag, as perseguições, a liberdade aniquilada. O lado oculto do ideal era um mundo grotesco, paranóico, disfuncional. Foi uma partida que a História pregou aos homens, mas não teve lá muita graça.

Anacrónico, o comunismo sobreviveu até ao novo século. Chegou lá por dois caminhos. A China compreendeu que o capitalismo era o futuro do comunismo e prospera. Tal como o comunismo, este gigante tem duas faces. A radiosa é concreta, da cor do dinheiro. A negra é feita da exploração selvagem do trabalho contra a qual o comunismo se ergueu e da repressão dos direitos humanos. Crimes que a potência global em que a China se tornou escondem.

Mas como acontece nas histórias de novos-ricos, a China tem um irmão desgraçado e não tem outro remédio além de aturá-lo. Esse vizinho é a Coreia do Norte.

Se a China descobriu as vantagens de combinar o mercado livre e a ditadura do proletariado, na Coreia do Norte o regime sobrevive graças a uma combinação ainda mais exótica, anacrónica e contraditória. Em Pyongyang faz-se a ponte entre o marxismo-leninismo e a monarquia absoluta. Não parecem interessados em mudar.

É assim desde a fundação do país, em 1948. Kim Il-sung, o Grande Líder, o primeiro chefe, morreu em 1994 mas continua no centro da mitologia do regime. Ele é o inventor da juche, a ideologia que pretende distinguir o comunismo norte-coreano como único no mundo. Mas o que torna original este regime, a verdadeira juche, é a transmissão do poder de pai para filho. E ao "Grande Líder" sucedeu o "Querido Líder", Kim Jong-il, hoje o senhor da Coreia do Norte e em cujo reinado o país se tornou numa potência nuclear. Agora, chegou a vez do terceiro membro da dinastia. Kim Jong-un, o filho mais novo do actual líder, foi apresentado no domingo às massas e presenciou aquela que terá sido a maior parada militar da história do país.

Kim primeiro, Kim segundo, Kim terceiro.

O povo é quem mais ordena.

Mas esta monarquia vermelha é realmente singular. O que a distingue é cada sucessor ser potencialmente pior do que o antecessor. Mais do que uma dinastia, é uma sequela. Como no cinema, o original é que conta, as sequelas são para fazer render o peixe e para esquecer.

É o que está escrito nesta fotografia de Kim segundo, pai, à direita, e Kim que virá a ser terceiro, filho, à esquerda.

Kim segundo é um típico caso edipiano. Escondido atrás dos seus óculos escuros, é o protótipo do filho esmagado pelo pai. Cada fotografia sua é um tratado de psicanálise. Aparece sempre rodeado por pequenos generais de enormes bonés de estilo soviético, com sorrisos liliputianos - o inferno é governado por homens submissos.

Perante o sucessor, Kim perde um pouco a aura de filho que nunca se libertou. E na expressão que a câmara captou escapa uma desconfiança, um cepticismo e também pena, não se sabe se do filho, se de si próprio se do país.

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Como se a entronização de Kim terceiro fosse um ocaso. a

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