Lendo e relendo: Redefinição dos crimes contra a liberdade sexual e sua moldura penal

01-09-2019
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A Assembleia
da República procedeu hoje, dia 10 de janeiro, ao debate na generalidade dos
projetos de lei do PAN e do BE, Projeto
de Lei n.º 1047/XIII/4.ª e Projeto de
Lei n.º 1058/XIII/4.ª, respetivamente, que introduz a 47.ª alteração do
Código Penal (CP),
alterando a definição dos crimes de coação sexual e de violação, no âmbito dos
crimes contra a liberdade sexual, bem como a sua natureza e a moldura penal,
adaptando a legislação portuguesa ao conteúdo da Convenção de Istambul, que
Portugal ratificou.

Ambos os projetos querem tornar claro que sexo sem consentimento é crime e
transformá-lo em crime público; e o PAN quer acabar com a suspensão de pena
para a violação.

A redefinição dos crimes contra a liberdade sexual implica acabar com os dois tipos
de violação hoje existentes – violação
‘com violência’; e ‘sem violência’ – e aumentar a pena para este crime
e, no caso do PAN, impossibilitar
a aplicação da suspensão de pena, ao colocar o limite mínimo nos 6 anos (só podem ser suspensas penas até 5), como
escreve Fernanda Câncio no DN.

Por outro lado, integra-se o crime de abuso sexual de pessoa inconsciente
ou incapaz de resistência nos crimes de coação e de violação (consoante o tipo de ato sexual em causa) e de pessoa internada, acabando com aqueles
tipos penais, pelo que os projetos em referência advogam a revogação dos
artigos 165.º e 166.º do CP.

Depois, os crimes de coação e de violação são tornados públicos (ou seja, não dependentes de queixa) e acrescentam-se agravantes para eles.

Porém, estes projetos dificilmente teriam condições para serem viabilizados
em votação na generalidade, até porque o PS terá recusado mexer nas penas,
apesar de, em outubro passado, o Governo ter, de acordo com uma notícia
do Expresso, anunciado querer aumentá-las.

Enquanto o deputado do PAN admitia que o seu
projeto “não tem condições para passar tal como está”, Sandra Cunha, do BE, dizia não
ter ainda percebido o que podia esperar dos outros grupos parlamentares. No
entanto, esperavam ambos que os seus projetos baixassem à comissão da especialidade (Comissão
de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, a 1.ª) sem votação, o que realmente
aconteceu por proposta do PS, encontrando-se aí terreno comum para alterar o CP
de forma a melhorar a definição destes crimes e, como sustentam, “transpor de forma correta para o ordenamento
jurídico português a Convenção de Istambul”, em vigor desde 2014, que impõe aos
Estados signatários, Portugal incluído, “a definição dos crimes sexuais com
base na não existência do consentimento”.

***

Vejamos o que estabelece o CP na atual redação relativamente à coação e à
violação:

Artigo 163.º (coação sexual)

1 – Quem, por meio de violência,
ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto
na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a
praticar, consigo ou com outrem, ato sexual de relevo é punido com pena de
prisão de um a oito anos. 

2 – Quem, por meio não compreendido
no número anterior, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar ato sexual
de relevo, consigo ou com outrem, é punido com pena de prisão até 5 anos.

Artigo 164.º (violação)

1 – Quem, por meio de violência,
ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto
na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa: 

a) A sofrer ou a praticar, consigo
ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou 

b) A sofrer introdução vaginal ou
anal de partes do corpo ou objetos;

é punido com pena de prisão de três
a dez anos.

2 – Quem, por meio não compreendido
no número anterior, constranger outra pessoa: 

a) A sofrer ou a praticar, consigo
ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou 

b) A sofrer introdução vaginal ou
anal de partes do corpo ou objetos; 

é punido com pena de prisão de 1 a 6
anos.

E o que defendem os preditos projetos:

O Projeto
de Lei n.º 1047/XIII/4.ª, do PAN, estabelece:

“Artigo 163.º […] 1 –
Quem, sem o consentimento da outra pessoa, praticar com ela ou levá-la a praticar
com outrem, ato sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos. 2 – Se os factos
compreendidos no número anterior forem praticados por quem, aproveitando-se das
funções ou do lugar que, a qualquer título, exerce ou detém em: a) estabelecimento
onde se executem reações criminais privativas da liberdade; b) hospital,
hospício, asilo, clínica de convalescença ou de saúde, ou outro estabelecimento
destinado a assistência ou tratamento; ou c) estabelecimento de educação ou
correção; o agente é punido com pena de prisão de três a nove anos. 3 – Se
os factos compreendidos nos números anteriores: a) tiverem sido precedidos ou
acompanhados de violência de considerável gravidade; ou b) tiverem sido
praticados em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou
perversidade; ou c) tiverem resultado em danos físicos ou psíquicos graves para
a vítima; o agente é punido com pena de prisão de cinco a dez anos.

Artigo 164.º […] 1 –
Quem sem o consentimento de outra pessoa: a) praticar com ela ou levá-la a
praticar com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou b) proceder à
introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de
prisão de seis a doze anos. 2 – Se
os factos compreendidos no número anterior forem praticados por quem,
aproveitando-se das funções ou do lugar que, a qualquer título, exerce ou detém
em: a) estabelecimento onde se executem reações criminais privativas da
liberdade; b) hospital, hospício, asilo, clínica de convalescença ou de saúde,
ou outro estabelecimento destinado a assistência ou tratamento; ou c) estabelecimento
de educação ou correção; o agente é punido com pena de prisão de seis a catorze anos 3 – Se os factos
compreendidos nos números anteriores: a) tiverem sido precedidos ou
acompanhados de violência de considerável gravidade; ou b) tiverem sido
praticados em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou
perversidade; ou c) tiverem resultado em danos físicos ou psíquicos graves para
a vítima; ou d) tiverem resultado no suicídio ou morte da vítima; o agente é
punido com pena de prisão de seis a
dezasseis anos.

O Projeto
de Lei n.º 1058/XIII/4.ª, do BE, estabelece:

«Artigo 163.º (…) 1 –
Quem constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem,
ato sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos. 2 – A tentativa é punível.

 Artigo 164.º (…) 1 – Quem constranger outra
pessoa, nomeadamente: a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula,
coito anal ou coito oral; ou b) A sofrer introdução vaginal, anal ou oral de
partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de cinco a dez anos. 2 – A tentativa é punível.

***

Ambos os projetos mantêm a moldura penal prevista
no n.º 1 do art.º 163.º. O projeto do BE, em relação ao n.º 2, aponta a punibilidade
da tentativa de coação, ao passo que o PAN, em vez do n.º 2, prevê dois números
com penas mais gravosas que a da redação atual do CP. Quanto ao art.º 164.º, o
BE prevê uma pena mais gravosa, no caso do n.º 1, e a punibilidade da tentativa
no n.º 2, enquanto o PAN prevê penas muito mais gravosas, embora diversificadas,
no teor de todo o artigo.

Os dois projetos têm o objetivo comum de clarificar
a lei, mas só no caso
do PAN a expressão “sem o consentimento” é usada na tipificação
dos crimes de coação e de violação (“Quem, sem o consentimento da outra pessoa ...”), pois  o BE mantém o termo “constranger” usada nas
atuais definições dos crimes de coação e de violação, mas com uma gradação.
Assim, no atual art.º 164.º, que tipifica o crime de violação, lê-se, no
respetivo n.º 1: “Quem, por meio de
violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado
inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa…)”;
e, no n.º 2: “Quem, por meio não
compreendido no número anterior” (ou seja, sem
usar violência, ameaça grave, ou não a tendo posto inconsciente ou na
impossibilidade de resistir), constranger outra pessoa aos mesmos atos, sendo punido com pena de 1 a 6
anos. Os dois números definem assim dois tipos de violação: uma mais grave, que inclui violência – aparentemente
definida como violência física – e outra menos grave.

O crime de coação sexual, tipificado no atual art.º 163.º, que se distingue
da violação pela inexistência de penetração, falando em “ato sexual de relevo”,
usa o mesmo verbo “constranger” e o mesmo tipo de condições e pena de 1 a 8
anos (no caso do n.º 1), e pena até 5 anos (no caso do n.º 2).

O BE só mantém o verbo constranger e, no caso do n.º 1 do art.º 163.º, a
pena.

A redação destes projetos resulta dos trabalhos, efetuados em 2015, de
transposição da Convenção de Istambul. Na altura, o BE queria que a expressão “não
consentimento” figurasse explicitamente no art.º 164.º, indicando, em
sucessivas alíneas, várias formas de agravação, incluindo as referidas no atual
n.º 1. Agora, deixou cair a expressão e mantém limite máximo das penas, mas no
caso da violação o mínimo fica nos 5 anos (mais dois anos
que atualmente).

O que antes constituía o tipo do crime era o uso de violência, mas agora agrava a pena num terço dos limites máximo
e mínimo, por força da alteração do art.º 177.º, que significa aumento das
penas e, nas condenações por violação com violência física, será impossível
suspender a pena.

Já o PAN sobe e muito a pena para violação: o limite mínimo é de 6 anos e o
máximo passa para 12; e, em determinadas circunstâncias, por exemplo quando se
verifique “violência de especial gravidade”, para 16. Um limite máximo mais elevado que o existente
neste momento para este crime, mesmo tendo em conta as agravantes tipificadas
no art.º 177.º: este não ultrapassa 15 anos, mesmo quando da violação resulte
o suicídio ou morte da vítima – o que contrasta com o limite máximo da pena
para um roubo do qual resulte a morte do roubado, e que é de 16 anos de prisão
(sendo o limite mínimo de 8, ou seja, ainda assim
mais elevado que na proposta do PAN).

Uma outra novidade no projeto do PAN é a de acrescentar nas agravantes o facto de a vítima estar inconsciente, o que
aumenta a pena em um terço no limite mínimo e máximo. Ou seja, o que antes era
a tipificação do crime 165.º (abuso sexual de pessoa inconsciente ou incapaz de resistência)
passa a ser agravante nos crimes de coação e violação. Neste último, a pena passaria a
ser de 9 a 16 anos. O que mais uma vez compara com as penas do crime de roubo
quando se verificam circunstâncias agravantes como o bem roubado estar num
local fechado à chave ou a vítima se encontrar em situação de especial
debilidade (“desastre”, “acidente” ou “calamidade pública), em que  o limite máximo é de 15 anos.

Quanto à passagem do crime de violação para crime público, comum aos dois
projetos, o BE diz querer “retirar
o ónus que a lei e a sociedade persistentemente impõem às vítimas”,
explicitando:

“É, pois, de inteira justiça que se proceda também a uma alteração da
natureza destes crimes, passando de semipúblicos para crimes públicos. Num
juízo análogo ao que se levou a cabo para a violência doméstica, temos de
reforçar a ideia de que a violação e a coação sexual são assuntos que não podem
ficar por investigar.”.

Na mesma perspetiva diz o PAN:

“A importância atribuída à natureza do crime
é manifestada, a título de exemplo, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
de 2 de maio de 2012, o qual estabelece que ‘o legislador quando confere
natureza pública a determinado tipo de crimes, nomeadamente quando são
qualificados, tem precisamente em vista acautelar interesses públicos que se
prendem nomeadamente com a segurança da sociedade e com a paz pública
(interesses esses que não podem depender da vontade de particulares
apresentarem ou não queixa)’. O
facto de o nosso ordenamento jurídico atribuir natureza semipública a crimes
com esta dimensão de gravidade espelha bem a desconsideração com requintes de
anacronismo legislativo face à realidade.”.

***

A necessidade de alterar a tipificação dos crimes sexuais decorre há algum
tempo em Portugal e noutros países, tendo alterado vários já os respetivos códigos
penais, por via da Convenção de Istambul, “destinada a combater a violência contra mulheres e a
violência doméstica através da prevenção da violência, proteção das vítimas e
eliminação da impunidade dos agressores”, sendo que, por força do seu art.º
36.º, “para efeitos do elemento objectivo
dos crimes sexuais, mormente do crime de violação, o que releva não é a
existência ou não de violência, mas sim a existência ou não de consentimento
por parte do sujeito passivo/vítima”.

Por outro lado, a
nossa jurisprudência evidencia uma conjuntura em que se descortina uma
constante diminuição da importância atribuída aos crimes de âmbito sexual. E há
disparates a justificar a atribuição de penas suaves (ou
a suspensão de pena).
Assim, o PAN refere:

- Um violador
de menor de 14 anos foi absolvido por ela não ter gritado durante as relações sexuais
e por não ter agido “de forma séria e resoluta” com vista a “evitar os avanços
do vizinho” (Tribunal do círculo de Santa Maria da Feira, 1997).

- Uma
rapariga foi violada, mas anotou a matrícula do caro do violador, o que mostra
não ter ficado traumatizada (Tribunal da Relação do
Porto, 2007).

- Um psiquiatra
foi absolvido do crime de violação sobre grávida de 8 meses, pois a resistência
foi expressa apenas por palavras (Tribunal da Relação do
Porto, 2011).

Porém, o debate intensificou-se em setembro, depois de tornado público
o acórdão dito da “sedução mútua”. O Tribunal da Relação do Porto,
aduzindo o “clima de sedução mútua” e o facto de “não ter havido violência”,
suspendeu a pena de 4 anos de prisão aplicada a dois homens que violaram uma
jovem, inconsciente, na casa de banho duma discoteca de Vila Nova de Gaia.

A esse propósito, Carla Oliveira, da ASJP (Associação
Sindical dos Juízes Portugueses), afirmou na SIC-Notícias que “não basta não haver consentimento para
haver violação” e que, para
existir violação no sentido jurídico, é preciso que o arguido tenha posto a
vítima na impossibilidade de resistir – por exemplo, pôr droga numa bebida ou
usar violência. Isto em termos gerais.

É o entendimento que também o juiz desembargador e anterior presidente da ASJP,
José Mouraz Lopes, partilha, ao considerar: 

“O legislador não assumiu, ainda e apenas, no não consentimento da
vítima a fronteira entre o lícito e o ilícito”.

E o insigne penalista Jorge de Figueiredo Dias, cuja visão informou a
geração mais idosa dos juristas – e juízes – portugueses, escrevia ainda em
2012, já após a Convenção de Istambul:

“Atua sem culpa o agente convencido de que a objeção da vítima não é
séria, quando ela se exprime apenas por palavras, mas não por qualquer
resistência corporal”.

Parece, pois, haver por parte de parte
dos juízes e mesmo de penalistas renitência em assumir a Convenção de Istambul apesar
de ela ter “aplicação direta”, como tem frisado a presidente da Associação das
Mulheres Juristas, a juíza desembargadora Teresa Féria.

Haverá, como refere o BE, a “desculpabilização e naturalização destes
crimes, bem como a responsabilização e objetificação das mulheres”, que aninham
e justificam a cultura de tolerância e desvalorização dos crimes sexuais sobre
as mulheres que persiste na nossa sociedade.

E o PAN vai nesta linha, ao dar exemplos de decisões judiciais, como as
apontadas, que vê como desculpabilizadoras, e ao pugnar pela pertinência de
fomentar a “crescente consciencialização social (onde se
incluem magistrados, políticos e penalistas) da gravidade deste tipo de crimes”.

Nestes termos, a clarificação da lei servirá para que a sociedade, os académicos,
os políticos e os magistrados “atualizem” a sua visão dos crimes sexuais e não
possam mais continuar a defini-los, mesmo contra a letra da atual lei, a partir
do uso de violência física e da alegada maior ou menor “resistência” da vítima
e, sobretudo, a limitar quer o conceito de violação quer o de resistência. Tem
de bastar que o não consentimento tenha sido expresso de forma unívoca e não
sujeito a leituras dramaticamente irrisórias.

2019.01.10 –
Louro de Carvalho

A Assembleia
da República procedeu hoje, dia 10 de janeiro, ao debate na generalidade dos
projetos de lei do PAN e do BE, Projeto
de Lei n.º 1047/XIII/4.ª e Projeto de
Lei n.º 1058/XIII/4.ª, respetivamente, que introduz a 47.ª alteração do
Código Penal (CP),
alterando a definição dos crimes de coação sexual e de violação, no âmbito dos
crimes contra a liberdade sexual, bem como a sua natureza e a moldura penal,
adaptando a legislação portuguesa ao conteúdo da Convenção de Istambul, que
Portugal ratificou.

Ambos os projetos querem tornar claro que sexo sem consentimento é crime e
transformá-lo em crime público; e o PAN quer acabar com a suspensão de pena
para a violação.

A redefinição dos crimes contra a liberdade sexual implica acabar com os dois tipos
de violação hoje existentes – violação
‘com violência’; e ‘sem violência’ – e aumentar a pena para este crime
e, no caso do PAN, impossibilitar
a aplicação da suspensão de pena, ao colocar o limite mínimo nos 6 anos (só podem ser suspensas penas até 5), como
escreve Fernanda Câncio no DN.

Por outro lado, integra-se o crime de abuso sexual de pessoa inconsciente
ou incapaz de resistência nos crimes de coação e de violação (consoante o tipo de ato sexual em causa) e de pessoa internada, acabando com aqueles
tipos penais, pelo que os projetos em referência advogam a revogação dos
artigos 165.º e 166.º do CP.

Depois, os crimes de coação e de violação são tornados públicos (ou seja, não dependentes de queixa) e acrescentam-se agravantes para eles.

Porém, estes projetos dificilmente teriam condições para serem viabilizados
em votação na generalidade, até porque o PS terá recusado mexer nas penas,
apesar de, em outubro passado, o Governo ter, de acordo com uma notícia
do Expresso, anunciado querer aumentá-las.

Enquanto o deputado do PAN admitia que o seu
projeto “não tem condições para passar tal como está”, Sandra Cunha, do BE, dizia não
ter ainda percebido o que podia esperar dos outros grupos parlamentares. No
entanto, esperavam ambos que os seus projetos baixassem à comissão da especialidade (Comissão
de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, a 1.ª) sem votação, o que realmente
aconteceu por proposta do PS, encontrando-se aí terreno comum para alterar o CP
de forma a melhorar a definição destes crimes e, como sustentam, “transpor de forma correta para o ordenamento
jurídico português a Convenção de Istambul”, em vigor desde 2014, que impõe aos
Estados signatários, Portugal incluído, “a definição dos crimes sexuais com
base na não existência do consentimento”.

***

Vejamos o que estabelece o CP na atual redação relativamente à coação e à
violação:

Artigo 163.º (coação sexual)

1 – Quem, por meio de violência,
ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto
na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a
praticar, consigo ou com outrem, ato sexual de relevo é punido com pena de
prisão de um a oito anos. 

2 – Quem, por meio não compreendido
no número anterior, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar ato sexual
de relevo, consigo ou com outrem, é punido com pena de prisão até 5 anos.

Artigo 164.º (violação)

1 – Quem, por meio de violência,
ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto
na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa: 

a) A sofrer ou a praticar, consigo
ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou 

b) A sofrer introdução vaginal ou
anal de partes do corpo ou objetos;

é punido com pena de prisão de três
a dez anos.

2 – Quem, por meio não compreendido
no número anterior, constranger outra pessoa: 

a) A sofrer ou a praticar, consigo
ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou 

b) A sofrer introdução vaginal ou
anal de partes do corpo ou objetos; 

é punido com pena de prisão de 1 a 6
anos.

E o que defendem os preditos projetos:

O Projeto
de Lei n.º 1047/XIII/4.ª, do PAN, estabelece:

“Artigo 163.º […] 1 –
Quem, sem o consentimento da outra pessoa, praticar com ela ou levá-la a praticar
com outrem, ato sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos. 2 – Se os factos
compreendidos no número anterior forem praticados por quem, aproveitando-se das
funções ou do lugar que, a qualquer título, exerce ou detém em: a) estabelecimento
onde se executem reações criminais privativas da liberdade; b) hospital,
hospício, asilo, clínica de convalescença ou de saúde, ou outro estabelecimento
destinado a assistência ou tratamento; ou c) estabelecimento de educação ou
correção; o agente é punido com pena de prisão de três a nove anos. 3 – Se
os factos compreendidos nos números anteriores: a) tiverem sido precedidos ou
acompanhados de violência de considerável gravidade; ou b) tiverem sido
praticados em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou
perversidade; ou c) tiverem resultado em danos físicos ou psíquicos graves para
a vítima; o agente é punido com pena de prisão de cinco a dez anos.

Artigo 164.º […] 1 –
Quem sem o consentimento de outra pessoa: a) praticar com ela ou levá-la a
praticar com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou b) proceder à
introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de
prisão de seis a doze anos. 2 – Se
os factos compreendidos no número anterior forem praticados por quem,
aproveitando-se das funções ou do lugar que, a qualquer título, exerce ou detém
em: a) estabelecimento onde se executem reações criminais privativas da
liberdade; b) hospital, hospício, asilo, clínica de convalescença ou de saúde,
ou outro estabelecimento destinado a assistência ou tratamento; ou c) estabelecimento
de educação ou correção; o agente é punido com pena de prisão de seis a catorze anos 3 – Se os factos
compreendidos nos números anteriores: a) tiverem sido precedidos ou
acompanhados de violência de considerável gravidade; ou b) tiverem sido
praticados em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou
perversidade; ou c) tiverem resultado em danos físicos ou psíquicos graves para
a vítima; ou d) tiverem resultado no suicídio ou morte da vítima; o agente é
punido com pena de prisão de seis a
dezasseis anos.

O Projeto
de Lei n.º 1058/XIII/4.ª, do BE, estabelece:

«Artigo 163.º (…) 1 –
Quem constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem,
ato sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos. 2 – A tentativa é punível.

 Artigo 164.º (…) 1 – Quem constranger outra
pessoa, nomeadamente: a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula,
coito anal ou coito oral; ou b) A sofrer introdução vaginal, anal ou oral de
partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de cinco a dez anos. 2 – A tentativa é punível.

***

Ambos os projetos mantêm a moldura penal prevista
no n.º 1 do art.º 163.º. O projeto do BE, em relação ao n.º 2, aponta a punibilidade
da tentativa de coação, ao passo que o PAN, em vez do n.º 2, prevê dois números
com penas mais gravosas que a da redação atual do CP. Quanto ao art.º 164.º, o
BE prevê uma pena mais gravosa, no caso do n.º 1, e a punibilidade da tentativa
no n.º 2, enquanto o PAN prevê penas muito mais gravosas, embora diversificadas,
no teor de todo o artigo.

Os dois projetos têm o objetivo comum de clarificar
a lei, mas só no caso
do PAN a expressão “sem o consentimento” é usada na tipificação
dos crimes de coação e de violação (“Quem, sem o consentimento da outra pessoa ...”), pois  o BE mantém o termo “constranger” usada nas
atuais definições dos crimes de coação e de violação, mas com uma gradação.
Assim, no atual art.º 164.º, que tipifica o crime de violação, lê-se, no
respetivo n.º 1: “Quem, por meio de
violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado
inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa…)”;
e, no n.º 2: “Quem, por meio não
compreendido no número anterior” (ou seja, sem
usar violência, ameaça grave, ou não a tendo posto inconsciente ou na
impossibilidade de resistir), constranger outra pessoa aos mesmos atos, sendo punido com pena de 1 a 6
anos. Os dois números definem assim dois tipos de violação: uma mais grave, que inclui violência – aparentemente
definida como violência física – e outra menos grave.

O crime de coação sexual, tipificado no atual art.º 163.º, que se distingue
da violação pela inexistência de penetração, falando em “ato sexual de relevo”,
usa o mesmo verbo “constranger” e o mesmo tipo de condições e pena de 1 a 8
anos (no caso do n.º 1), e pena até 5 anos (no caso do n.º 2).

O BE só mantém o verbo constranger e, no caso do n.º 1 do art.º 163.º, a
pena.

A redação destes projetos resulta dos trabalhos, efetuados em 2015, de
transposição da Convenção de Istambul. Na altura, o BE queria que a expressão “não
consentimento” figurasse explicitamente no art.º 164.º, indicando, em
sucessivas alíneas, várias formas de agravação, incluindo as referidas no atual
n.º 1. Agora, deixou cair a expressão e mantém limite máximo das penas, mas no
caso da violação o mínimo fica nos 5 anos (mais dois anos
que atualmente).

O que antes constituía o tipo do crime era o uso de violência, mas agora agrava a pena num terço dos limites máximo
e mínimo, por força da alteração do art.º 177.º, que significa aumento das
penas e, nas condenações por violação com violência física, será impossível
suspender a pena.

Já o PAN sobe e muito a pena para violação: o limite mínimo é de 6 anos e o
máximo passa para 12; e, em determinadas circunstâncias, por exemplo quando se
verifique “violência de especial gravidade”, para 16. Um limite máximo mais elevado que o existente
neste momento para este crime, mesmo tendo em conta as agravantes tipificadas
no art.º 177.º: este não ultrapassa 15 anos, mesmo quando da violação resulte
o suicídio ou morte da vítima – o que contrasta com o limite máximo da pena
para um roubo do qual resulte a morte do roubado, e que é de 16 anos de prisão
(sendo o limite mínimo de 8, ou seja, ainda assim
mais elevado que na proposta do PAN).

Uma outra novidade no projeto do PAN é a de acrescentar nas agravantes o facto de a vítima estar inconsciente, o que
aumenta a pena em um terço no limite mínimo e máximo. Ou seja, o que antes era
a tipificação do crime 165.º (abuso sexual de pessoa inconsciente ou incapaz de resistência)
passa a ser agravante nos crimes de coação e violação. Neste último, a pena passaria a
ser de 9 a 16 anos. O que mais uma vez compara com as penas do crime de roubo
quando se verificam circunstâncias agravantes como o bem roubado estar num
local fechado à chave ou a vítima se encontrar em situação de especial
debilidade (“desastre”, “acidente” ou “calamidade pública), em que  o limite máximo é de 15 anos.

Quanto à passagem do crime de violação para crime público, comum aos dois
projetos, o BE diz querer “retirar
o ónus que a lei e a sociedade persistentemente impõem às vítimas”,
explicitando:

“É, pois, de inteira justiça que se proceda também a uma alteração da
natureza destes crimes, passando de semipúblicos para crimes públicos. Num
juízo análogo ao que se levou a cabo para a violência doméstica, temos de
reforçar a ideia de que a violação e a coação sexual são assuntos que não podem
ficar por investigar.”.

Na mesma perspetiva diz o PAN:

“A importância atribuída à natureza do crime
é manifestada, a título de exemplo, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
de 2 de maio de 2012, o qual estabelece que ‘o legislador quando confere
natureza pública a determinado tipo de crimes, nomeadamente quando são
qualificados, tem precisamente em vista acautelar interesses públicos que se
prendem nomeadamente com a segurança da sociedade e com a paz pública
(interesses esses que não podem depender da vontade de particulares
apresentarem ou não queixa)’. O
facto de o nosso ordenamento jurídico atribuir natureza semipública a crimes
com esta dimensão de gravidade espelha bem a desconsideração com requintes de
anacronismo legislativo face à realidade.”.

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A necessidade de alterar a tipificação dos crimes sexuais decorre há algum
tempo em Portugal e noutros países, tendo alterado vários já os respetivos códigos
penais, por via da Convenção de Istambul, “destinada a combater a violência contra mulheres e a
violência doméstica através da prevenção da violência, proteção das vítimas e
eliminação da impunidade dos agressores”, sendo que, por força do seu art.º
36.º, “para efeitos do elemento objectivo
dos crimes sexuais, mormente do crime de violação, o que releva não é a
existência ou não de violência, mas sim a existência ou não de consentimento
por parte do sujeito passivo/vítima”.

Por outro lado, a
nossa jurisprudência evidencia uma conjuntura em que se descortina uma
constante diminuição da importância atribuída aos crimes de âmbito sexual. E há
disparates a justificar a atribuição de penas suaves (ou
a suspensão de pena).
Assim, o PAN refere:

- Um violador
de menor de 14 anos foi absolvido por ela não ter gritado durante as relações sexuais
e por não ter agido “de forma séria e resoluta” com vista a “evitar os avanços
do vizinho” (Tribunal do círculo de Santa Maria da Feira, 1997).

- Uma
rapariga foi violada, mas anotou a matrícula do caro do violador, o que mostra
não ter ficado traumatizada (Tribunal da Relação do
Porto, 2007).

- Um psiquiatra
foi absolvido do crime de violação sobre grávida de 8 meses, pois a resistência
foi expressa apenas por palavras (Tribunal da Relação do
Porto, 2011).

Porém, o debate intensificou-se em setembro, depois de tornado público
o acórdão dito da “sedução mútua”. O Tribunal da Relação do Porto,
aduzindo o “clima de sedução mútua” e o facto de “não ter havido violência”,
suspendeu a pena de 4 anos de prisão aplicada a dois homens que violaram uma
jovem, inconsciente, na casa de banho duma discoteca de Vila Nova de Gaia.

A esse propósito, Carla Oliveira, da ASJP (Associação
Sindical dos Juízes Portugueses), afirmou na SIC-Notícias que “não basta não haver consentimento para
haver violação” e que, para
existir violação no sentido jurídico, é preciso que o arguido tenha posto a
vítima na impossibilidade de resistir – por exemplo, pôr droga numa bebida ou
usar violência. Isto em termos gerais.

É o entendimento que também o juiz desembargador e anterior presidente da ASJP,
José Mouraz Lopes, partilha, ao considerar: 

“O legislador não assumiu, ainda e apenas, no não consentimento da
vítima a fronteira entre o lícito e o ilícito”.

E o insigne penalista Jorge de Figueiredo Dias, cuja visão informou a
geração mais idosa dos juristas – e juízes – portugueses, escrevia ainda em
2012, já após a Convenção de Istambul:

“Atua sem culpa o agente convencido de que a objeção da vítima não é
séria, quando ela se exprime apenas por palavras, mas não por qualquer
resistência corporal”.

Parece, pois, haver por parte de parte
dos juízes e mesmo de penalistas renitência em assumir a Convenção de Istambul apesar
de ela ter “aplicação direta”, como tem frisado a presidente da Associação das
Mulheres Juristas, a juíza desembargadora Teresa Féria.

Haverá, como refere o BE, a “desculpabilização e naturalização destes
crimes, bem como a responsabilização e objetificação das mulheres”, que aninham
e justificam a cultura de tolerância e desvalorização dos crimes sexuais sobre
as mulheres que persiste na nossa sociedade.

E o PAN vai nesta linha, ao dar exemplos de decisões judiciais, como as
apontadas, que vê como desculpabilizadoras, e ao pugnar pela pertinência de
fomentar a “crescente consciencialização social (onde se
incluem magistrados, políticos e penalistas) da gravidade deste tipo de crimes”.

Nestes termos, a clarificação da lei servirá para que a sociedade, os académicos,
os políticos e os magistrados “atualizem” a sua visão dos crimes sexuais e não
possam mais continuar a defini-los, mesmo contra a letra da atual lei, a partir
do uso de violência física e da alegada maior ou menor “resistência” da vítima
e, sobretudo, a limitar quer o conceito de violação quer o de resistência. Tem
de bastar que o não consentimento tenha sido expresso de forma unívoca e não
sujeito a leituras dramaticamente irrisórias.

2019.01.10 –
Louro de Carvalho

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