O regresso do medo e a supressão do sujeito
Publicado no jornal ‘Público’, 25/11/06
A Revolução de Abril de 1974 celebrou com cravos a chegada da liberdade. Mas trinta e dois anos depois e vinte após a integração europeia, o nosso país continua a manifestar sinais preocupantes de que existe medo e ressentimento na sociedade. Já não o medo da repressão e do autoritarismo do regime, mas um sentimento difuso, um “medo social”, que neutraliza a afirmação do Sujeito consciente e livre, que o impede de dizer o que pensa e de se assumir como cidadão. Por que será que isto acontece? Porque é que numa sociedade democrática onde os direitos individuais e a liberdade de opinião estão há muito consagrados na lei, continuam a existir tantas situações onde, em vez da opinião aberta e do confronto de ideias, as pessoas se retraem e se escondem? Fala-se muito, mas sob a forma de rumor, de boato do “diz que disse”... Fala-se nos “corredores” por vezes o contrário do que se disse em público, quando em público não nos limitamos a ficar calados e a abanar a cabeça em sinal de acordo.
Esta realidade reflecte uma sociedade ainda amarrada a um conjunto de peias que, a meu ver, nos impede de alcançar padrões de desenvolvimento e formas democráticas de intervenção cívica nos quais há poucos anos atrás muitos de nós acreditámos (e continuamos a acreditar, apesar de tudo). Porque é que proliferam tantas atitudes bajuladoras do “chefe”, do “mentor”, do “patrão”, do “orientador” ou do “padrinho”? Porque na maioria dos contextos organizacionais se isso não acontecer o mais provável é que nos caiam em cima as mais diversas formas de retaliação, das mais perversas e subtis às mais arrogantes. Enquanto a cultura do mérito permanece incipiente, a cultura da mediocridade, do “cala-te e deixa estar”, parece tornar-se cada vez mais forte. Há uma pressão para os “alinhamentos” incondicionais com este ou com aquele, e se as expectativas de quem está na posição de poder não se confirmam é comum que a reacção autoritária se faça sentir sobre o “elo mais fraco”.
José Gil definiu o país pelo «Medo de Existir». Mas o medo existe, de facto. Medo de quê? Medo, por exemplo, do possível despedimento ou do estatuto de “excedentário”; do tratamento desfavorável, da desconsideração, da pequena “vingança”. As pessoas sentem uma grande falta de segurança e estabilidade. Isto, associado aos baixos níveis salariais – que, como se sabe, estão cada vez mais longe de satisfazer as exigências do custo de vida actual e as expectativas de uma “carreira” ou de um padrão de consumo de “classe média” –, favorece a inibição, o retraimento e a crispação. Num clima geral onde quem triunfa é em geral o “yes man”, espera-se que todos nos comportemos como tal. Continuamos a debater-nos com necessidades primárias por cumprir. E a segurança é uma delas. Por isso também no mundo empresarial prolifera uma mentalidade que é avessa à mudança, à iniciativa individual, à inovação tecnológica e sobretudo à inovação social e organizacional. As lideranças são em geral medíocres e por isso também favorecem a mediocridade e o carreirismo, cego e seguidista, quer nas novas contratações quer nas avaliações e promoções de quadros e subordinados. O peso dos micropoderes nas instituições burocráticas e nas empresas continua a alimentar múltiplas situações de opressão que asfixiam a dignidade individual, a autonomia e a criatividade de cada um. Quer enquanto trabalhador quer enquanto cidadão, o Sujeito individual é suprimido ou esconde-se no anonimato e na esfera privada, inibindo por sua vez a emergência de novos sujeitos colectivos. Porque sem liberdade e iniciativa individual não é possível construir empresas competitivas, comunidades cosmopolitas e uma “esfera pública” dinâmica e exigente.Mas, não se pode assacar as responsabilidades deste estado de coisas a uma qualquer essência “individual”. Embora os factores culturais e a mentalidade submissa estejam enraizados na própria estrutura mental dos indivíduos, são, antes de mais, as instituições democráticas, os departamentos do Estado, o governo, o parlamento, as universidades e os próprios partidos políticos, que nada fazem para promover culturas de responsabilização das pessoas, criar procedimentos, incentivos e mecanismos de diálogo orientados para a participação e para estimular a iniciativa de cada um. E no nosso país não só não o fazem como, não poucas vezes, é daí que vêm os piores exemplos.________ Adenda: Os meios electrónicos de que hoje dispomos estão, sem dúvida, a afirmar-se como uma importante ferramenta na construção e reforço do debate público democrático. Apesar do seu impacto ser ainda escasso – dado que os grandes meios de comunicação social, formatados pelas leis do mercado e pelos interesses económicos dominantes, continuam a monopolizar a “opinião pública” –, os meios electrónicos, a “Internet” e a “blogoesfera” estão a tornar-se importantes plataformas de formação de opinião alternativa, com enormes potencialidades na construção de um novo “espaço público” e de um novo conceito de cidadania activa. As redes “virtuais” estão a tornar-se cada vez mais “reais” e a sua influência social e política tende a ser cada vez maior. Porém, a esfera pública “virtual” só pode ter alcance na sociedade se abordar os problemas concretos da vida dos cidadãos e do país, isto é, se não se limitar a iludir e dissimular – através de uma espécie de transparência fictícia de vozes escondidas no anonimato – os mecanismos de poder social que, no mundo real, continuam a empurrar os cidadãos para o alheamento e a alienação, alimentando situações de constrangimento, de exclusão e de medo, que neutralizam qualquer possibilidade de uma cidadania efectiva.
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O regresso do medo e a supressão do sujeito
Publicado no jornal ‘Público’, 25/11/06
A Revolução de Abril de 1974 celebrou com cravos a chegada da liberdade. Mas trinta e dois anos depois e vinte após a integração europeia, o nosso país continua a manifestar sinais preocupantes de que existe medo e ressentimento na sociedade. Já não o medo da repressão e do autoritarismo do regime, mas um sentimento difuso, um “medo social”, que neutraliza a afirmação do Sujeito consciente e livre, que o impede de dizer o que pensa e de se assumir como cidadão. Por que será que isto acontece? Porque é que numa sociedade democrática onde os direitos individuais e a liberdade de opinião estão há muito consagrados na lei, continuam a existir tantas situações onde, em vez da opinião aberta e do confronto de ideias, as pessoas se retraem e se escondem? Fala-se muito, mas sob a forma de rumor, de boato do “diz que disse”... Fala-se nos “corredores” por vezes o contrário do que se disse em público, quando em público não nos limitamos a ficar calados e a abanar a cabeça em sinal de acordo.
Esta realidade reflecte uma sociedade ainda amarrada a um conjunto de peias que, a meu ver, nos impede de alcançar padrões de desenvolvimento e formas democráticas de intervenção cívica nos quais há poucos anos atrás muitos de nós acreditámos (e continuamos a acreditar, apesar de tudo). Porque é que proliferam tantas atitudes bajuladoras do “chefe”, do “mentor”, do “patrão”, do “orientador” ou do “padrinho”? Porque na maioria dos contextos organizacionais se isso não acontecer o mais provável é que nos caiam em cima as mais diversas formas de retaliação, das mais perversas e subtis às mais arrogantes. Enquanto a cultura do mérito permanece incipiente, a cultura da mediocridade, do “cala-te e deixa estar”, parece tornar-se cada vez mais forte. Há uma pressão para os “alinhamentos” incondicionais com este ou com aquele, e se as expectativas de quem está na posição de poder não se confirmam é comum que a reacção autoritária se faça sentir sobre o “elo mais fraco”.
José Gil definiu o país pelo «Medo de Existir». Mas o medo existe, de facto. Medo de quê? Medo, por exemplo, do possível despedimento ou do estatuto de “excedentário”; do tratamento desfavorável, da desconsideração, da pequena “vingança”. As pessoas sentem uma grande falta de segurança e estabilidade. Isto, associado aos baixos níveis salariais – que, como se sabe, estão cada vez mais longe de satisfazer as exigências do custo de vida actual e as expectativas de uma “carreira” ou de um padrão de consumo de “classe média” –, favorece a inibição, o retraimento e a crispação. Num clima geral onde quem triunfa é em geral o “yes man”, espera-se que todos nos comportemos como tal. Continuamos a debater-nos com necessidades primárias por cumprir. E a segurança é uma delas. Por isso também no mundo empresarial prolifera uma mentalidade que é avessa à mudança, à iniciativa individual, à inovação tecnológica e sobretudo à inovação social e organizacional. As lideranças são em geral medíocres e por isso também favorecem a mediocridade e o carreirismo, cego e seguidista, quer nas novas contratações quer nas avaliações e promoções de quadros e subordinados. O peso dos micropoderes nas instituições burocráticas e nas empresas continua a alimentar múltiplas situações de opressão que asfixiam a dignidade individual, a autonomia e a criatividade de cada um. Quer enquanto trabalhador quer enquanto cidadão, o Sujeito individual é suprimido ou esconde-se no anonimato e na esfera privada, inibindo por sua vez a emergência de novos sujeitos colectivos. Porque sem liberdade e iniciativa individual não é possível construir empresas competitivas, comunidades cosmopolitas e uma “esfera pública” dinâmica e exigente.Mas, não se pode assacar as responsabilidades deste estado de coisas a uma qualquer essência “individual”. Embora os factores culturais e a mentalidade submissa estejam enraizados na própria estrutura mental dos indivíduos, são, antes de mais, as instituições democráticas, os departamentos do Estado, o governo, o parlamento, as universidades e os próprios partidos políticos, que nada fazem para promover culturas de responsabilização das pessoas, criar procedimentos, incentivos e mecanismos de diálogo orientados para a participação e para estimular a iniciativa de cada um. E no nosso país não só não o fazem como, não poucas vezes, é daí que vêm os piores exemplos.________ Adenda: Os meios electrónicos de que hoje dispomos estão, sem dúvida, a afirmar-se como uma importante ferramenta na construção e reforço do debate público democrático. Apesar do seu impacto ser ainda escasso – dado que os grandes meios de comunicação social, formatados pelas leis do mercado e pelos interesses económicos dominantes, continuam a monopolizar a “opinião pública” –, os meios electrónicos, a “Internet” e a “blogoesfera” estão a tornar-se importantes plataformas de formação de opinião alternativa, com enormes potencialidades na construção de um novo “espaço público” e de um novo conceito de cidadania activa. As redes “virtuais” estão a tornar-se cada vez mais “reais” e a sua influência social e política tende a ser cada vez maior. Porém, a esfera pública “virtual” só pode ter alcance na sociedade se abordar os problemas concretos da vida dos cidadãos e do país, isto é, se não se limitar a iludir e dissimular – através de uma espécie de transparência fictícia de vozes escondidas no anonimato – os mecanismos de poder social que, no mundo real, continuam a empurrar os cidadãos para o alheamento e a alienação, alimentando situações de constrangimento, de exclusão e de medo, que neutralizam qualquer possibilidade de uma cidadania efectiva.