joão tordo: Choradeira

18-12-2009
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Esta semana decidi assistir aos debates das legislativas e acabei a chorar sozinho no quarto. Não é que haja mais ninguém aqui em casa para ir chorar comigo – é que ir chorar sozinho para o quarto é um passatempo que remonta à infância e que traduz o sentimento de que a terra é desabitada de esperança. Os miúdos vão chorar sozinhos para o quarto nas seguintes ocasiões: quando o pai deixa a família de malas aviadas; quando o Natal é em Fevereiro; quando a empregada lavou com lixívia as cuecas do Super-Homem; e quando os políticos portugueses produzem “grandes momentos de televisão”.Bem sei que o meu espanto é infantil, mas esse espanto transforma-se em perplexidade quando, no dia seguinte, há o consenso geral de que o Sócrates x Louçã foi “um espectáculo”. E então percebo: ah, é como um jogo de futebol: já tivemos o Sócrates x Portas, o Louçã x Jerónimo, e agora vai ser a final do campeonato. O problema é que não é futebol, e quem perde somos nós: o losango do Louçã não deu cabo do 4-3-3 do Sócrates, não houve golos, ninguém despiu a camisola. O que aconteceu, então, neste “grande momento de televisão”? Debateu-se marginalmente um país fortemente mergulhado na crise (e, regra geral, convencido de que a “recessão técnica” terminou) com os seguintes gestos técnicos: insultos, expressões bacocas de indignação, ataques comezinhos, números atirados ao ar que os portugueses não têm ideia do que significam, esgares estapafúrdios, gestos inoportunos (Sócrates chegou a oferecer o programa do Bloco de Esquerda ao árbitro Judite de Sousa, que lhe devia ter mostrado o cartão amarelo) e o partidarismo vincado e poeirento de dois políticos que tinham a obrigação de fazer mais e melhor do que fazem nos treinos do Parlamento durante o resto do ano. Mas foi um “grande momento de televisão”, dizem os especialistas. Sócrates e Louçã, aliás, têm uma longa tradição de grandes momentos. Quem assistiu às sessões parlamentares sabe bem que, entre metáforas do Robin dos Bosques, diatribes sobre a liberdade de expressão, e insultos à tua mãe, as duas equipas adoram discutir sobre coisa nenhuma e deixar o público em êxtase.Já dizia o transcendentalista Ralph Waldo Emerson, em meados do século XIX, que “qualquer Estado actual é corrupto”; 150 anos mais tarde, contudo, permaneço na esperança de, um dia, assistir ao discurso honesto de um político português. Por honestidade entendo nada mais do que isto: a admissão pública – uma vez que o cargo ocupado ou ambicionado é público – de que, em matéria de facto, as promessas políticas têm o mesmo valor das promessas de um vendedor de carros usados. Mas o que seria isso para as audiências? Um momento morto; uma descida a pique; um auto-golo. Enquanto existirem “grandes momentos de televisão”, contudo, uma coisa é certa: eu passarei grandes momentos a chorar sozinho no quarto.


Esta semana decidi assistir aos debates das legislativas e acabei a chorar sozinho no quarto. Não é que haja mais ninguém aqui em casa para ir chorar comigo – é que ir chorar sozinho para o quarto é um passatempo que remonta à infância e que traduz o sentimento de que a terra é desabitada de esperança. Os miúdos vão chorar sozinhos para o quarto nas seguintes ocasiões: quando o pai deixa a família de malas aviadas; quando o Natal é em Fevereiro; quando a empregada lavou com lixívia as cuecas do Super-Homem; e quando os políticos portugueses produzem “grandes momentos de televisão”.Bem sei que o meu espanto é infantil, mas esse espanto transforma-se em perplexidade quando, no dia seguinte, há o consenso geral de que o Sócrates x Louçã foi “um espectáculo”. E então percebo: ah, é como um jogo de futebol: já tivemos o Sócrates x Portas, o Louçã x Jerónimo, e agora vai ser a final do campeonato. O problema é que não é futebol, e quem perde somos nós: o losango do Louçã não deu cabo do 4-3-3 do Sócrates, não houve golos, ninguém despiu a camisola. O que aconteceu, então, neste “grande momento de televisão”? Debateu-se marginalmente um país fortemente mergulhado na crise (e, regra geral, convencido de que a “recessão técnica” terminou) com os seguintes gestos técnicos: insultos, expressões bacocas de indignação, ataques comezinhos, números atirados ao ar que os portugueses não têm ideia do que significam, esgares estapafúrdios, gestos inoportunos (Sócrates chegou a oferecer o programa do Bloco de Esquerda ao árbitro Judite de Sousa, que lhe devia ter mostrado o cartão amarelo) e o partidarismo vincado e poeirento de dois políticos que tinham a obrigação de fazer mais e melhor do que fazem nos treinos do Parlamento durante o resto do ano. Mas foi um “grande momento de televisão”, dizem os especialistas. Sócrates e Louçã, aliás, têm uma longa tradição de grandes momentos. Quem assistiu às sessões parlamentares sabe bem que, entre metáforas do Robin dos Bosques, diatribes sobre a liberdade de expressão, e insultos à tua mãe, as duas equipas adoram discutir sobre coisa nenhuma e deixar o público em êxtase.Já dizia o transcendentalista Ralph Waldo Emerson, em meados do século XIX, que “qualquer Estado actual é corrupto”; 150 anos mais tarde, contudo, permaneço na esperança de, um dia, assistir ao discurso honesto de um político português. Por honestidade entendo nada mais do que isto: a admissão pública – uma vez que o cargo ocupado ou ambicionado é público – de que, em matéria de facto, as promessas políticas têm o mesmo valor das promessas de um vendedor de carros usados. Mas o que seria isso para as audiências? Um momento morto; uma descida a pique; um auto-golo. Enquanto existirem “grandes momentos de televisão”, contudo, uma coisa é certa: eu passarei grandes momentos a chorar sozinho no quarto.

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