Testemunhos caninos

23-11-2010
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u já ia na segunda imperial, gozando a vista do mar e o sol de Outono, quando o cão se aproximou da nossa mesa. Era pequeno e andava em passo ligeiro, com as suas patas diminutas e a cauda cortada. Os respectivos donos nem notaram quando o animal se afastou, iniciando uma actividade exploratória com fins facilmente discerníveis pela forma como farejava o chão. Resolveu tratar do assunto bem diante de onde estávamos sentados. Sem embaraço, aliviou-se.

Não quero entrar em grandes detalhes, por razões óbvias de decoro sanitário, mas é forçoso esclarecer que o resultado da obra não era, digamos, manuseável. Ou seja, não havia qualquer hipótese para a sua recolha, tal como o fazem inúmeros cidadãos por este país fora, com aquelas luvas-saco-plástico especiais, que transformam um acto essencialmente repugnante num momento heróico de libertação dos passeios. A higiene social, neste caso, só é possível mediante testemunhos caninos consistentes, o que não era o caso.

Para as três pessoas e seis narinas representadas naquela mesa, a tarde prazenteira ficou imediatamente comprometida. O sol, o mar e a cerveja - este magnífico trio - foram substituídos como ponto focal por aquele montinho ali à nossa frente, em manifesta omnipresença.

Não é caso único, como todos sabemos. A realidade intestina do mundo canino pulula pelas cidades, nos seus passeios e jardins, sem solução à vista. Há muitos anos, escrevi um artigo sobre uns veículos admiráveis, que os poderes locais tinham comprado para aspirar o problema. Pelo jeito, não funcionaram. Quiçá entupiram.

Em termos filosóficos e materiais, o que há no solo estará em correspondência linear com o que anda sobre quatro patas. Isto é, se o campo pedonal está cada vez mais minado, é porque há cada vez mais cães. Basta sair à rua de manhã para ver os infelizes animais a puxarem literalmente os respectivos donos pela trela, desesperadamente expectantes pelo instante do alívio, depois de uma noite inteira a conter os seus instintos.

Há um paradoxo implícito na relação humana com os animais de companhia, especialmente os cães. Gostamos de os ter ao nosso lado, a abanar o rabo em feliz subserviência, mas isto implica uma certa dose de violência aos bichos: mantê-los enclausurados entre quatro paredes, levá-los a passear por dever, em regime de serviços mínimos, cortar-lhes as orelhas, amputar-lhes a cauda, tratá-los como pequenos escravos - daí o termo "dono".

Muita gente instruída no mundo da veterinária e da psicologia animal diz-me que, para os cães, o mais importante é a companhia, e que, bem satisfeito este requisito, o animal vive feliz e adapta-se a qualquer lado. Não sei, não.

Nada disso, porém, me passou pela cabeça no dia da cerveja interrompida. Com tanta gente a circular naquele caminho à beira-mar, nós três sentados à mesa fomos tomados de incoercível aflição perante a fatalidade de alguém, mais cedo ou mais tarde, vir a pisar na coisa.

O desfortúnio inaugural coube a um carrinho de bebé, que acertou em cheio com duas rodas sucessivas. A mãe que o empurrava não notou nada e seguiu o seu rumo. Suponho que tenha parado mais à frente para trocar, inutilmente, a fralda ao ocupante pueril da viatura, apesar de o infante não ter culpa no cartório.

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Depois, uma bicicleta. A seguir, outro carrinho de bebé, numa singular atracção do material em causa pela borracha dos pneus. E daí em diante, uma meia dúzia de sapatos, botas, ténis e sandálias. Com tantos contactos, no final já praticamente nada restava sobre o chão.

O cão e os seus senhores já iam longe, a ameaça estava removida - pela pior via - e a nós, contagiados pelo edificante episódio, nada mais restou senão deixar as cervejas a meio e ir para casa. Fica para a próxima. aJornalista

rgarcia@publico.pt

u já ia na segunda imperial, gozando a vista do mar e o sol de Outono, quando o cão se aproximou da nossa mesa. Era pequeno e andava em passo ligeiro, com as suas patas diminutas e a cauda cortada. Os respectivos donos nem notaram quando o animal se afastou, iniciando uma actividade exploratória com fins facilmente discerníveis pela forma como farejava o chão. Resolveu tratar do assunto bem diante de onde estávamos sentados. Sem embaraço, aliviou-se.

Não quero entrar em grandes detalhes, por razões óbvias de decoro sanitário, mas é forçoso esclarecer que o resultado da obra não era, digamos, manuseável. Ou seja, não havia qualquer hipótese para a sua recolha, tal como o fazem inúmeros cidadãos por este país fora, com aquelas luvas-saco-plástico especiais, que transformam um acto essencialmente repugnante num momento heróico de libertação dos passeios. A higiene social, neste caso, só é possível mediante testemunhos caninos consistentes, o que não era o caso.

Para as três pessoas e seis narinas representadas naquela mesa, a tarde prazenteira ficou imediatamente comprometida. O sol, o mar e a cerveja - este magnífico trio - foram substituídos como ponto focal por aquele montinho ali à nossa frente, em manifesta omnipresença.

Não é caso único, como todos sabemos. A realidade intestina do mundo canino pulula pelas cidades, nos seus passeios e jardins, sem solução à vista. Há muitos anos, escrevi um artigo sobre uns veículos admiráveis, que os poderes locais tinham comprado para aspirar o problema. Pelo jeito, não funcionaram. Quiçá entupiram.

Em termos filosóficos e materiais, o que há no solo estará em correspondência linear com o que anda sobre quatro patas. Isto é, se o campo pedonal está cada vez mais minado, é porque há cada vez mais cães. Basta sair à rua de manhã para ver os infelizes animais a puxarem literalmente os respectivos donos pela trela, desesperadamente expectantes pelo instante do alívio, depois de uma noite inteira a conter os seus instintos.

Há um paradoxo implícito na relação humana com os animais de companhia, especialmente os cães. Gostamos de os ter ao nosso lado, a abanar o rabo em feliz subserviência, mas isto implica uma certa dose de violência aos bichos: mantê-los enclausurados entre quatro paredes, levá-los a passear por dever, em regime de serviços mínimos, cortar-lhes as orelhas, amputar-lhes a cauda, tratá-los como pequenos escravos - daí o termo "dono".

Muita gente instruída no mundo da veterinária e da psicologia animal diz-me que, para os cães, o mais importante é a companhia, e que, bem satisfeito este requisito, o animal vive feliz e adapta-se a qualquer lado. Não sei, não.

Nada disso, porém, me passou pela cabeça no dia da cerveja interrompida. Com tanta gente a circular naquele caminho à beira-mar, nós três sentados à mesa fomos tomados de incoercível aflição perante a fatalidade de alguém, mais cedo ou mais tarde, vir a pisar na coisa.

O desfortúnio inaugural coube a um carrinho de bebé, que acertou em cheio com duas rodas sucessivas. A mãe que o empurrava não notou nada e seguiu o seu rumo. Suponho que tenha parado mais à frente para trocar, inutilmente, a fralda ao ocupante pueril da viatura, apesar de o infante não ter culpa no cartório.

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Depois, uma bicicleta. A seguir, outro carrinho de bebé, numa singular atracção do material em causa pela borracha dos pneus. E daí em diante, uma meia dúzia de sapatos, botas, ténis e sandálias. Com tantos contactos, no final já praticamente nada restava sobre o chão.

O cão e os seus senhores já iam longe, a ameaça estava removida - pela pior via - e a nós, contagiados pelo edificante episódio, nada mais restou senão deixar as cervejas a meio e ir para casa. Fica para a próxima. aJornalista

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