O pacto recente entre PCP e BE aponta para um inimigo - o PS

04-10-2012
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PCP e BE acreditam que as moções podem contribuir para a divisão do PS. Desejo que estejam enganados

De uma certa forma, o século XX foi o século da cegueira das elites que, nuns casos, não anteviram os sinais de desastres históricos anunciados, e noutros, contribuíram fortemente para a sua consumação. Num debate televisivo em que tive, aqui há dias, o privilégio de participar, um economista espanhol dotado de vasta cultura lembrou esses erros trágicos e chamou a atenção para o risco de voltarem a ser cometidos. Anton Costas, professor de Economia em Barcelona e articulista dominical do El País, citou mesmo Stefan Zweig, o grande escritor austríaco, que numa obra magistral retratou o fenómeno do apagamento das elites vienenses perante o avanço da barbárie fascista e anti-semita. Num outro registo, Raymond Aron atacou, num estado de grande solidão, o fascínio exercido pela vulgata marxista que apelidou de "ópio dos intelectuais".

Na verdade, infirmando a ingénua crença positivista, o avanço dos conhecimentos no campo das ciências humanas e sociais não conduziu automaticamente ao reforço da lucidez dos designados intelectuais, e muito menos ao aperfeiçoamento da acção política pura. As restantes elites revelaram também uma curiosa tendência para uma espécie de cegueira que haveria de torná-las cúmplices dos monstruosos acontecimentos que, para o pior, marcaram o século passado.

O que se está hoje a passar, em certos sectores da sociedade portuguesa, remete-nos para uma reflexão sobre este mesmo assunto. Por que se enganam e nos enganam frequentemente as elites? Por distintos motivos, certamente, mas sobretudo por um vício que consiste na forma como se relacionam incorrectamente com a realidade. Atentemos em dois casos-limite e igualmente exemplares - os neoliberais e os neomarxistas.

O professor António Borges não é um homem qualquer. Mesmo os seus maiores críticos condescenderão no reconhecimento da sua superior formação académica, e não negarão a relevância de um currículo internacional impressionante. Contudo, no passado fim-de-semana, proferiu afirmações que foram recebidas entre a incredulidade e a ironia. Não estamos diante de um lapso intelectual, mas antes de uma questão de outra natureza. António Borges pensa, fala e age dentro de um sistema conceptual auto-referenciado à utopia de uma racionalidade económica pura. É essa a tragédia antropológica dos liberais radicais - de certa forma eles apelam a uma espécie de "facto económico total" e, com isso, reduzem drasticamente o campo da acção da razão humana. Para António Borges e seus acólitos, normalmente menos providos de dotes de inteligência, a posição do Governo no que concerne à questão da TSU estava correcta, e só por um erro de apreciação intelectual os empresários o não reconheceram. O mundo de António Borges tem a dimensão de um texto económico e a complexidade de uma sala de aula. Por isso não hesitou na sentença - reprovava-os. A todos, de Belmiro de Azevedo ao sensato presidente da CIP, António Saraiva. O problema de António Borges radica na incapacidade de construir um pensamento capaz de operar simultaneamente em campos diversos e potencialmente contraditórios, entre o económico, o social, o histórico e o político. Ele tem, porém, uma vantagem que o torna potencialmente mais perigoso - é um homem inteligente, muito acima da média de alguns dos nossos principais decisores políticos. Estes estão infelizmente demasiado seduzidos pelo brilho intelectual que emana destes economistas dogmáticos e sectários.

Os neomarxistas, de algum modo, compartilham muitos desses vícios. São dogmáticos, sectários e antropologicamente superficiais. Na versão contemporânea, são declamadores de litanias utópicas irrealizáveis. No fundo, também desconfiam da dimensão política enquanto esfera autónoma da acção humana e remetem toda a explicação da realidade para uma dimensão económica. Já foram perigosos, agora serão pouco mais do que diletantes, o que não significa que não possam voltar a constituir um perigo público.

O PCP e o Bloco de Esquerda, que, aparentemente, entraram na fase do ódio cordial, decidiram apresentar moções de censura contra o Governo. Convém, contudo, ter em consideração que na extrema-esquerda as coisas nunca são o que parecem ser, as palavras remetem sempre para outro significado, a linguagem aponta para um sentido oculto. Eles querem-se dialécticos, raramente se elevam para além da escolástica. Por isso mesmo, este recente pacto aponta para um inimigo - o PS. A ideia de que as esquerdas se devem unir é, como sabemos, uma fantasia de adolescentes políticos, pela razão simples de que elas quase nunca estiveram unidas e, em vários momentos, até se combateram mortalmente. É esse confronto que a extrema-esquerda portuguesa prossegue agora com estas moções de censura. As suas intenções primárias são evidentes - visam colar o PS à direita, insinuar que a verdadeira linha divisória no nosso país político é a que se atravessa entre o PS e eles próprios. Estamos perante a habitual cegueira da esquerda extremista. A sua última manifestação consequente ocorreu no ano passado, quando se associaram à direita para derrubar o Governo de José Sócrates. Agora parecem reincidir, com a minúscula diferença da sua própria impotência. Já não estão em condições de provocar a queda do Governo. O que até provavelmente os reconforta, já que acreditam que isso pode contribuir para a divisão do PS. Desejo que estejam enganados.

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Estamos perante dois tipos de intelligentsia que falham estrondosamente na compreensão da realidade e, de alguma forma, são uma espécie de irmãos inseparáveis. O mundo de Vítor Gaspar seria mais racional e muito mais simples se nada mais existisse entre ele e o professor Francisco Louçã. O universo de Louçã seria perfeito se um imenso vazio o aproximasse dos seus idolatrados adversários ultraliberais. A vida é, porém, mais complexa. Entre estes professores, certamente muito respeitáveis, há uma coisa complexa, contraditória, difícil, às vezes inexplicável, que se chama, prosaicamente, realidade. E essa realidade precisa urgentemente de ser politicamente organizada. Esse é o desafio do PS e de vastos sectores do centro e do centro-direita portugueses.

Hoje vamos assistir ao debate de duas moções de censura. Confesso que gosto de Francisco Louçã, e não sou insensível ao brilho intelectual de Vítor Gaspar. Mas o seu combate é um confronto entre a peste e a cólera. Entre elas, eu ainda acredito numa coisa chamada esperança.

PCP e BE acreditam que as moções podem contribuir para a divisão do PS. Desejo que estejam enganados

De uma certa forma, o século XX foi o século da cegueira das elites que, nuns casos, não anteviram os sinais de desastres históricos anunciados, e noutros, contribuíram fortemente para a sua consumação. Num debate televisivo em que tive, aqui há dias, o privilégio de participar, um economista espanhol dotado de vasta cultura lembrou esses erros trágicos e chamou a atenção para o risco de voltarem a ser cometidos. Anton Costas, professor de Economia em Barcelona e articulista dominical do El País, citou mesmo Stefan Zweig, o grande escritor austríaco, que numa obra magistral retratou o fenómeno do apagamento das elites vienenses perante o avanço da barbárie fascista e anti-semita. Num outro registo, Raymond Aron atacou, num estado de grande solidão, o fascínio exercido pela vulgata marxista que apelidou de "ópio dos intelectuais".

Na verdade, infirmando a ingénua crença positivista, o avanço dos conhecimentos no campo das ciências humanas e sociais não conduziu automaticamente ao reforço da lucidez dos designados intelectuais, e muito menos ao aperfeiçoamento da acção política pura. As restantes elites revelaram também uma curiosa tendência para uma espécie de cegueira que haveria de torná-las cúmplices dos monstruosos acontecimentos que, para o pior, marcaram o século passado.

O que se está hoje a passar, em certos sectores da sociedade portuguesa, remete-nos para uma reflexão sobre este mesmo assunto. Por que se enganam e nos enganam frequentemente as elites? Por distintos motivos, certamente, mas sobretudo por um vício que consiste na forma como se relacionam incorrectamente com a realidade. Atentemos em dois casos-limite e igualmente exemplares - os neoliberais e os neomarxistas.

O professor António Borges não é um homem qualquer. Mesmo os seus maiores críticos condescenderão no reconhecimento da sua superior formação académica, e não negarão a relevância de um currículo internacional impressionante. Contudo, no passado fim-de-semana, proferiu afirmações que foram recebidas entre a incredulidade e a ironia. Não estamos diante de um lapso intelectual, mas antes de uma questão de outra natureza. António Borges pensa, fala e age dentro de um sistema conceptual auto-referenciado à utopia de uma racionalidade económica pura. É essa a tragédia antropológica dos liberais radicais - de certa forma eles apelam a uma espécie de "facto económico total" e, com isso, reduzem drasticamente o campo da acção da razão humana. Para António Borges e seus acólitos, normalmente menos providos de dotes de inteligência, a posição do Governo no que concerne à questão da TSU estava correcta, e só por um erro de apreciação intelectual os empresários o não reconheceram. O mundo de António Borges tem a dimensão de um texto económico e a complexidade de uma sala de aula. Por isso não hesitou na sentença - reprovava-os. A todos, de Belmiro de Azevedo ao sensato presidente da CIP, António Saraiva. O problema de António Borges radica na incapacidade de construir um pensamento capaz de operar simultaneamente em campos diversos e potencialmente contraditórios, entre o económico, o social, o histórico e o político. Ele tem, porém, uma vantagem que o torna potencialmente mais perigoso - é um homem inteligente, muito acima da média de alguns dos nossos principais decisores políticos. Estes estão infelizmente demasiado seduzidos pelo brilho intelectual que emana destes economistas dogmáticos e sectários.

Os neomarxistas, de algum modo, compartilham muitos desses vícios. São dogmáticos, sectários e antropologicamente superficiais. Na versão contemporânea, são declamadores de litanias utópicas irrealizáveis. No fundo, também desconfiam da dimensão política enquanto esfera autónoma da acção humana e remetem toda a explicação da realidade para uma dimensão económica. Já foram perigosos, agora serão pouco mais do que diletantes, o que não significa que não possam voltar a constituir um perigo público.

O PCP e o Bloco de Esquerda, que, aparentemente, entraram na fase do ódio cordial, decidiram apresentar moções de censura contra o Governo. Convém, contudo, ter em consideração que na extrema-esquerda as coisas nunca são o que parecem ser, as palavras remetem sempre para outro significado, a linguagem aponta para um sentido oculto. Eles querem-se dialécticos, raramente se elevam para além da escolástica. Por isso mesmo, este recente pacto aponta para um inimigo - o PS. A ideia de que as esquerdas se devem unir é, como sabemos, uma fantasia de adolescentes políticos, pela razão simples de que elas quase nunca estiveram unidas e, em vários momentos, até se combateram mortalmente. É esse confronto que a extrema-esquerda portuguesa prossegue agora com estas moções de censura. As suas intenções primárias são evidentes - visam colar o PS à direita, insinuar que a verdadeira linha divisória no nosso país político é a que se atravessa entre o PS e eles próprios. Estamos perante a habitual cegueira da esquerda extremista. A sua última manifestação consequente ocorreu no ano passado, quando se associaram à direita para derrubar o Governo de José Sócrates. Agora parecem reincidir, com a minúscula diferença da sua própria impotência. Já não estão em condições de provocar a queda do Governo. O que até provavelmente os reconforta, já que acreditam que isso pode contribuir para a divisão do PS. Desejo que estejam enganados.

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Estamos perante dois tipos de intelligentsia que falham estrondosamente na compreensão da realidade e, de alguma forma, são uma espécie de irmãos inseparáveis. O mundo de Vítor Gaspar seria mais racional e muito mais simples se nada mais existisse entre ele e o professor Francisco Louçã. O universo de Louçã seria perfeito se um imenso vazio o aproximasse dos seus idolatrados adversários ultraliberais. A vida é, porém, mais complexa. Entre estes professores, certamente muito respeitáveis, há uma coisa complexa, contraditória, difícil, às vezes inexplicável, que se chama, prosaicamente, realidade. E essa realidade precisa urgentemente de ser politicamente organizada. Esse é o desafio do PS e de vastos sectores do centro e do centro-direita portugueses.

Hoje vamos assistir ao debate de duas moções de censura. Confesso que gosto de Francisco Louçã, e não sou insensível ao brilho intelectual de Vítor Gaspar. Mas o seu combate é um confronto entre a peste e a cólera. Entre elas, eu ainda acredito numa coisa chamada esperança.

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