Flexigurança – do modelo dinamarquês à realidade portuguesa Elísio Estanque e Hermes A. Costa A economia global das últimas décadas tem vindo a impor um vasto conjunto de transformações na esfera laboral que se traduzem na crescente degradação das condições de trabalho e dos direitos laborais, ao mesmo tempo que aumentam as situações de hiperexploração, a precariedade e a dependência dos trabalhadores nas mais diversas regiões e continentes. Neste quadro, a Europa e o chamado Estado social vêm-se debatendo com uma longa crise. O aumento da competitividade, o declínio do crescimento económico e o envelhecimento da população, entre outros factores, estão a impor profundas reestruturações no tecido produtivo, exigindo a redução da despesa pública e do peso do Estado na economia, tudo isto com consequências profundas no trabalho e no emprego, incluindo a retirada de importantes conquistas e direitos alcançados ao longo de mais de cem anos de lutas do movimento operário e sindical. Tomando como exemplo o caso da Dinamarca, os acordos da Europa dos 27 agora estabelecidos pretendem adoptar como modelo de regulação das relações de trabalho a chamada “flexigurança”. Será esse o melhor caminho para modernizar a economia e trazer mais justiça social? Será esse modelo exportável? Que consequências poderão daí resultar para a coesão social numa sociedade como a portuguesa, com as suas próprias particularidades socioculturais? 1. Características do “modelo” dinamarquês de flexigurança A Dinamarca é um país com 5,4 milhões de habitantes, um liberalismo quase total, uma das mais elevadas protecções sociais do mundo e uma taxa de desemprego relativamente baixa (4,4% em Agosto de 2006). O “triângulo dourado” da flexigurança na Dinamarca passa por: i) um mercado de trabalho flexível; ii) generosos sistemas de bem-estar social; iii) políticas de mercado de trabalho activas. Em contrapartida, os dinamarqueses pagam, em média, 50% de impostos e o IVA ronda os 25% (no entanto, a metade que lhes resta de salários permite-lhes viver folgadamente). O sistema dinamarquês combina a grande facilidade de despedimento concedida às empresas com garantias de indemnizações e rendimentos sociais por um largo período para os desempregados. O Estado garante o acompanhamento dos desempregados na procura de trabalho e proporciona reformas antecipadas (apesar do país ter uma das taxas de actividade mais elevadas na população com mais de 60 anos); o intervencionismo do Estado na economia é fraco. Não é o governo que determina o salário mínimo, o direito à greve, os direitos das empresas a despedirem sem pagarem indemnizações de despedimentos, pois o mercado de trabalho é regulado (como na Suécia e na Finlândia) por acordo colectivos ou de empresa, negociados entre os sindicatos (poderosos) e o patronato. Em caso de despedimento, um dinamarquês tem direito a 96% do seu salário durante 4 anos (em Portugal, o montante do subsídio corresponde a 65% do salário bruto). As indemnizações e os subsídios de desemprego são pagos por caixas privadas, geridas pelos sindicatos e alimentadas por eles e pelo Estado. Nos 6 meses seguintes ao despedimento, a pessoa desempregada tem de fazer uma formação profissional obrigatória, paga pelo Estado, após o que deve procurar activamente emprego, sendo apoiado pela administração pública nesse esforço, mas, em contrapartida, quem recusar uma oferta de emprego “conveniente” perde o direito ao subsídio. 2. Um modelo exportável? É obviamente muito duvidoso que um modelo deste tipo possa ser importado por uma sociedade com características estruturais e históricas bem distintas do modelo dinamarquês. Vejamos alguns contrastes: a) na Dinamarca existe um sindicalismo ultra-forte, em que 80% da população activa está sindicalizada; b) a adesão ao sindicato não é uma escolha política, mas uma questão de bom senso (uma espécie de vocação natural); c) os sindicatos gerem as caixas de subsídios de desemprego, pagam as reformas antecipadas e negoceiam as condições laborais por sector; d) a diferença de rendimentos entre os mais elevados e os mais baixos é das menores da Europa (em Portugal é uma das maiores); e) o sucesso do modelo reside numa cultura de compromisso e consenso entre os actores sociais (ao passo que em Portugal vigora no mundo do trabalho uma cultura de autoritarismo, marcada por sentimentos de medo e laços de dependência). Quando a “flexi-segurança” é apresentada da forma como está a acontecer no nosso país, quando não há verdadeira negociação, quando, como se sabe, ela se resume praticamente à facilitação dos despedimentos e num contexto politico em que os sinais de prepotência e os défices democráticos partem do topo – o mesmo que devia combate-los –, tudo faz crer que as decisões políticas nesta matéria já estão previamente definidas e, portanto, o governo e as suas “comissões” (directa ou indirectamente instrumentalizadas) não aceitará afastar-se delas mais do que um milímetro. Por exemplo, a socióloga Ilona Kovács (2005) propõe algumas condições para que o mercado de trabalho pudesse caminhar no sentido de uma flexibilidade qualificante. Esta, para se tornar efectiva, teria de combinar um conjunto de requisitos, entre os quais se destacam: i) emprego flexível com opção por um certo modo de vida, justificando horários de trabalho também flexíveis; ii) trabalho altamente qualificado, exigindo aprendizagem contínua; iii) capacidade negocial dos indivíduos com a entidade empregadora; iv) mobilidade no mercado de trabalho entre empresas dentro de condições previamente negociadas; v) que as experiências de instabilidade laboral se tornem crescentemente de flexibilidade transitória, de modo a que cada cidadão/ã possa a partir delas aceder a uma situação de maior estabilidade e a um emprego mais qualificado; vi) no fundo, seria necessário que as politicas activas de emprego se orientassem sobretudo para uma flexibilidade qualificante no trabalho. E, acrescentamos nós, que esta se conjugasse com a abertura de oportunidades reais de acesso a um emprego estável e seguro legalmente protegido pelas leis laborais, sob determinadas condições. 3. A realidade portuguesa Contudo, numa sociedade como a portuguesa poderá esta sequência tornar-se efectiva? Muitas das actuais situações precárias de emprego tendem a prolongar-se no tempo, com mudanças frequentes entre empregos precários, persistindo a instabilidade no longo prazo. Assim, a precariedade de longa duração, em particular se for conjugada com elevadas taxas de desemprego, torna-se um factor de criação de pobreza, de aumento das desigualdades e barra o exercício da cidadania, tanto no local de trabalho como fora dele. Nos segmentos mais jovens, inclusive entre os mais qualificados – onde as taxas de desemprego estão muito acima da média nacional – prevalecem hoje, em especial no primeiro emprego, actividades profissionais desinteressantes, travando o desenvolvimento das suas qualificações e aprendizagens. São conhecidos os efeitos negativos desta realidade não só no plano da insatisfação e do risco de exclusão social, mas também na motivação dos trabalhadores e na produtividade. Qualquer programa que pretenda conciliar a necessidade de um sistema produtivo moderno que revitalize a economia com a necessidade de preservar os direitos da força de trabalho e a coesão social, terá sempre de ser adoptado de forma cautelosa e progressiva e não pode, portanto, ser simplesmente imposto. Antes de mais porque o mercado de trabalho e o funcionamento dos mecanismos de conciliação de interesses requerem tempo para que a necessidade da mudança seja plenamente incorporada. Não é, portanto, credível que tal mudança tenha sucesso sem negociação e sem compromisso, como é apanágio de qualquer democracia avançada (e deixar de fora a CGTP significa deixar de fora dois terços da força de trabalho). Recorde-se, de resto, que o êxito da versão dinamarquesa da flexigurança é o resultado de um longo processo histórico assente numa série de compromissos entre parceiros sociais, na evolução do Estado-Providência e num desenvolvimento gradual de políticas activas para o mercado de trabalho. Em suma, não é a flexigurança que gera por si só o desenvolvimento, mas é sim o desenvolvimento que pode – ou não – exigir maior flexibilidade ou maior segurança. Por isso, mais do que a retórica governamental da flexigurança, o que a sociedade portuguesa exige é um programa de desenvolvimento sustentável para o país, onde os direitos sociais, o bem-estar dos cidadãos e o combate às desigualdades e injustiças na distribuição da riqueza passem do plano das promessas eleitorais para o plano da sua concretização.
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Flexigurança – do modelo dinamarquês à realidade portuguesa Elísio Estanque e Hermes A. Costa A economia global das últimas décadas tem vindo a impor um vasto conjunto de transformações na esfera laboral que se traduzem na crescente degradação das condições de trabalho e dos direitos laborais, ao mesmo tempo que aumentam as situações de hiperexploração, a precariedade e a dependência dos trabalhadores nas mais diversas regiões e continentes. Neste quadro, a Europa e o chamado Estado social vêm-se debatendo com uma longa crise. O aumento da competitividade, o declínio do crescimento económico e o envelhecimento da população, entre outros factores, estão a impor profundas reestruturações no tecido produtivo, exigindo a redução da despesa pública e do peso do Estado na economia, tudo isto com consequências profundas no trabalho e no emprego, incluindo a retirada de importantes conquistas e direitos alcançados ao longo de mais de cem anos de lutas do movimento operário e sindical. Tomando como exemplo o caso da Dinamarca, os acordos da Europa dos 27 agora estabelecidos pretendem adoptar como modelo de regulação das relações de trabalho a chamada “flexigurança”. Será esse o melhor caminho para modernizar a economia e trazer mais justiça social? Será esse modelo exportável? Que consequências poderão daí resultar para a coesão social numa sociedade como a portuguesa, com as suas próprias particularidades socioculturais? 1. Características do “modelo” dinamarquês de flexigurança A Dinamarca é um país com 5,4 milhões de habitantes, um liberalismo quase total, uma das mais elevadas protecções sociais do mundo e uma taxa de desemprego relativamente baixa (4,4% em Agosto de 2006). O “triângulo dourado” da flexigurança na Dinamarca passa por: i) um mercado de trabalho flexível; ii) generosos sistemas de bem-estar social; iii) políticas de mercado de trabalho activas. Em contrapartida, os dinamarqueses pagam, em média, 50% de impostos e o IVA ronda os 25% (no entanto, a metade que lhes resta de salários permite-lhes viver folgadamente). O sistema dinamarquês combina a grande facilidade de despedimento concedida às empresas com garantias de indemnizações e rendimentos sociais por um largo período para os desempregados. O Estado garante o acompanhamento dos desempregados na procura de trabalho e proporciona reformas antecipadas (apesar do país ter uma das taxas de actividade mais elevadas na população com mais de 60 anos); o intervencionismo do Estado na economia é fraco. Não é o governo que determina o salário mínimo, o direito à greve, os direitos das empresas a despedirem sem pagarem indemnizações de despedimentos, pois o mercado de trabalho é regulado (como na Suécia e na Finlândia) por acordo colectivos ou de empresa, negociados entre os sindicatos (poderosos) e o patronato. Em caso de despedimento, um dinamarquês tem direito a 96% do seu salário durante 4 anos (em Portugal, o montante do subsídio corresponde a 65% do salário bruto). As indemnizações e os subsídios de desemprego são pagos por caixas privadas, geridas pelos sindicatos e alimentadas por eles e pelo Estado. Nos 6 meses seguintes ao despedimento, a pessoa desempregada tem de fazer uma formação profissional obrigatória, paga pelo Estado, após o que deve procurar activamente emprego, sendo apoiado pela administração pública nesse esforço, mas, em contrapartida, quem recusar uma oferta de emprego “conveniente” perde o direito ao subsídio. 2. Um modelo exportável? É obviamente muito duvidoso que um modelo deste tipo possa ser importado por uma sociedade com características estruturais e históricas bem distintas do modelo dinamarquês. Vejamos alguns contrastes: a) na Dinamarca existe um sindicalismo ultra-forte, em que 80% da população activa está sindicalizada; b) a adesão ao sindicato não é uma escolha política, mas uma questão de bom senso (uma espécie de vocação natural); c) os sindicatos gerem as caixas de subsídios de desemprego, pagam as reformas antecipadas e negoceiam as condições laborais por sector; d) a diferença de rendimentos entre os mais elevados e os mais baixos é das menores da Europa (em Portugal é uma das maiores); e) o sucesso do modelo reside numa cultura de compromisso e consenso entre os actores sociais (ao passo que em Portugal vigora no mundo do trabalho uma cultura de autoritarismo, marcada por sentimentos de medo e laços de dependência). Quando a “flexi-segurança” é apresentada da forma como está a acontecer no nosso país, quando não há verdadeira negociação, quando, como se sabe, ela se resume praticamente à facilitação dos despedimentos e num contexto politico em que os sinais de prepotência e os défices democráticos partem do topo – o mesmo que devia combate-los –, tudo faz crer que as decisões políticas nesta matéria já estão previamente definidas e, portanto, o governo e as suas “comissões” (directa ou indirectamente instrumentalizadas) não aceitará afastar-se delas mais do que um milímetro. Por exemplo, a socióloga Ilona Kovács (2005) propõe algumas condições para que o mercado de trabalho pudesse caminhar no sentido de uma flexibilidade qualificante. Esta, para se tornar efectiva, teria de combinar um conjunto de requisitos, entre os quais se destacam: i) emprego flexível com opção por um certo modo de vida, justificando horários de trabalho também flexíveis; ii) trabalho altamente qualificado, exigindo aprendizagem contínua; iii) capacidade negocial dos indivíduos com a entidade empregadora; iv) mobilidade no mercado de trabalho entre empresas dentro de condições previamente negociadas; v) que as experiências de instabilidade laboral se tornem crescentemente de flexibilidade transitória, de modo a que cada cidadão/ã possa a partir delas aceder a uma situação de maior estabilidade e a um emprego mais qualificado; vi) no fundo, seria necessário que as politicas activas de emprego se orientassem sobretudo para uma flexibilidade qualificante no trabalho. E, acrescentamos nós, que esta se conjugasse com a abertura de oportunidades reais de acesso a um emprego estável e seguro legalmente protegido pelas leis laborais, sob determinadas condições. 3. A realidade portuguesa Contudo, numa sociedade como a portuguesa poderá esta sequência tornar-se efectiva? Muitas das actuais situações precárias de emprego tendem a prolongar-se no tempo, com mudanças frequentes entre empregos precários, persistindo a instabilidade no longo prazo. Assim, a precariedade de longa duração, em particular se for conjugada com elevadas taxas de desemprego, torna-se um factor de criação de pobreza, de aumento das desigualdades e barra o exercício da cidadania, tanto no local de trabalho como fora dele. Nos segmentos mais jovens, inclusive entre os mais qualificados – onde as taxas de desemprego estão muito acima da média nacional – prevalecem hoje, em especial no primeiro emprego, actividades profissionais desinteressantes, travando o desenvolvimento das suas qualificações e aprendizagens. São conhecidos os efeitos negativos desta realidade não só no plano da insatisfação e do risco de exclusão social, mas também na motivação dos trabalhadores e na produtividade. Qualquer programa que pretenda conciliar a necessidade de um sistema produtivo moderno que revitalize a economia com a necessidade de preservar os direitos da força de trabalho e a coesão social, terá sempre de ser adoptado de forma cautelosa e progressiva e não pode, portanto, ser simplesmente imposto. Antes de mais porque o mercado de trabalho e o funcionamento dos mecanismos de conciliação de interesses requerem tempo para que a necessidade da mudança seja plenamente incorporada. Não é, portanto, credível que tal mudança tenha sucesso sem negociação e sem compromisso, como é apanágio de qualquer democracia avançada (e deixar de fora a CGTP significa deixar de fora dois terços da força de trabalho). Recorde-se, de resto, que o êxito da versão dinamarquesa da flexigurança é o resultado de um longo processo histórico assente numa série de compromissos entre parceiros sociais, na evolução do Estado-Providência e num desenvolvimento gradual de políticas activas para o mercado de trabalho. Em suma, não é a flexigurança que gera por si só o desenvolvimento, mas é sim o desenvolvimento que pode – ou não – exigir maior flexibilidade ou maior segurança. Por isso, mais do que a retórica governamental da flexigurança, o que a sociedade portuguesa exige é um programa de desenvolvimento sustentável para o país, onde os direitos sociais, o bem-estar dos cidadãos e o combate às desigualdades e injustiças na distribuição da riqueza passem do plano das promessas eleitorais para o plano da sua concretização.