O futuro da esquerda e as dores siamesas do PS e do Bloco

01-07-2011
marcar artigo

É altura de reconhecer que a crise de identidade dos socialistas é, antes do mais, uma crise de ideias

O PS já perdera muitas eleições antes de sair derrotado do 5 de Junho. O PS também já passou por vários processos de escolha de uma nova liderança. Contudo, talvez nunca o PS tenha estado tão mergulhado numa crise de identidade como hoje. Com uma particularidade: a crise do PS tem uma irmã gémea na crise do Bloco de Esquerda, mas esta é ainda mais virulenta.

A crise de identidade dos socialistas tem uma primeira e significativa manifestação na incapacidade dos dois candidatos à liderança de enfrentarem os erros do passado recente. Há uma certa esquizofrenia na forma como Seguro e Assis procuram distinguir-se um do outro sem se quererem distinguir radicalmente da herança de Sócrates. Se já não era fácil o caminho de uma nova liderança obrigada a tentar ser oposição numa altura em que o essencial do programa do Governo também foi assinado pelo PS - o compromisso com a troika -, tudo se torna ainda mais difícil quando não se analisa a experiência socrática e o que ela representou de perversão da tradição socialista. Sem expurgar os fantasmas da "missa negra" do Congresso de Matosinhos (em que Assis participou com aparente entusiasmo e onde Seguro não mostrou coragem suficiente), o PS pode mudar de liderança mas não mudará de alma - e essa alma está hoje vendida a um aparelho de carreiristas habituado às mordomias e prebendas da vida à mesa do orçamento.

Mas deixemos por agora aquilo que deveria ser o trabalho de luto dos que querem dar ao PS outro rumo e centremo-nos no que une esta crise de identidade à balbúrdia que se instalou no Bloco de Esquerda. Em conjunto, entre 2009 e 2011, estes dois partidos que partilham mais os respectivos eleitorados do que gostam de reconhecer, perderam 780 mil votos, quase um terço do total. Tratou-se de um tsunami - para utilizar a expressão do dirigente bloquista Fernando Rosas - que deixou ruínas e escombros por todo o lado.

A candidatura de Manuel Alegre correu tão mal que ninguém quis ver nela senão a despedida do político-poeta, quando era muito mais do que isso, pois representou uma forte, e talvez derradeira, tentativa de reerguer uma "esquerda grande" (outra expressão de Rosas) comprometida com um projecto de "transformação da sociedade". Esse projecto de transformação - para alguns, de revolução - tem raízes na tradição de todas as esquerdas que nunca desistiram de "superar o capitalismo", mesmo quando só dizem que aquilo que rejeitam é a "sociedade de mercado".

Não cabe aqui recapitular a longa história dos diferentes movimentos que foram corporizando o caudal do que se convencionou designar por esquerda, mas convém recordar o essencial: para todas as esquerdas há um antes e um depois das grandes viragens ocorridas na década de 80 do século passado. Habitualmente apenas se recorda o colapso do "socialismo real" associado à queda do Muro de Berlim e ao fim da URSS, mas esse período foi também o da emergência, a ocidente, de Reagan e de Thatcher, e, a oriente, de Deng Xiaoping. A retórica dominante - as esquerdas ainda vencem na guerra da linguagem - chama a esse momento de viragem a "emergência do consenso neoliberal", mas o que ocorreu foi o fim dos "anos de ouro" do capitalismo, esses anos do pós-guerra em que um crescimento económico irrepetível permitiu criar os modernos Estados de bem-estar. Foi nessa altura que o dinheiro fácil acabou ou, como notou a sra. Thatcher referindo-se aos políticos socialistas, "they have run out of other people"s money".

Os sonhos redentores de uma sociedade permanentemente afluente terminaram por essa altura, processo que se encontra bem retratado no clássico Cem Anos de Socialismo - A Esquerda Europeia Ocidental no Século XX, de Donald Sassoon. É aí, por exemplo, que se recorda o desabafo de James Callaghan, o último primeiro-ministro trabalhista antes da era Thatcher, datado ainda de 1976: "O mundo confortável em que nos disseram que viveríamos para sempre, onde o pleno emprego estaria assegurado pelas decisões do ministro das Finanças, esse mundo desapareceu. E por que é que existe desemprego? Muito simplesmente porque pagamos salários mais elevados do que o valor daquilo que produzimos".

De Estocolmo a Roma, de Paris a Washington, de Londres a Pequim, vários factores contribuíram para o fim da ilusão keynesiana que parecia poder alimentar um Estado "ama-seca" cada vez mais universal e omnipresente. A globalização redistribuiu a riqueza a favor dos países emergentes. A demografia colocou uma pressão insuportável sobre os sistemas de protecção social. As vagas migratórias abalaram os consensos em que se alicerçavam os mecanismos de transferências de rendimentos. A realidade impôs-se assim com tal força que, para governar, a esquerda foi tendo de abandonar a sua retórica e o seu ideário tradicional. Em 2004, durante a sua candidatura falhada à liderança do PS, Alegre lamentou "a incapacidade revelada pelas recentes experiências de Governos socialistas na Europa para inverterem a lógica neoliberal dominante e criarem soluções políticas alternativas". Nada de substancial mudou desde então e uma obra recém-editada - O que Resta da Esquerda, Mitos e Realidades das Esquerdas no Governo, escrita pelo politólogo Franco Cazzola - reconhece mesmo que nos últimos anos "a esquerda renunciou a decidir como esquerda". E cita-se o historiador Giuseppe Berta: "Existe uma identidade social-democrata, um perfil político especificamente inscrito na social-democracia europeia? No passado, certamente que sim; hoje não".

O melhor do Público no email Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Subscrever ×

O debate em curso no PS não dá respostas novas a estes dilemas, muito menos propõe, por exemplo, substituir a retórica socialista por uma retórica inovadora, progressista e liberal, uma das possíveis saídas para as esquerdas que querem ser Governo. No Bloco fica-se muito mais atrás e repete-se (leia-se Rosas) o discurso eterno contra a rendição "à terceira via, ao blairismo e ao neoliberalismo", recusando qualquer evolução para as áreas dos novos movimentos aparecidos nas últimas décadas, como os corporizados pelos Verdes alemães, também eles filhos da década de 80 do século passado.

Não deixa por isso de ser curioso que, invertendo uma antiga hierarquia, se sintam dificuldades à esquerda em lidar com as ideias e as ideologias ao mesmo tempo que se vê ser reabilitado, à direita, o papel das ideias. Outras ideias, naturalmente. É por isso que até se cita (leia-se o bloguer Rui Albuquerque) Ludwig von Mises, expoente da escola austríaca e do pensamento económico liberal: "As ideias têm existência real e são factores genuínos na determinação do curso dos acontecimentos" pois "o que o homem escolhe é determinado pelas ideias que adopta".

Talvez seja, pois, altura de reconhecer que a crise de identidade das esquerdas é, antes do mais, uma crise de ideias. Jornalista

É altura de reconhecer que a crise de identidade dos socialistas é, antes do mais, uma crise de ideias

O PS já perdera muitas eleições antes de sair derrotado do 5 de Junho. O PS também já passou por vários processos de escolha de uma nova liderança. Contudo, talvez nunca o PS tenha estado tão mergulhado numa crise de identidade como hoje. Com uma particularidade: a crise do PS tem uma irmã gémea na crise do Bloco de Esquerda, mas esta é ainda mais virulenta.

A crise de identidade dos socialistas tem uma primeira e significativa manifestação na incapacidade dos dois candidatos à liderança de enfrentarem os erros do passado recente. Há uma certa esquizofrenia na forma como Seguro e Assis procuram distinguir-se um do outro sem se quererem distinguir radicalmente da herança de Sócrates. Se já não era fácil o caminho de uma nova liderança obrigada a tentar ser oposição numa altura em que o essencial do programa do Governo também foi assinado pelo PS - o compromisso com a troika -, tudo se torna ainda mais difícil quando não se analisa a experiência socrática e o que ela representou de perversão da tradição socialista. Sem expurgar os fantasmas da "missa negra" do Congresso de Matosinhos (em que Assis participou com aparente entusiasmo e onde Seguro não mostrou coragem suficiente), o PS pode mudar de liderança mas não mudará de alma - e essa alma está hoje vendida a um aparelho de carreiristas habituado às mordomias e prebendas da vida à mesa do orçamento.

Mas deixemos por agora aquilo que deveria ser o trabalho de luto dos que querem dar ao PS outro rumo e centremo-nos no que une esta crise de identidade à balbúrdia que se instalou no Bloco de Esquerda. Em conjunto, entre 2009 e 2011, estes dois partidos que partilham mais os respectivos eleitorados do que gostam de reconhecer, perderam 780 mil votos, quase um terço do total. Tratou-se de um tsunami - para utilizar a expressão do dirigente bloquista Fernando Rosas - que deixou ruínas e escombros por todo o lado.

A candidatura de Manuel Alegre correu tão mal que ninguém quis ver nela senão a despedida do político-poeta, quando era muito mais do que isso, pois representou uma forte, e talvez derradeira, tentativa de reerguer uma "esquerda grande" (outra expressão de Rosas) comprometida com um projecto de "transformação da sociedade". Esse projecto de transformação - para alguns, de revolução - tem raízes na tradição de todas as esquerdas que nunca desistiram de "superar o capitalismo", mesmo quando só dizem que aquilo que rejeitam é a "sociedade de mercado".

Não cabe aqui recapitular a longa história dos diferentes movimentos que foram corporizando o caudal do que se convencionou designar por esquerda, mas convém recordar o essencial: para todas as esquerdas há um antes e um depois das grandes viragens ocorridas na década de 80 do século passado. Habitualmente apenas se recorda o colapso do "socialismo real" associado à queda do Muro de Berlim e ao fim da URSS, mas esse período foi também o da emergência, a ocidente, de Reagan e de Thatcher, e, a oriente, de Deng Xiaoping. A retórica dominante - as esquerdas ainda vencem na guerra da linguagem - chama a esse momento de viragem a "emergência do consenso neoliberal", mas o que ocorreu foi o fim dos "anos de ouro" do capitalismo, esses anos do pós-guerra em que um crescimento económico irrepetível permitiu criar os modernos Estados de bem-estar. Foi nessa altura que o dinheiro fácil acabou ou, como notou a sra. Thatcher referindo-se aos políticos socialistas, "they have run out of other people"s money".

Os sonhos redentores de uma sociedade permanentemente afluente terminaram por essa altura, processo que se encontra bem retratado no clássico Cem Anos de Socialismo - A Esquerda Europeia Ocidental no Século XX, de Donald Sassoon. É aí, por exemplo, que se recorda o desabafo de James Callaghan, o último primeiro-ministro trabalhista antes da era Thatcher, datado ainda de 1976: "O mundo confortável em que nos disseram que viveríamos para sempre, onde o pleno emprego estaria assegurado pelas decisões do ministro das Finanças, esse mundo desapareceu. E por que é que existe desemprego? Muito simplesmente porque pagamos salários mais elevados do que o valor daquilo que produzimos".

De Estocolmo a Roma, de Paris a Washington, de Londres a Pequim, vários factores contribuíram para o fim da ilusão keynesiana que parecia poder alimentar um Estado "ama-seca" cada vez mais universal e omnipresente. A globalização redistribuiu a riqueza a favor dos países emergentes. A demografia colocou uma pressão insuportável sobre os sistemas de protecção social. As vagas migratórias abalaram os consensos em que se alicerçavam os mecanismos de transferências de rendimentos. A realidade impôs-se assim com tal força que, para governar, a esquerda foi tendo de abandonar a sua retórica e o seu ideário tradicional. Em 2004, durante a sua candidatura falhada à liderança do PS, Alegre lamentou "a incapacidade revelada pelas recentes experiências de Governos socialistas na Europa para inverterem a lógica neoliberal dominante e criarem soluções políticas alternativas". Nada de substancial mudou desde então e uma obra recém-editada - O que Resta da Esquerda, Mitos e Realidades das Esquerdas no Governo, escrita pelo politólogo Franco Cazzola - reconhece mesmo que nos últimos anos "a esquerda renunciou a decidir como esquerda". E cita-se o historiador Giuseppe Berta: "Existe uma identidade social-democrata, um perfil político especificamente inscrito na social-democracia europeia? No passado, certamente que sim; hoje não".

O melhor do Público no email Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Subscrever ×

O debate em curso no PS não dá respostas novas a estes dilemas, muito menos propõe, por exemplo, substituir a retórica socialista por uma retórica inovadora, progressista e liberal, uma das possíveis saídas para as esquerdas que querem ser Governo. No Bloco fica-se muito mais atrás e repete-se (leia-se Rosas) o discurso eterno contra a rendição "à terceira via, ao blairismo e ao neoliberalismo", recusando qualquer evolução para as áreas dos novos movimentos aparecidos nas últimas décadas, como os corporizados pelos Verdes alemães, também eles filhos da década de 80 do século passado.

Não deixa por isso de ser curioso que, invertendo uma antiga hierarquia, se sintam dificuldades à esquerda em lidar com as ideias e as ideologias ao mesmo tempo que se vê ser reabilitado, à direita, o papel das ideias. Outras ideias, naturalmente. É por isso que até se cita (leia-se o bloguer Rui Albuquerque) Ludwig von Mises, expoente da escola austríaca e do pensamento económico liberal: "As ideias têm existência real e são factores genuínos na determinação do curso dos acontecimentos" pois "o que o homem escolhe é determinado pelas ideias que adopta".

Talvez seja, pois, altura de reconhecer que a crise de identidade das esquerdas é, antes do mais, uma crise de ideias. Jornalista

marcar artigo