Snowden Talks: O que é feito da nossa privacidade?

30-09-2016
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(Atualizada) Depois de dois leaks que abanaram o mundo e expuseram as práticas invasivas de agências e governos, como podemos agir num campo minado como a internet? Várias personalidades juntaram-se esta quarta-feira no ISCTE para debater o caso Snowden e o que será feito da privacidade digital na sociedade contemporânea.

No âmbito do lançamento de Snowden, o novo filme de Oliver Stone, o ISCTE serviu esta quarta-feira de palco a um debate a dois tempos sobre privacidade digital, segurança e os desafios que decorrem da utilização online de dados pessoais.

Num primeiro painel, que cruzou Micael Pereira, do Expresso, e Luke Harding, jornalista do The Guardian e autor do livro, Os Ficheiros Snowden, o britânico afirmou, "sem dúvidas" que "nos estão a tirar toda a privacidade". Para Harding, o "caso Snowden" deu ao mundo uma imagem real sobre um assunto que muitos fingiam não existir, e agora está retratada em filme.

Em 2013, quando o ex-militar mostrou ao mundo que a NSA espiava boa parte da população mundial através de complexas redes de vigilância, surgiu na sociedade a necessidade de nos questionarmos "sobre o que fazer com a nossa privacidade no universo digital" e apercebemo-nos de que ela "poderia deixar de existir em 5 ou 10 anos se não fizéssemos nada sobre isso".

No entanto, o jornalista do The Guardian defende que não nos devemos deixar consumir pela paranóia apesar de admitir alguns comportamentos de prevenção que não ocorrem à maioria. "Esta semana, eu e alguns colegas deixámos todos os nossos smartphones numa sala e reunimos noutra para não corrermos o risco de sermos escutados", confessou.

Mas embora estes riscos estejam mais presentes para certos grupos da sociedade, outros acabam mesmo por ser transversais, "eu próprio tapo a webcam do meu computador porque sei que existem programas capazes de a invadir e espiar-me através dela" disse Harding.

Quanto à hipotética concessão do perdão a Snowden por parte de Barack Obama, o jornalista também não se mostra muito otimista. Apesar de não o considerar um cenário impossível, Harding acredita que o norte-americano irá sempre representar um corpo interessante para a NSA e outras agências governamentais que certamente iriam formar uma marcação cerrada ao homem, "não com dois homens grandes à porta de casa, mas de forma mais discreta", rematou.

"O debate sobre a privacidade é, nesta altura, uma hipocrisia"

O segundo painel trouxe ao debate quatro vozes novas e distintas: o historiador Pacheco Pereira, a CTO da Microsoft Portugal, Sandra Miranda, o engenheiro Pedro Veiga, coordenador do Centro Nacional de Cibersegurança e o fundador do portal Tugaleaks, Rui Cruz.

Nesta fase da discussão, as ligações entre as grandes tecnológicas e a NSA serviram de ponto de partida. Seguindo ainda do contributo de Luke Harding, que não confia nas grandes tecnológicas, Micael Pereira questionou a CTO da Microsoft sobre a postura da multinacional face aos programas de recolhas de dados que são frequentemente conduzidos por agências governamentais. Sandra Miranda foi clara sobre este assunto "todas as grandes tecnológicas são obrigadas a obedecer às imposições legais que lhes são apresentadas". No entanto, a responsável fez questão de frisar que a empresa não participa voluntariamente nestas iniciativas por "razões puramente lógicas, relacionadas com negócios" e garante que os únicos dados cedidos são sempre específicos e fazem parte de contas isoladas referidas em ordens de tribunal.

Nos leaks que visavam o PRISM, a Microsoft era uma das empresas listadas num documento que evidenciava cooperações entre corporações e a NSA, mas, de acordo com a CTO, a empresa adaptou-se a uma "era pós-Snowden" com a "complexificação dos níveis de encriptação dos seus serviços, com a criação de centros de transparência para os governos e com a publicação dos casos judiciais em que a Microsoft se opõe à libertação de dados (três desde 2013)".

Mesmo em Portugal os perigos de vigilância, espionagem e roubo de identidade são tão vincados quanto noutras regiões. A internet acentuou a globalização para o bem e para o mal e colocou todos os utilizadores à mesma distância de uma hipotética ameaça.

Pedro Veiga considera que precisamos de melhorar as nossas redes de segurança. "A nossa preocupação é garantir que as redes públicas estão seguras e, tal como em tudo, há espaço para melhorar", comentou o, desde abril, coordenador do Centro Nacional de Cibersegurança. No seu discurso, Pedro Veiga quis também sublinhar a importância e o impacto negativo que outros perigos digitais podem ter para a sociedade e identificou a espionagem industrial como uma ameaça a considerar, deixando um exemplo daquilo que uma falha de segurança pode significar na presença de um destes casos: "Na Ucrânia, um ataque cibernético a uma infraestrutura elétrica foi suficiente para a deitar abaixo. O Centro de Cibersegurança tem a responsabilidade de assegurar que estas coisas não acontecem aos serviços públicos".

Do outro lado do muro, o "hacktivista" Rui Cruz admite não acreditar que está seguro na internet mesmo quando acede a portais de empresas credibilizadas, com o dever de assegurar a privacidade dos seus clientes, como os bancos.

No seguimento do exílio de Julian Assange, o português foi um dos muitos inspirados pelo "hacktivismo" que reproduziu o portal de leaks do australiano numa versão nacional. Em 2012, Rui Cruz chegou mesmo a ser constituído arguido no seguimento de uma publicação onde dava a conhecer o conteúdo de um email do Movimento Cívico Antipirataria na Internet. O processo foi arquivado, mas, três anos depois, o blogger foi detido e impedido de aceder à internet durante 299 dias como medida de prevenção. Sobre isso, Rui Cruz faz uma consideração, "é mais fácil matar o mensageiro do que combater a mensagem".

Pacheco Pereira teve direito a intervir em último lugar. Mas, ao contrário dos outros oradores, o historiador faz uma análise mais crítica à existência do próprio debate porque, para ele, a "discussão em torno da privacidade online é uma hipocrisia". Pacheco Pereira não vê na internet uma justificação para a falta de privacidade, a recusa da mesma "é uma tendência cultural dos últimos 20, 30 anos", defende. "Estamos a perder privacidade por causa do comportamento das pessoas, pelos negócios e por causa dos nossos governos", acrescentou.

Fugindo ao domínio informático, que, de resto, dominou todo o debate, o historiador apontou ainda o dedo ao programa e-fatura, um mecanismo dispensável do ponto de vista fiscal e que tem permitido ao estado português monitorizar as pessoas, "saber onde comem, de onde vêm, para onde vão" e por aí adiante.

Na tarde desta quarta-feira reforçou-se a ideia de que a espionagem e a vigilância são problemas enraízados na era digital. Adotam muitas formas e têm origens muitas vezes desconhecidas.

Em poucas palavras, Luke Harding definiu o futuro desta questão em resposta a uma pergunta do público: "Ninguém vai parar de espiar ninguém".

Nota da Redação: A notícia foi atualizada com mais informação recolhida na conferência

(Atualizada) Depois de dois leaks que abanaram o mundo e expuseram as práticas invasivas de agências e governos, como podemos agir num campo minado como a internet? Várias personalidades juntaram-se esta quarta-feira no ISCTE para debater o caso Snowden e o que será feito da privacidade digital na sociedade contemporânea.

No âmbito do lançamento de Snowden, o novo filme de Oliver Stone, o ISCTE serviu esta quarta-feira de palco a um debate a dois tempos sobre privacidade digital, segurança e os desafios que decorrem da utilização online de dados pessoais.

Num primeiro painel, que cruzou Micael Pereira, do Expresso, e Luke Harding, jornalista do The Guardian e autor do livro, Os Ficheiros Snowden, o britânico afirmou, "sem dúvidas" que "nos estão a tirar toda a privacidade". Para Harding, o "caso Snowden" deu ao mundo uma imagem real sobre um assunto que muitos fingiam não existir, e agora está retratada em filme.

Em 2013, quando o ex-militar mostrou ao mundo que a NSA espiava boa parte da população mundial através de complexas redes de vigilância, surgiu na sociedade a necessidade de nos questionarmos "sobre o que fazer com a nossa privacidade no universo digital" e apercebemo-nos de que ela "poderia deixar de existir em 5 ou 10 anos se não fizéssemos nada sobre isso".

No entanto, o jornalista do The Guardian defende que não nos devemos deixar consumir pela paranóia apesar de admitir alguns comportamentos de prevenção que não ocorrem à maioria. "Esta semana, eu e alguns colegas deixámos todos os nossos smartphones numa sala e reunimos noutra para não corrermos o risco de sermos escutados", confessou.

Mas embora estes riscos estejam mais presentes para certos grupos da sociedade, outros acabam mesmo por ser transversais, "eu próprio tapo a webcam do meu computador porque sei que existem programas capazes de a invadir e espiar-me através dela" disse Harding.

Quanto à hipotética concessão do perdão a Snowden por parte de Barack Obama, o jornalista também não se mostra muito otimista. Apesar de não o considerar um cenário impossível, Harding acredita que o norte-americano irá sempre representar um corpo interessante para a NSA e outras agências governamentais que certamente iriam formar uma marcação cerrada ao homem, "não com dois homens grandes à porta de casa, mas de forma mais discreta", rematou.

"O debate sobre a privacidade é, nesta altura, uma hipocrisia"

O segundo painel trouxe ao debate quatro vozes novas e distintas: o historiador Pacheco Pereira, a CTO da Microsoft Portugal, Sandra Miranda, o engenheiro Pedro Veiga, coordenador do Centro Nacional de Cibersegurança e o fundador do portal Tugaleaks, Rui Cruz.

Nesta fase da discussão, as ligações entre as grandes tecnológicas e a NSA serviram de ponto de partida. Seguindo ainda do contributo de Luke Harding, que não confia nas grandes tecnológicas, Micael Pereira questionou a CTO da Microsoft sobre a postura da multinacional face aos programas de recolhas de dados que são frequentemente conduzidos por agências governamentais. Sandra Miranda foi clara sobre este assunto "todas as grandes tecnológicas são obrigadas a obedecer às imposições legais que lhes são apresentadas". No entanto, a responsável fez questão de frisar que a empresa não participa voluntariamente nestas iniciativas por "razões puramente lógicas, relacionadas com negócios" e garante que os únicos dados cedidos são sempre específicos e fazem parte de contas isoladas referidas em ordens de tribunal.

Nos leaks que visavam o PRISM, a Microsoft era uma das empresas listadas num documento que evidenciava cooperações entre corporações e a NSA, mas, de acordo com a CTO, a empresa adaptou-se a uma "era pós-Snowden" com a "complexificação dos níveis de encriptação dos seus serviços, com a criação de centros de transparência para os governos e com a publicação dos casos judiciais em que a Microsoft se opõe à libertação de dados (três desde 2013)".

Mesmo em Portugal os perigos de vigilância, espionagem e roubo de identidade são tão vincados quanto noutras regiões. A internet acentuou a globalização para o bem e para o mal e colocou todos os utilizadores à mesma distância de uma hipotética ameaça.

Pedro Veiga considera que precisamos de melhorar as nossas redes de segurança. "A nossa preocupação é garantir que as redes públicas estão seguras e, tal como em tudo, há espaço para melhorar", comentou o, desde abril, coordenador do Centro Nacional de Cibersegurança. No seu discurso, Pedro Veiga quis também sublinhar a importância e o impacto negativo que outros perigos digitais podem ter para a sociedade e identificou a espionagem industrial como uma ameaça a considerar, deixando um exemplo daquilo que uma falha de segurança pode significar na presença de um destes casos: "Na Ucrânia, um ataque cibernético a uma infraestrutura elétrica foi suficiente para a deitar abaixo. O Centro de Cibersegurança tem a responsabilidade de assegurar que estas coisas não acontecem aos serviços públicos".

Do outro lado do muro, o "hacktivista" Rui Cruz admite não acreditar que está seguro na internet mesmo quando acede a portais de empresas credibilizadas, com o dever de assegurar a privacidade dos seus clientes, como os bancos.

No seguimento do exílio de Julian Assange, o português foi um dos muitos inspirados pelo "hacktivismo" que reproduziu o portal de leaks do australiano numa versão nacional. Em 2012, Rui Cruz chegou mesmo a ser constituído arguido no seguimento de uma publicação onde dava a conhecer o conteúdo de um email do Movimento Cívico Antipirataria na Internet. O processo foi arquivado, mas, três anos depois, o blogger foi detido e impedido de aceder à internet durante 299 dias como medida de prevenção. Sobre isso, Rui Cruz faz uma consideração, "é mais fácil matar o mensageiro do que combater a mensagem".

Pacheco Pereira teve direito a intervir em último lugar. Mas, ao contrário dos outros oradores, o historiador faz uma análise mais crítica à existência do próprio debate porque, para ele, a "discussão em torno da privacidade online é uma hipocrisia". Pacheco Pereira não vê na internet uma justificação para a falta de privacidade, a recusa da mesma "é uma tendência cultural dos últimos 20, 30 anos", defende. "Estamos a perder privacidade por causa do comportamento das pessoas, pelos negócios e por causa dos nossos governos", acrescentou.

Fugindo ao domínio informático, que, de resto, dominou todo o debate, o historiador apontou ainda o dedo ao programa e-fatura, um mecanismo dispensável do ponto de vista fiscal e que tem permitido ao estado português monitorizar as pessoas, "saber onde comem, de onde vêm, para onde vão" e por aí adiante.

Na tarde desta quarta-feira reforçou-se a ideia de que a espionagem e a vigilância são problemas enraízados na era digital. Adotam muitas formas e têm origens muitas vezes desconhecidas.

Em poucas palavras, Luke Harding definiu o futuro desta questão em resposta a uma pergunta do público: "Ninguém vai parar de espiar ninguém".

Nota da Redação: A notícia foi atualizada com mais informação recolhida na conferência

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