Samurais nucleares A coragem dos 50 de Fukushima

25-03-2011
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Trabalham em turnos de 50, para tentar controlar a central de Fukushima 1. São os novos heróis do Japão, que arriscam a saúde e a vida pelo bem de todos. Começa-se a saber mais sobre estes homens, enviados para enfrentar um perigo invisível. Por Clara Barata

Os Samurais Nucleares, os 50 de Fukushima são os novos heróis do Japão e do mundo inteiro, com a atenção presa a um país que parece ter sido amaldiçoado com uma praga de catástrofes.

Não são conhecidos assim porque sejam apenas 50, mas porque trabalham em turnos de meia centena. São os trabalhadores da central, os soldados das Forças de Auto-Defesa do Japão e os bombeiros que, desde o início da crise nuclear, correram para a central de Fukushima I, o local de onde todos fugiam. Foram tentar controlar os reactores, e as piscinas onde é armazenado o combustível nuclear usado, mas que pode ser igualmente perigoso. A interrogação é quase inevitável: o que vai acontecer a estes homens, sujeitos a maior quantidade de radiação do que qualquer outra pessoa no Japão?

"Vejo uma sociedade a enfrentar uma Escolha de Sofia", diz Robert Socolow, físico da Universidade de Princeton, ao telefone a partir dos EUA, usando uma expressão popularizada pelo romance de William Styron e pela sua adaptação ao cinema. "O Governo tem de decidir enviar pessoas para a central, se não, vai sair mais radiação para o ambiente, e mais pessoas serão expostas", explica. Ambas opções são más.

Os 50 de Fukushima - também podia haver um romance chamado assim - são apresentados como heróis voluntários que se sacrificam pelo bem da comunidade, homens que não olharam para trás, que deixaram a família numa hora de tragédia nacional, a seguir a um tsunami, para lutar pelo bem da nação.

Avisou a mulher por e-mail

"Enviei à minha mulher umpara lhe dizer que me tinham mandado para o reactor. Estava demasiado ocupado para lhe telefonar. Estava em missão pelo meu país", disse o bombeiro Yasuhiro Ishii, um dos primeiros a entrar na central de Fukushima, ao repórter Mark Willacy, da Australian Broadcasting Corporation. Muitos outros elementos da sua equipa fizeram o mesmo, nem sequer falaram com a família, mandaram sms ou, dizendo-lhes que iam enfrentar o perigo nuclear.

Iam sem medo? Responde ainda Yasuhiro Ishii: "A nossa missão era ir para o reactor 3 e arrefecê-lo. Claro que tinha medo, porque sabemos o que acontece ao organismo, se formos expostos a altos níveis de radiação".

Quando se fala destes novos heróis, chamando-lhes samurais, lembramo-nos dos liquidadores de Tchernobil: os 600 mil homens enviados pelas autoridades soviéticas, em 1986, para fazer frente ao pior acidente nuclear civil da história (o de Fukushima é o segundo mais grave), sem protecção adequada contra a radioactividade. Ao contrário de Fukushima, houve um incêndio no reactor, que durou dias. Muitos morreram, ficaram doentes gravemente, "Na Ucrânia, nessa altura, faz muito calor, e combatemos as chamas em mangas de camisa", recordava um desses homens ao jornal El País, em 2006.

Nada disso está a acontecer no Japão - o sistema de contenção dos reactores está intacto, não houve incêndios nos reactores e os trabalhadores de emergência vão equipados. Isso vê-se nas fotos ontem divulgadas, pela primeira vez, pela Tokyo Electric Power, a empresa que explora Fukushima 1, do trabalho no perímetro da central. Parecem fantasmas dentro de fatos brancos ou casacos plastificados com cores brilhantes, com óculos, capacetes, por vezes, empoleirados em cabos tentando repor a alimentação eléctrica.

Dose longe de ser fatal

Embora se saiba muito pouco sobre estes homens - não se sabe sequer a identidade da maioria deles, que na realidade são pelo menos 500 -, uns poucos foram levados nos últimos dias para Tóquio, e apresentados aos. Alguns foram submetidos já a níveis de radiação demasiado altos - que foram revistos, após o acidente: passaram de 100 milisieverts anuais para 250 (um milisievert é um milésimo de um sievert, que é uma das unidades de medição da radiação).

Ontem, foram hospitalizados dois funcionários da central de Fukushima, porque foram expostos a radiação entre 170 e 180 milisieverts (mSv), quando trabalhavam no edifício do reactor 3. Têm pele exposta nos pés a radiação, porque o sítio onde trabalhavam estava inundado. Estes níveis de radiação estão longe de serem fatais; cinco sieverts é a dose considerada letal para 50 por cento da população, diz Socolow. Em Fukushima, a radiação terá chegado a 400 mSv.

"O corpo tem um mecanismo de reparação do ADN das células, afectado pela radiação, que funciona até certo ponto. Mas não há um nível a partir do qual se possa dizer com segurança que a radiação desencadeia um cancro", diz o físico.

Kamikazes não

O mais assustador é a sensação de que se enfrenta um inimigo invisível: "Normalmente detectamos perigos, como fogo e fumo, com os nossos olhos, ouvidos e nariz, e eliminamos alguns, se não todos", disse à Reuters Yuki Takayama, líder de outra equipa de bombeiros de Tóquio chamado a trabalhar na central. "Mas em Fukushima não conseguimos sentir os perigos. Pode ser muito assustador se não conseguirmos eliminá-los. Estamos constantemente em perigo, e há um sentimento de perigo constante... Mas alguém tem de fazer isto e esse alguém somos nós", disse Takayama, de 54 anos, com duas filhas e um filho.

São heróis voluntários que se sacrificam pelo bem da comunidade, heróis forçados pelas autoridades, como chegou a vir a lume?

O ministro da Indústria, Banri Kaieda, teve de pedir desculpa publicamente aos bombeiros quando surgiram notícias de que tinha ameaçado punir os que se negassem a continuar a trabalhar lá, deitando água de várias maneiras sobre as piscinas e os reactores, para os manter refrigerados. Não reconheceu que o tenha feito mas disse: "Se as minhas palavras ofenderam os bombeiros... Gostaria de pedir desculpas por isso."

Takayama não sabia desta polémica, mas diz que o papel de um líder no terreno é avaliar o que é possível fazer e o que não é. "Não se podem dar ordens sem saber o que se passa no terreno. Como líder de esquadrão não poderei dizer aos meus homens para entrar num sítio para morrerem". Kamizakazes não.

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Um filme, um livro?

O estoicismo com que o povo japonês enfrenta a catástrofe que se abateu sobre ele é louvado pelos ocidentais, impressionados com a calma e a ordem que se vivem no país. Mas essa resignação tem escape numa cultura de fantasias de destruição da sociedade, seja através das manga ou da literatura.

Pode ter um tom pós-apocalíptico, mesmo quando sai da pena do Nobel da Literatura Kenzaburo Oe e já aconteceu algo semelhante depois do terramoto de Kobe, com o romancista Haruki Marukami, que escreveu um livro de contos com histórias inspiradas pelo desastre (em inglês chama-se After the Quake) em filmes de monstros (Godzilla, lembram-se? O lagarto pré-histórico tornado gigante pela radioactividade foi apenas o primeiro a tornar-se conhecido mundialmente).

A tragédia do terramoto e do tsunami de Sendai, e do segundo grande trauma nuclear do Japão, depois das bombas de Nagasáqui e Hiroxima, e dos seus heróis, os 50 de Fukushima, dará origem a toda uma nova linha de criação artística, exprimindo os sentimentos que parecem hoje tão contidos, tão controlados? Ontem a empresa que explora Fukushima 1 divulgou pela primeira vez fotos do interior da central e dos novos heróis do Japão, a trabalhar lá dentro sob níveis de radioactividade elevados. Na foto da esquerda vê-se a sala de controlo da central. Em baixo, suspensos por cabos, os trabalhadores tentam repor a electricidade. Vê-se também a chegada de médicos para os acompanhar.

Trabalham em turnos de 50, para tentar controlar a central de Fukushima 1. São os novos heróis do Japão, que arriscam a saúde e a vida pelo bem de todos. Começa-se a saber mais sobre estes homens, enviados para enfrentar um perigo invisível. Por Clara Barata

Os Samurais Nucleares, os 50 de Fukushima são os novos heróis do Japão e do mundo inteiro, com a atenção presa a um país que parece ter sido amaldiçoado com uma praga de catástrofes.

Não são conhecidos assim porque sejam apenas 50, mas porque trabalham em turnos de meia centena. São os trabalhadores da central, os soldados das Forças de Auto-Defesa do Japão e os bombeiros que, desde o início da crise nuclear, correram para a central de Fukushima I, o local de onde todos fugiam. Foram tentar controlar os reactores, e as piscinas onde é armazenado o combustível nuclear usado, mas que pode ser igualmente perigoso. A interrogação é quase inevitável: o que vai acontecer a estes homens, sujeitos a maior quantidade de radiação do que qualquer outra pessoa no Japão?

"Vejo uma sociedade a enfrentar uma Escolha de Sofia", diz Robert Socolow, físico da Universidade de Princeton, ao telefone a partir dos EUA, usando uma expressão popularizada pelo romance de William Styron e pela sua adaptação ao cinema. "O Governo tem de decidir enviar pessoas para a central, se não, vai sair mais radiação para o ambiente, e mais pessoas serão expostas", explica. Ambas opções são más.

Os 50 de Fukushima - também podia haver um romance chamado assim - são apresentados como heróis voluntários que se sacrificam pelo bem da comunidade, homens que não olharam para trás, que deixaram a família numa hora de tragédia nacional, a seguir a um tsunami, para lutar pelo bem da nação.

Avisou a mulher por e-mail

"Enviei à minha mulher umpara lhe dizer que me tinham mandado para o reactor. Estava demasiado ocupado para lhe telefonar. Estava em missão pelo meu país", disse o bombeiro Yasuhiro Ishii, um dos primeiros a entrar na central de Fukushima, ao repórter Mark Willacy, da Australian Broadcasting Corporation. Muitos outros elementos da sua equipa fizeram o mesmo, nem sequer falaram com a família, mandaram sms ou, dizendo-lhes que iam enfrentar o perigo nuclear.

Iam sem medo? Responde ainda Yasuhiro Ishii: "A nossa missão era ir para o reactor 3 e arrefecê-lo. Claro que tinha medo, porque sabemos o que acontece ao organismo, se formos expostos a altos níveis de radiação".

Quando se fala destes novos heróis, chamando-lhes samurais, lembramo-nos dos liquidadores de Tchernobil: os 600 mil homens enviados pelas autoridades soviéticas, em 1986, para fazer frente ao pior acidente nuclear civil da história (o de Fukushima é o segundo mais grave), sem protecção adequada contra a radioactividade. Ao contrário de Fukushima, houve um incêndio no reactor, que durou dias. Muitos morreram, ficaram doentes gravemente, "Na Ucrânia, nessa altura, faz muito calor, e combatemos as chamas em mangas de camisa", recordava um desses homens ao jornal El País, em 2006.

Nada disso está a acontecer no Japão - o sistema de contenção dos reactores está intacto, não houve incêndios nos reactores e os trabalhadores de emergência vão equipados. Isso vê-se nas fotos ontem divulgadas, pela primeira vez, pela Tokyo Electric Power, a empresa que explora Fukushima 1, do trabalho no perímetro da central. Parecem fantasmas dentro de fatos brancos ou casacos plastificados com cores brilhantes, com óculos, capacetes, por vezes, empoleirados em cabos tentando repor a alimentação eléctrica.

Dose longe de ser fatal

Embora se saiba muito pouco sobre estes homens - não se sabe sequer a identidade da maioria deles, que na realidade são pelo menos 500 -, uns poucos foram levados nos últimos dias para Tóquio, e apresentados aos. Alguns foram submetidos já a níveis de radiação demasiado altos - que foram revistos, após o acidente: passaram de 100 milisieverts anuais para 250 (um milisievert é um milésimo de um sievert, que é uma das unidades de medição da radiação).

Ontem, foram hospitalizados dois funcionários da central de Fukushima, porque foram expostos a radiação entre 170 e 180 milisieverts (mSv), quando trabalhavam no edifício do reactor 3. Têm pele exposta nos pés a radiação, porque o sítio onde trabalhavam estava inundado. Estes níveis de radiação estão longe de serem fatais; cinco sieverts é a dose considerada letal para 50 por cento da população, diz Socolow. Em Fukushima, a radiação terá chegado a 400 mSv.

"O corpo tem um mecanismo de reparação do ADN das células, afectado pela radiação, que funciona até certo ponto. Mas não há um nível a partir do qual se possa dizer com segurança que a radiação desencadeia um cancro", diz o físico.

Kamikazes não

O mais assustador é a sensação de que se enfrenta um inimigo invisível: "Normalmente detectamos perigos, como fogo e fumo, com os nossos olhos, ouvidos e nariz, e eliminamos alguns, se não todos", disse à Reuters Yuki Takayama, líder de outra equipa de bombeiros de Tóquio chamado a trabalhar na central. "Mas em Fukushima não conseguimos sentir os perigos. Pode ser muito assustador se não conseguirmos eliminá-los. Estamos constantemente em perigo, e há um sentimento de perigo constante... Mas alguém tem de fazer isto e esse alguém somos nós", disse Takayama, de 54 anos, com duas filhas e um filho.

São heróis voluntários que se sacrificam pelo bem da comunidade, heróis forçados pelas autoridades, como chegou a vir a lume?

O ministro da Indústria, Banri Kaieda, teve de pedir desculpa publicamente aos bombeiros quando surgiram notícias de que tinha ameaçado punir os que se negassem a continuar a trabalhar lá, deitando água de várias maneiras sobre as piscinas e os reactores, para os manter refrigerados. Não reconheceu que o tenha feito mas disse: "Se as minhas palavras ofenderam os bombeiros... Gostaria de pedir desculpas por isso."

Takayama não sabia desta polémica, mas diz que o papel de um líder no terreno é avaliar o que é possível fazer e o que não é. "Não se podem dar ordens sem saber o que se passa no terreno. Como líder de esquadrão não poderei dizer aos meus homens para entrar num sítio para morrerem". Kamizakazes não.

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Um filme, um livro?

O estoicismo com que o povo japonês enfrenta a catástrofe que se abateu sobre ele é louvado pelos ocidentais, impressionados com a calma e a ordem que se vivem no país. Mas essa resignação tem escape numa cultura de fantasias de destruição da sociedade, seja através das manga ou da literatura.

Pode ter um tom pós-apocalíptico, mesmo quando sai da pena do Nobel da Literatura Kenzaburo Oe e já aconteceu algo semelhante depois do terramoto de Kobe, com o romancista Haruki Marukami, que escreveu um livro de contos com histórias inspiradas pelo desastre (em inglês chama-se After the Quake) em filmes de monstros (Godzilla, lembram-se? O lagarto pré-histórico tornado gigante pela radioactividade foi apenas o primeiro a tornar-se conhecido mundialmente).

A tragédia do terramoto e do tsunami de Sendai, e do segundo grande trauma nuclear do Japão, depois das bombas de Nagasáqui e Hiroxima, e dos seus heróis, os 50 de Fukushima, dará origem a toda uma nova linha de criação artística, exprimindo os sentimentos que parecem hoje tão contidos, tão controlados? Ontem a empresa que explora Fukushima 1 divulgou pela primeira vez fotos do interior da central e dos novos heróis do Japão, a trabalhar lá dentro sob níveis de radioactividade elevados. Na foto da esquerda vê-se a sala de controlo da central. Em baixo, suspensos por cabos, os trabalhadores tentam repor a electricidade. Vê-se também a chegada de médicos para os acompanhar.

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