O Estado inventou os documentos de identidade e não conseguimos viver sem eles

24-05-2011
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A Revolução Francesa trouxe a identificação universal dos cidadãos e isso abriu portas ao mundo tal como o conhecemos. Estamos obrigados a viver numa sociedade dominada por uma cultura omnipresente de segurança? O historiador francês diz que não é uma fatalidade

Quando começou a estudar as questões da mobilidade dos cidadãos na sociedade francesa do século XVIII, Vincent Denis (n. 1972) foi atraído pela ênfase posta nos problemas da identificação dos cidadãos. "Achei muito interessantes os documentos de identidade, a identificação dos mortos anónimos, o registo dos soldados e o modo como tudo era feito", confessa. Assim começou uma linha de investigação que levou o historiador e professor da Universidade da Sorbonne, de Paris, do Ancien Régime (Antigo Regime) até à Revolução Francesa. A síntese desse trabalho está num livro publicado em 2008 (Une Historie de l"Identité - France, 1715-1815). Vincent Denis esteve em Lisboa a convite do Centro de Estudos de História Contemporânea, do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, de Lisboa, para falar sobre a génese da identificação individual, um processo que, diz, "acompanha a construção do Estado" moderno. Vai publicar em Setembro um livro sobre a presença muçulmana na Europa Ocidental e prepara uma história da polícia de Paris na Revolução Francesa.

O processo de identificação dos cidadãos é um legado da Revolução Francesa?

É um processo que acompanha a construção do Estado. De facto, começa no século XVIII, mas ainda antes da Revolução Francesa. Essa cultura de identificação, com as técnicas que lhe estão associadas, começou a fazer-se de forma mais sistematizada e considerável a partir daí, com um sentido político de centralização e de reorganização da administração que é novo e muito importante. Por isso, pode dizer-se que essa é uma grande transformação decorrente da Revolução, sim. A identificação dos cidadãos não tem o mesmo sentido e função no Antigo Regime que vai ter depois.

Qual é a grande diferença?

No Antigo Regime, a identificação pela polícia, por exemplo, serve para conservar o estado dos indivíduos e a estrutura da sociedade, de forma a garantir que cada cidadão pertença a um grupo social, a uma comunidade bem particular. Com a Revolução Francesa já não se trata de conservar uma sociedade orgânica, mas de delimitar os contornos de uma comunidade nacional onde todos os cidadãos são iguais. E cada um tem os seus direitos. O que importa é delimitá-la face aos estrangeiros, por exemplo.

O registo social dos indivíduos é o único objectivo?

Os mecanismos da identificação são reveladores do funcionamento das sociedades e podem servir para várias coisas - a assistência, o apoio às classes mais desfavorecidas, o controlo dos soldados [havia muitas deserções na época] e a obtenção de apoios para eles, reformas, etc. Está tudo ligado ao modo como o Estado entra na vida dos cidadãos e a controla. A principal consequência tem a ver com a ligação criada entre o Estado e a administração e a existência quotidiana dos cidadãos. Quanto mais essa relação com o Estado existe, mais esses laços são importantes.

A construção da identificação é consequência de uma política, mesmo se há uma autonomia da administração ao fazê-lo.

Como reagem os cidadãos à introdução desses processos de identificação?

Assistimos nesse período a uma grande transformação da sociedade, porque houve um grande esforço das autoridades para levar as pessoas a utilizarem esses novos códigos de definir a sua identidade. Até então, pode dizer-se que o que dominava era uma identidade construída na base das relações pessoais entre os indivíduos na comunidade. Quando eles partem das aldeias deixam de ser conhecidos e, de algum modo, passam a ser estrangeiros. O que se passa com os documentos escritos é que eles conferem uma identidade, que passa a ser controlada. Além disso, permitem a circulação. É algo de completamente novo para muita gente, que passa a dispor desses documentos de identificação. Isso introduz uma grande transformação na vida das pessoas, sobretudo se pensarmos que a maioria da população nem sequer sabia ler.

Na Idade Média esses documentos (passaportes, livres-trânsitos, etc.) estavam ligados a privilégios, eram coisas caras, reservadas às elites, aos comerciantes. Desde o século XVII havia um núcleo muito modesto de pessoas que precisavam desses documentos e podiam então obtê-los, embora com dificuldade. Mas depois eles tornaram-se muito mais banais.

Como se harmoniza a necessidade de controlo social dos cidadãos por parte dos estados e a garantia de cumprimento das liberdades individuais no quadro das sociedades democráticas?

Essa necessidade de identificação está fundamentalmente ligada à criação de estados democráticos - pelo menos em parte é por essa razão. De facto, um Estado democrático não poderia funcionar hoje sem isso. Mas é claro que há uma grande diferença entre o sistema de identificação existente num sistema democrático e o que não o é. Em França, durante a Segunda Guerra Mundial, o regime de Vichy desenvolveu o cartão nacional de identidade. Criou um sistema de número individual e contemplava questionários extremamente detalhados e complexos, com perguntas sobre a genealogia, competências profissionais, etc. Este sistema de iniciativa da administração francesa foi acolhido calorosamente pelos alemães. Nunca chegou a ficar totalmente operacional, pois foi desenvolvido a partir de 1941 e em 1944 veio a Libertação e o regime caiu. Os dados que estão actualmente nesse documento de identificação, que continua a existir, são importantes mas não estão centralizados, pois têm uma base departamental. Existe cartão de identidade nacional, mas não existe registo central.

Actualmente assistimos a um aumento do número de dados que são guardados, há a interconexão das diferentes bases de dados e isso levanta questões que são inquietantes.

Há quem pense que a Europa é um continente ameaçado a partir do exterior. Até que ponto isso justifica ou contribui para desenvolver mecanismos mais apertados de identificação dos cidadãos?

Isso já começou nos anos de 1980 e 1990, ainda antes do 11 de Setembro, em torno da criminalidade e da emigração, com o desenvolvimento daquilo a que chamamos tecnologias de identificação. É uma fase nova, mas da qual ainda não sabemos grande coisa.

Já tivemos fases de reforço dos controlos muito acentuadas no final do século XIX ou durante a Primeira Grande Mundial. Mas também houve fases de recuo desse reflexo securitário - por exemplo, na primeira metade do século XIX até aos anos de 1970 e 1980, com um declínio dessas formas relacionado em particular com a revolução dos transportes. Em França, é suprimido o passaporte interno. Mas na mesma época, e não é certamente por acaso, assistimos ao desenvolvimento da polícia dos caminhos-de-ferro, aplica-se a antropometria judiciária, surgem os ficheiros criminais. Já não é necessário "fichar" toda a gente, mas apenas uma parte da população, só que de maneira muito mais eficaz do que no passado. Ora, não é por mero humanitarismo que as coisas evoluem neste campo, mas porque se substitui um tipo de controlo por outro, incidindo sobre outros grupos de população, e que é talvez mais eficaz.

O terror político coloca desafios especiais às técnicas e sistemas de identificação?

Há uma corrida de velocidade perpétua entre os sistemas de identificação e os que tentam contorná-los. Essa corrida acelerou-se com a evolução tecnológica dos últimos tempos. A História revela que existe um efeito de aceleração e recuperação. Por exemplo, no começo da Revolução Francesa, a polícia e as autoridades comportavam-se com muita ingenuidade relativamente ao que acontecia e, em particular, no controlo da moeda, que começava a ser impressa e era alvo da acção dos falsários, com grave prejuízo para o novo regime. Após alguns anos, compreendem que é necessário investir muito dinheiro em técnicas de impressão mais sofisticadas aplicáveis aos documentos de identidade. É em 1806 que irá pela primeira vez ser realizado um passaporte, uniforme em França e à escala do Império, impresso em papel especial e com características que tornam muito difícil a falsificação. É a primeira vez que isso acontece. O mesmo acontece nos anos 1830 com o cartão de identidade, que até então era feito com todo o tipo de papel e no qual cada um podia acrescentar fotos que não eram normalizadas e que, por isso mesmo, podiam ser facilmente falsificados. Na Segunda Guerra Mundial, houve esforços dos dois lados (ocupantes alemães e Resistência) para pôr os falsários ao seu serviço (depois aproveitados também pelos serviços secretos), criando passaportes e usando técnicas para iludir os sistemas de controlo. Hoje é o mesmo, pois há pessoas que tentam tirar partido dos sistemas existentes.

Podemos imaginar uma sociedade contemporânea onde esses sistemas de identificação não tenham sentido?

Não creio. Sociólogos do final do século XIX como Weber ou Durkheim associaram a burocracia à democracia. Há um Estado ligado à sociedade de forma muito evidente, os cidadãos participam no Estado e existe um sistema social, pelo que, simplesmente, não podemos dispensar tudo isso. Em todo o caso, num sistema democrático há informações que não damos ao Estado ou, se preferirmos, há um limite para os mecanismos de controlo. Nas sociedades complexas, onde existem relações à distância entre os indivíduos que são cada vez mais importantes, relações de interdependência, a existência de documentos é fundamental para se saber quem é quem.

Que garantias devem os cidadãos exigir dos estados no capítulo de recolha e sistematização de informação sobre si próprios?

Antes de mais, o direito de poder ver esses dados. É perigoso deixar a terceiros a possibilidade de definir o que constitui a identidade de cada um. Imagine-se o que é haver dados falsos e não poder corrigi-los. Outra coisa é garantir a limitação de acesso aos dados a certas categorias de pessoas. Em França, por exemplo a polícia utiliza enormemente os dados pessoais dos cidadãos contornando um certo número de controlos.

Como interpreta o reflexo securitário associado ao fundamentalismo?

Não acho que seja uma fatalidade ou que sejamos obrigados a aceitar isso. Há uma dinâmica associada aos grupos industriais que vendem as soluções tecnológicas e que ganham muito dinheiro com isso, mas não somos obrigados a ir por aí. Há países na Europa com sistemas muito diferentes onde não houve explosão de criminalidade ou fenómenos de terrorismo.

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A construção europeia não deveria tornar obsoletos esses dispositivos?

Infelizmente, o que mais se desenvolveu na Europa foi a cooperação policial (os acordos de Schengen), com sistemas comuns integrados que permitem que uma pessoa que entra nesse espaço seja automaticamente admitida nos outros estados. Existe uma autêntica integração na base de sistemas que visam os estrangeiros. Infelizmente, não há discussão interna na União Europeia relativamente a isso.

A Revolução Francesa trouxe a identificação universal dos cidadãos e isso abriu portas ao mundo tal como o conhecemos. Estamos obrigados a viver numa sociedade dominada por uma cultura omnipresente de segurança? O historiador francês diz que não é uma fatalidade

Quando começou a estudar as questões da mobilidade dos cidadãos na sociedade francesa do século XVIII, Vincent Denis (n. 1972) foi atraído pela ênfase posta nos problemas da identificação dos cidadãos. "Achei muito interessantes os documentos de identidade, a identificação dos mortos anónimos, o registo dos soldados e o modo como tudo era feito", confessa. Assim começou uma linha de investigação que levou o historiador e professor da Universidade da Sorbonne, de Paris, do Ancien Régime (Antigo Regime) até à Revolução Francesa. A síntese desse trabalho está num livro publicado em 2008 (Une Historie de l"Identité - France, 1715-1815). Vincent Denis esteve em Lisboa a convite do Centro de Estudos de História Contemporânea, do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, de Lisboa, para falar sobre a génese da identificação individual, um processo que, diz, "acompanha a construção do Estado" moderno. Vai publicar em Setembro um livro sobre a presença muçulmana na Europa Ocidental e prepara uma história da polícia de Paris na Revolução Francesa.

O processo de identificação dos cidadãos é um legado da Revolução Francesa?

É um processo que acompanha a construção do Estado. De facto, começa no século XVIII, mas ainda antes da Revolução Francesa. Essa cultura de identificação, com as técnicas que lhe estão associadas, começou a fazer-se de forma mais sistematizada e considerável a partir daí, com um sentido político de centralização e de reorganização da administração que é novo e muito importante. Por isso, pode dizer-se que essa é uma grande transformação decorrente da Revolução, sim. A identificação dos cidadãos não tem o mesmo sentido e função no Antigo Regime que vai ter depois.

Qual é a grande diferença?

No Antigo Regime, a identificação pela polícia, por exemplo, serve para conservar o estado dos indivíduos e a estrutura da sociedade, de forma a garantir que cada cidadão pertença a um grupo social, a uma comunidade bem particular. Com a Revolução Francesa já não se trata de conservar uma sociedade orgânica, mas de delimitar os contornos de uma comunidade nacional onde todos os cidadãos são iguais. E cada um tem os seus direitos. O que importa é delimitá-la face aos estrangeiros, por exemplo.

O registo social dos indivíduos é o único objectivo?

Os mecanismos da identificação são reveladores do funcionamento das sociedades e podem servir para várias coisas - a assistência, o apoio às classes mais desfavorecidas, o controlo dos soldados [havia muitas deserções na época] e a obtenção de apoios para eles, reformas, etc. Está tudo ligado ao modo como o Estado entra na vida dos cidadãos e a controla. A principal consequência tem a ver com a ligação criada entre o Estado e a administração e a existência quotidiana dos cidadãos. Quanto mais essa relação com o Estado existe, mais esses laços são importantes.

A construção da identificação é consequência de uma política, mesmo se há uma autonomia da administração ao fazê-lo.

Como reagem os cidadãos à introdução desses processos de identificação?

Assistimos nesse período a uma grande transformação da sociedade, porque houve um grande esforço das autoridades para levar as pessoas a utilizarem esses novos códigos de definir a sua identidade. Até então, pode dizer-se que o que dominava era uma identidade construída na base das relações pessoais entre os indivíduos na comunidade. Quando eles partem das aldeias deixam de ser conhecidos e, de algum modo, passam a ser estrangeiros. O que se passa com os documentos escritos é que eles conferem uma identidade, que passa a ser controlada. Além disso, permitem a circulação. É algo de completamente novo para muita gente, que passa a dispor desses documentos de identificação. Isso introduz uma grande transformação na vida das pessoas, sobretudo se pensarmos que a maioria da população nem sequer sabia ler.

Na Idade Média esses documentos (passaportes, livres-trânsitos, etc.) estavam ligados a privilégios, eram coisas caras, reservadas às elites, aos comerciantes. Desde o século XVII havia um núcleo muito modesto de pessoas que precisavam desses documentos e podiam então obtê-los, embora com dificuldade. Mas depois eles tornaram-se muito mais banais.

Como se harmoniza a necessidade de controlo social dos cidadãos por parte dos estados e a garantia de cumprimento das liberdades individuais no quadro das sociedades democráticas?

Essa necessidade de identificação está fundamentalmente ligada à criação de estados democráticos - pelo menos em parte é por essa razão. De facto, um Estado democrático não poderia funcionar hoje sem isso. Mas é claro que há uma grande diferença entre o sistema de identificação existente num sistema democrático e o que não o é. Em França, durante a Segunda Guerra Mundial, o regime de Vichy desenvolveu o cartão nacional de identidade. Criou um sistema de número individual e contemplava questionários extremamente detalhados e complexos, com perguntas sobre a genealogia, competências profissionais, etc. Este sistema de iniciativa da administração francesa foi acolhido calorosamente pelos alemães. Nunca chegou a ficar totalmente operacional, pois foi desenvolvido a partir de 1941 e em 1944 veio a Libertação e o regime caiu. Os dados que estão actualmente nesse documento de identificação, que continua a existir, são importantes mas não estão centralizados, pois têm uma base departamental. Existe cartão de identidade nacional, mas não existe registo central.

Actualmente assistimos a um aumento do número de dados que são guardados, há a interconexão das diferentes bases de dados e isso levanta questões que são inquietantes.

Há quem pense que a Europa é um continente ameaçado a partir do exterior. Até que ponto isso justifica ou contribui para desenvolver mecanismos mais apertados de identificação dos cidadãos?

Isso já começou nos anos de 1980 e 1990, ainda antes do 11 de Setembro, em torno da criminalidade e da emigração, com o desenvolvimento daquilo a que chamamos tecnologias de identificação. É uma fase nova, mas da qual ainda não sabemos grande coisa.

Já tivemos fases de reforço dos controlos muito acentuadas no final do século XIX ou durante a Primeira Grande Mundial. Mas também houve fases de recuo desse reflexo securitário - por exemplo, na primeira metade do século XIX até aos anos de 1970 e 1980, com um declínio dessas formas relacionado em particular com a revolução dos transportes. Em França, é suprimido o passaporte interno. Mas na mesma época, e não é certamente por acaso, assistimos ao desenvolvimento da polícia dos caminhos-de-ferro, aplica-se a antropometria judiciária, surgem os ficheiros criminais. Já não é necessário "fichar" toda a gente, mas apenas uma parte da população, só que de maneira muito mais eficaz do que no passado. Ora, não é por mero humanitarismo que as coisas evoluem neste campo, mas porque se substitui um tipo de controlo por outro, incidindo sobre outros grupos de população, e que é talvez mais eficaz.

O terror político coloca desafios especiais às técnicas e sistemas de identificação?

Há uma corrida de velocidade perpétua entre os sistemas de identificação e os que tentam contorná-los. Essa corrida acelerou-se com a evolução tecnológica dos últimos tempos. A História revela que existe um efeito de aceleração e recuperação. Por exemplo, no começo da Revolução Francesa, a polícia e as autoridades comportavam-se com muita ingenuidade relativamente ao que acontecia e, em particular, no controlo da moeda, que começava a ser impressa e era alvo da acção dos falsários, com grave prejuízo para o novo regime. Após alguns anos, compreendem que é necessário investir muito dinheiro em técnicas de impressão mais sofisticadas aplicáveis aos documentos de identidade. É em 1806 que irá pela primeira vez ser realizado um passaporte, uniforme em França e à escala do Império, impresso em papel especial e com características que tornam muito difícil a falsificação. É a primeira vez que isso acontece. O mesmo acontece nos anos 1830 com o cartão de identidade, que até então era feito com todo o tipo de papel e no qual cada um podia acrescentar fotos que não eram normalizadas e que, por isso mesmo, podiam ser facilmente falsificados. Na Segunda Guerra Mundial, houve esforços dos dois lados (ocupantes alemães e Resistência) para pôr os falsários ao seu serviço (depois aproveitados também pelos serviços secretos), criando passaportes e usando técnicas para iludir os sistemas de controlo. Hoje é o mesmo, pois há pessoas que tentam tirar partido dos sistemas existentes.

Podemos imaginar uma sociedade contemporânea onde esses sistemas de identificação não tenham sentido?

Não creio. Sociólogos do final do século XIX como Weber ou Durkheim associaram a burocracia à democracia. Há um Estado ligado à sociedade de forma muito evidente, os cidadãos participam no Estado e existe um sistema social, pelo que, simplesmente, não podemos dispensar tudo isso. Em todo o caso, num sistema democrático há informações que não damos ao Estado ou, se preferirmos, há um limite para os mecanismos de controlo. Nas sociedades complexas, onde existem relações à distância entre os indivíduos que são cada vez mais importantes, relações de interdependência, a existência de documentos é fundamental para se saber quem é quem.

Que garantias devem os cidadãos exigir dos estados no capítulo de recolha e sistematização de informação sobre si próprios?

Antes de mais, o direito de poder ver esses dados. É perigoso deixar a terceiros a possibilidade de definir o que constitui a identidade de cada um. Imagine-se o que é haver dados falsos e não poder corrigi-los. Outra coisa é garantir a limitação de acesso aos dados a certas categorias de pessoas. Em França, por exemplo a polícia utiliza enormemente os dados pessoais dos cidadãos contornando um certo número de controlos.

Como interpreta o reflexo securitário associado ao fundamentalismo?

Não acho que seja uma fatalidade ou que sejamos obrigados a aceitar isso. Há uma dinâmica associada aos grupos industriais que vendem as soluções tecnológicas e que ganham muito dinheiro com isso, mas não somos obrigados a ir por aí. Há países na Europa com sistemas muito diferentes onde não houve explosão de criminalidade ou fenómenos de terrorismo.

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A construção europeia não deveria tornar obsoletos esses dispositivos?

Infelizmente, o que mais se desenvolveu na Europa foi a cooperação policial (os acordos de Schengen), com sistemas comuns integrados que permitem que uma pessoa que entra nesse espaço seja automaticamente admitida nos outros estados. Existe uma autêntica integração na base de sistemas que visam os estrangeiros. Infelizmente, não há discussão interna na União Europeia relativamente a isso.

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