Ladrões de Bicicletas: A precariedade é má, mas é boa

21-08-2019
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O presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), decidiu promulgar por três más razões o pacote de medidas supostamente de combate à precariedade no emprego. Essas três más razões são, contudo, aquelas que melhor retratam a sua superficialidade.

O que MRS afirma na sua página, lembra muito aquela famosa cena dos Gato Fedorento:

O seu pensamento pode ser resumido desta forma, mais adaptada a estes momentos:

A precariedade é má? É! Mas ela está prevista na lei? Está! Mas é má? É! Mas o pacote é bom porque atenua a precariedade? Sim! Mas a precariedade é boa porque permite às empresas resistir à recessão? É! Mas isso quer dizer que é a precariedade que torna as empresas mais fortes? Sim! Mas a precariedade é má? É! Mas se ajuda as empresas é boa então? Sim! Mas é má? É! Isso não é um bocadinho inconsistente? Pshiiu!

Primeira razão: diz MRS que teve "em consideração a amplitude do acordo tripartido de concertação social, que antecedeu e está subjacente ao presente diploma, tendo reunido seis membros em sete".

Formalmente, é bem verdade, mas isso não quer dizer muito porque cinco deles são entidades patronais e apenas uma é uma central sindical. Na comissão permanente da concertação social (CPCS) tanto patronato como trabalhadores têm o mesmo número de votos, o que já em si é bastante discutível, mas aceite-se em nome do diálogo. O problema é que nunca se aferiu a representatividade nem das confederações patronais nem das centrais sindicais. Dessa forma, a CPCS - enxertada à força no Conselho Económico e Social - acaba por resultar num mecanismo enviesado que torpedeia a legítima autoridade legislativa do Parlamento, resultando num regime fortemente governamentalizado. E no caso de um governo sem visão de futuro, essa governamentalização resulta em proveito de quem mais influencia o governo ou de quem mais se aproxima das necessidades de curto prazo do Governo. No curto prazo deste governo, pesa muito não hostilizar a Europa e, num menor grau, não colocar em causa as alterações ao Código do Trabalho, aprovadas em 2006 pelo actual ministro do Trabalho Vieira da Silva e que tanto foram então elogiadas pela CIP.

Essa governamentalização ficou patente na dificuldade do Parlamento em discutir com a sua própria cabeça. Os deputados à direita - e os socialistas por arrasto - aceitaram o seu papel de acatar tudo ou quase tudo, apenas porque vinha da concertação social e que o patronato tinha aprovado em CPCS. De tal forma estava aceite o rolo compressor que, em comissão, conversavam para o deputado ao lado enquanto falava a oposição à esquerda! E quando fustigada, a deputada socialista Wanda Guimarães esqueceu o seu acordo à esquerda e reagiu com uma violência que a própria direita não enjeitaria.

E MRS - claro está - quis assumir, ele também, esse papel.

Segunda razão. MRS alega que o pacote resulta de um "equilíbrio entre posições patronais e laborais".

Esta ideia não é nova: já quando o acordo foi fechado na CPCS, MRS considerou-o "sensato, equilibrado e oportuno". E porquê? “Esse equilíbrio pode não corresponder à visão de uns e de outros – dos que defenderiam a intangibilidade do regime do tempo da troika e dos que desejariam rutura mais profunda, nomeadamente na caducidade da contratação coletiva. Mas foi e é o possível e adequado neste tempo".

Ou seja, para MRS há um equilíbrio porque o pacote não mexeu na estrutura da legislação herdada da troika (e do governo PSD/CDS) que, na cabeça de MRS, trouxe mais flexibilidade (precariedade), com o fim de aumentar a competitividade nacional (o que não fez), embora o pacote tenha medidas mais rígidas (como forma de combater a precariedade). Parece que MRS está a dizer que, do ponto de vista ético e de dignidade do Trabalho, dever-se-ia ter ido mais longe, mas infelizmente é "o possível e adequado neste tempo".

Na verdade, esse equilíbrio não se fixou entre manter a legislação da troika e atenuá-la, mas entre medidas que reduzem a precariedade e medidas que a aumentam. E, mais grave, as próprias medidas que visam combater a precariedade contrariam-na em pouco.

Por exemplo: no primeiro caso, estará a redução do numero de anos (!) em que o trabalhador pode ter contrato a prazo (de 3 para 2 anos!) e a tempo incerto (de 6 para 4 anos!), embora se desconheça como isso se compatibiliza com o carácter excepcional que a lei impõe ao seu uso; o fim da possibilidade do uso de contratos a prazo para os jovens e desempregados, pequena redução na duração nos contratos intermitentes, limite de 6 (!) contratos temporários por trabalhador (!). No segundo caso, está o alargamento da duração do período de experimental para 6 meses (!), aumento da duração dos contratos de muita curta duração e o seu alargamento a todas as actividades, a continuação dos bancos de horas grupais, entre outras.

Terceiro argumento de MRS. Esta é a mais estapafúrdia do ponto de vista teórico e mesmo da consistência das outras ideias atrás expostas. MRS diz que o presente pacote tem em conta "os sinais que se esboçam de desaceleração económica internacional e sua virtual repercussão no emprego em Portugal".

Ou seja, estando uma recessão à vista e podendo haver destruição de emprego, o patronato deve estar dotado de mais instrumentos para gerir melhor o emprego. Ou seja, flexibilizando-o (precarizando-o) mais. Mas se assim é, como se pode defender que este pacote é um equilíbrio entre a redução da precariedade e a legislação que a estimulou? Ou será que, num salto, MRS defende que o pacote, ao combater a precariedade, cria melhores condições de estabilidade do emprego que, assim, melhor defendem os trabalhadores num quadro de pressão para o desemprego? Não se crê que MRS defenda essa ideia, porque essa ideia contraria a tal noção de equilíbrio com "o possível e adequado neste tempo".

No fundo, MRS promulgou o pacote porque as confederações patronais o defendem. E defendem-no porque consagra e legitima a precariedade vigente. E ele acha que isso é melhor para o país. Nada mais.


O presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), decidiu promulgar por três más razões o pacote de medidas supostamente de combate à precariedade no emprego. Essas três más razões são, contudo, aquelas que melhor retratam a sua superficialidade.

O que MRS afirma na sua página, lembra muito aquela famosa cena dos Gato Fedorento:

O seu pensamento pode ser resumido desta forma, mais adaptada a estes momentos:

A precariedade é má? É! Mas ela está prevista na lei? Está! Mas é má? É! Mas o pacote é bom porque atenua a precariedade? Sim! Mas a precariedade é boa porque permite às empresas resistir à recessão? É! Mas isso quer dizer que é a precariedade que torna as empresas mais fortes? Sim! Mas a precariedade é má? É! Mas se ajuda as empresas é boa então? Sim! Mas é má? É! Isso não é um bocadinho inconsistente? Pshiiu!

Primeira razão: diz MRS que teve "em consideração a amplitude do acordo tripartido de concertação social, que antecedeu e está subjacente ao presente diploma, tendo reunido seis membros em sete".

Formalmente, é bem verdade, mas isso não quer dizer muito porque cinco deles são entidades patronais e apenas uma é uma central sindical. Na comissão permanente da concertação social (CPCS) tanto patronato como trabalhadores têm o mesmo número de votos, o que já em si é bastante discutível, mas aceite-se em nome do diálogo. O problema é que nunca se aferiu a representatividade nem das confederações patronais nem das centrais sindicais. Dessa forma, a CPCS - enxertada à força no Conselho Económico e Social - acaba por resultar num mecanismo enviesado que torpedeia a legítima autoridade legislativa do Parlamento, resultando num regime fortemente governamentalizado. E no caso de um governo sem visão de futuro, essa governamentalização resulta em proveito de quem mais influencia o governo ou de quem mais se aproxima das necessidades de curto prazo do Governo. No curto prazo deste governo, pesa muito não hostilizar a Europa e, num menor grau, não colocar em causa as alterações ao Código do Trabalho, aprovadas em 2006 pelo actual ministro do Trabalho Vieira da Silva e que tanto foram então elogiadas pela CIP.

Essa governamentalização ficou patente na dificuldade do Parlamento em discutir com a sua própria cabeça. Os deputados à direita - e os socialistas por arrasto - aceitaram o seu papel de acatar tudo ou quase tudo, apenas porque vinha da concertação social e que o patronato tinha aprovado em CPCS. De tal forma estava aceite o rolo compressor que, em comissão, conversavam para o deputado ao lado enquanto falava a oposição à esquerda! E quando fustigada, a deputada socialista Wanda Guimarães esqueceu o seu acordo à esquerda e reagiu com uma violência que a própria direita não enjeitaria.

E MRS - claro está - quis assumir, ele também, esse papel.

Segunda razão. MRS alega que o pacote resulta de um "equilíbrio entre posições patronais e laborais".

Esta ideia não é nova: já quando o acordo foi fechado na CPCS, MRS considerou-o "sensato, equilibrado e oportuno". E porquê? “Esse equilíbrio pode não corresponder à visão de uns e de outros – dos que defenderiam a intangibilidade do regime do tempo da troika e dos que desejariam rutura mais profunda, nomeadamente na caducidade da contratação coletiva. Mas foi e é o possível e adequado neste tempo".

Ou seja, para MRS há um equilíbrio porque o pacote não mexeu na estrutura da legislação herdada da troika (e do governo PSD/CDS) que, na cabeça de MRS, trouxe mais flexibilidade (precariedade), com o fim de aumentar a competitividade nacional (o que não fez), embora o pacote tenha medidas mais rígidas (como forma de combater a precariedade). Parece que MRS está a dizer que, do ponto de vista ético e de dignidade do Trabalho, dever-se-ia ter ido mais longe, mas infelizmente é "o possível e adequado neste tempo".

Na verdade, esse equilíbrio não se fixou entre manter a legislação da troika e atenuá-la, mas entre medidas que reduzem a precariedade e medidas que a aumentam. E, mais grave, as próprias medidas que visam combater a precariedade contrariam-na em pouco.

Por exemplo: no primeiro caso, estará a redução do numero de anos (!) em que o trabalhador pode ter contrato a prazo (de 3 para 2 anos!) e a tempo incerto (de 6 para 4 anos!), embora se desconheça como isso se compatibiliza com o carácter excepcional que a lei impõe ao seu uso; o fim da possibilidade do uso de contratos a prazo para os jovens e desempregados, pequena redução na duração nos contratos intermitentes, limite de 6 (!) contratos temporários por trabalhador (!). No segundo caso, está o alargamento da duração do período de experimental para 6 meses (!), aumento da duração dos contratos de muita curta duração e o seu alargamento a todas as actividades, a continuação dos bancos de horas grupais, entre outras.

Terceiro argumento de MRS. Esta é a mais estapafúrdia do ponto de vista teórico e mesmo da consistência das outras ideias atrás expostas. MRS diz que o presente pacote tem em conta "os sinais que se esboçam de desaceleração económica internacional e sua virtual repercussão no emprego em Portugal".

Ou seja, estando uma recessão à vista e podendo haver destruição de emprego, o patronato deve estar dotado de mais instrumentos para gerir melhor o emprego. Ou seja, flexibilizando-o (precarizando-o) mais. Mas se assim é, como se pode defender que este pacote é um equilíbrio entre a redução da precariedade e a legislação que a estimulou? Ou será que, num salto, MRS defende que o pacote, ao combater a precariedade, cria melhores condições de estabilidade do emprego que, assim, melhor defendem os trabalhadores num quadro de pressão para o desemprego? Não se crê que MRS defenda essa ideia, porque essa ideia contraria a tal noção de equilíbrio com "o possível e adequado neste tempo".

No fundo, MRS promulgou o pacote porque as confederações patronais o defendem. E defendem-no porque consagra e legitima a precariedade vigente. E ele acha que isso é melhor para o país. Nada mais.

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