Como utilizar Sócrates

27-05-2011
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Não morro de ódio nem de amor por José Sócrates. E, ao contrário dos seus biógrafos de serviço, nunca procurei descobrir o seu verdadeiro ser. Entretanto, interesso-me pelos Sócrates que vão sendo inventados aqui e ali. Se não se cair na tentação mesquinha de procurar descobrir o que é falso ou verdadeiro nesses retratos, dá para ir compreendendo alguma coisa acerca do estado do tempo. O autêntico Sócrates, estou certo, há-de estar algures pelo meio, entre a Beira Baixa, a Universidade Independente e o Palácio de São Bento, a montante e a jusante de todas as suas representações, sempre em bolandas, a deixar de ser aquilo que é para passar a ser uma outra coisa. Como todos nós, diga-se, muito embora o facto da nossa personalidade não ser objecto de culto contribuir para que a nossa instabilidade seja mais óbvia e por isso menos assinalável. Interessam-me então os vários Sócrates porque eles dizem tanto ou mais acerca de quem retrata do que acerca de quem é retratado. Veja-se o Sócrates do “voto útil”. É uma imagem penosa. Que contrasta quer com o Sócrates pré-Europeias, alguém cuja capacidade de acção perdoaria um certo e alegado pendor arrogante, quer com o Sócrates pós-Europeias, no qual se reinventaria um coração dialogante e social-democrata. O Sócrates do “voto útil” é, antes, um homem tendencialmente impotente. É o que lhe calha a partir do momento em que os seus apoiantes não o apresentam como o principal motivo para votarmos PS. O que os defensores do “voto útil” nos dizem é que o motivo para votarmos no PS não é o PS mas sim Manuela Ferreira Leite e os espíritos malignos que ela encarna. O que talvez seja dar demasiada importância a Ferreira Leite e reduzir Sócrates a menos do que o próprio merecerá.

Entre os apoiantes de Sócrates, há também, é claro, quem nos tente convencer de que devemos votar no homem porque ele é inimputável. No caso desta linha de argumentação, temos uma “corrente quente” e uma “corrente fria”. Segundo a “corrente quente”, tratar-se-ia de um louco, furioso, desmedido, incontinente, que em desespero de causa se vira para o eleitorado de esquerda e grita bem alto: “agarrem-me se não eu faço um governo com o PSD!”. No caso da “corrente fria”, trata-se de um homem que não o é, um elemento de uma máquina de poder cuja racionalidade é apenas e só cálculo e pragmatismo – sem paixão, sem princípios, sem ideias. Alguém tão vazio de si que se permite virar para o eleitorado de esquerda e dizer-lhe, com frieza e sentido matemático extremo: “se não me dão o poder de uma maioria absoluta, logo alinharei com o vosso pior inimigo!” (e aqui se percebe que quem argumenta em prol do “voto útil” sabe perfeitamente que quem se encontra à esquerda do PS guarda uma distância maior em relação ao PSD do que aquela que guarda o próprio PS). Em qualquer dos casos, corrente quente ou corrente fria, a inimputabilidade de Sócrates deixa sempre uma pergunta por responder: se o bloco central é um cenário tão monstruoso quanto verosímil, não será mais aconselhável não entregarmos o nosso voto a um dos dois partidos que incorporará o possível monstro? O bloco central representa o monstro contra o qual deveríamos votar no PS, dizem-nos, mas para que a ameaça seja verosímil também têm que admitir que esse mesmo PS em quem devemos votar poderá vir a ser parte do monstro que desejamos eliminar. Um tipo começa o dia 27 de Setembro decidido a votar PS contra o Bloco Central mas pode acabar o dia a concluir que votou no Bloco Central. Isto é o que é suposto comprarmos?

Não morro de ódio nem de amor por José Sócrates. E, ao contrário dos seus biógrafos de serviço, nunca procurei descobrir o seu verdadeiro ser. Entretanto, interesso-me pelos Sócrates que vão sendo inventados aqui e ali. Se não se cair na tentação mesquinha de procurar descobrir o que é falso ou verdadeiro nesses retratos, dá para ir compreendendo alguma coisa acerca do estado do tempo. O autêntico Sócrates, estou certo, há-de estar algures pelo meio, entre a Beira Baixa, a Universidade Independente e o Palácio de São Bento, a montante e a jusante de todas as suas representações, sempre em bolandas, a deixar de ser aquilo que é para passar a ser uma outra coisa. Como todos nós, diga-se, muito embora o facto da nossa personalidade não ser objecto de culto contribuir para que a nossa instabilidade seja mais óbvia e por isso menos assinalável. Interessam-me então os vários Sócrates porque eles dizem tanto ou mais acerca de quem retrata do que acerca de quem é retratado. Veja-se o Sócrates do “voto útil”. É uma imagem penosa. Que contrasta quer com o Sócrates pré-Europeias, alguém cuja capacidade de acção perdoaria um certo e alegado pendor arrogante, quer com o Sócrates pós-Europeias, no qual se reinventaria um coração dialogante e social-democrata. O Sócrates do “voto útil” é, antes, um homem tendencialmente impotente. É o que lhe calha a partir do momento em que os seus apoiantes não o apresentam como o principal motivo para votarmos PS. O que os defensores do “voto útil” nos dizem é que o motivo para votarmos no PS não é o PS mas sim Manuela Ferreira Leite e os espíritos malignos que ela encarna. O que talvez seja dar demasiada importância a Ferreira Leite e reduzir Sócrates a menos do que o próprio merecerá.

Entre os apoiantes de Sócrates, há também, é claro, quem nos tente convencer de que devemos votar no homem porque ele é inimputável. No caso desta linha de argumentação, temos uma “corrente quente” e uma “corrente fria”. Segundo a “corrente quente”, tratar-se-ia de um louco, furioso, desmedido, incontinente, que em desespero de causa se vira para o eleitorado de esquerda e grita bem alto: “agarrem-me se não eu faço um governo com o PSD!”. No caso da “corrente fria”, trata-se de um homem que não o é, um elemento de uma máquina de poder cuja racionalidade é apenas e só cálculo e pragmatismo – sem paixão, sem princípios, sem ideias. Alguém tão vazio de si que se permite virar para o eleitorado de esquerda e dizer-lhe, com frieza e sentido matemático extremo: “se não me dão o poder de uma maioria absoluta, logo alinharei com o vosso pior inimigo!” (e aqui se percebe que quem argumenta em prol do “voto útil” sabe perfeitamente que quem se encontra à esquerda do PS guarda uma distância maior em relação ao PSD do que aquela que guarda o próprio PS). Em qualquer dos casos, corrente quente ou corrente fria, a inimputabilidade de Sócrates deixa sempre uma pergunta por responder: se o bloco central é um cenário tão monstruoso quanto verosímil, não será mais aconselhável não entregarmos o nosso voto a um dos dois partidos que incorporará o possível monstro? O bloco central representa o monstro contra o qual deveríamos votar no PS, dizem-nos, mas para que a ameaça seja verosímil também têm que admitir que esse mesmo PS em quem devemos votar poderá vir a ser parte do monstro que desejamos eliminar. Um tipo começa o dia 27 de Setembro decidido a votar PS contra o Bloco Central mas pode acabar o dia a concluir que votou no Bloco Central. Isto é o que é suposto comprarmos?

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