Armando Vara e José Sócrates: as escutas e as conversas proibidas do caso Face Oculta

12-12-2018
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O “CHEFE MAIOR”

Outubro de 2009

A conspiração é intensa. A propaganda da oposição e os serviços de contrapropaganda de José Sócrates travam nas redacções portuguesas uma luta silenciosa e feroz. Os adversários do Primeiro-Ministro estão desesperados para provar que este mentiu ao Parlamento quando, quatro meses antes, em Junho, garantiu aos deputados em plena Assembleia da República não possuir conhecimento do negócio da aquisição da TVI pela Portugal Telecom (PT). Se o conseguirem, dão um golpe profundo nas aspirações de José Sócrates vencer as eleições que se avizinham – quem votará num PM que mente aos deputados?

Do outro lado da barricada, os colaboradores do PM tentam tudo para impedir a eclosão de mais um escândalo durante a campanha. Luís Bernardo e David Damião, os assessores de imprensa de Sócrates, repetem já em piloto automático as ideias que repetem aos jornalistas desde que, em Junho, o caso tomou conta das manchetes dos jornais: não é verdade que Sócrates tenha estado envolvido no plano de compra da TVI – e ainda mais irreal é a ideia segundo a qual o seu alegado envolvimento teve como finalidade a concretização de uma tenebrosa, de uma excitante, de uma vigorosa fantasia: através de uma “tomada de poder” daquela estação privada, acabar com o Jornal de Sexta da TVI, o incómodo espaço informativo conduzido pela jornalista Manuela Moura Guedes que, através das notícias incisivas sobre os sucessivos casos a que o PM foi sendo associado, há muitos meses lhe estraga os fins-de-semana.

Apesar de o negócio ter sido abortado pelo próprio José Sócrates, que accionou a golden-share do Estado na PT, os estilhaços da polémica continuam, com o sufrágio popular mesmo à porta, a atingi-lo fortemente. Os seus inimigos desejam ardentemente ver a sua cabeça pendurada na janela de São Bento. E estão dispostos a tudo para o conseguir – inclusivamente a mergulhar sem escrúpulos em exercícios de baixa política. É o que fazem, ao distribuírem insidiosamente a alguns jornalistas um documento falso com a transcrição de várias conversas alegadamente ocorridas entre Sócrates e Armando Vara, o seu amigo e camarada do Partido Socialista (PS). A primeira, que supostamente tivera lugar a 1 de Agosto, poucos dias depois de o PM ter decidido inviabilizar o negócio, começa exactamente pela questão PT/TVI.

Armando Vara (AV): A propósito desta coisa da PT e da TVI, estava aqui a ler uma coisa do Henrique Granadeiro [Chairman da PT] a dizer que foi a Ferreira Leite quando era ministra das Finanças quem obrigou a PT a comprar a rede fixa do Estado para arranjar despesas extraordinárias e aldrabar o défice.

José Sócrates (JS): Esta gente tem a memória muito curta… mas aposto que esta coisa ainda vai sobrar para mim por causa da porcaria da TVI.

AV: Pode ser que não…

JS: Pode ser que não uma gaita. O negócio é melhor para a TVI e para a Media Capital do que para a PT. E mesmo que não mexam uma palha na TVI já só me estão a chatear os cornos por causa desta merda.

AV: Mas tu já sabias do negócio? Disseste na Assembleia que não sabias…

JS: E não sabia… quer dizer, sabia há já vários meses que o Teixeira dos Santos me tinha dito, em Março ou assim, que a PT estava a estudar o assunto… mas eram só estudos, não havia uma intenção concretizada, ou assim. Os gajos estão sempre a fazer estudos sobre tudo e mais alguma coisa. Também foi uma surpresa para mim esta coisa ter avançado e oxalá não tivesse avançado, por causa da porcaria da TVI… ainda me vão chatear por causa disto…

AV: Mas disseste na Assembleia que não sabias nada…

JS: E não sabia de nada de concreto, porra! E aquilo que sabia era o que toda a gente sabia. Se vires bem, a Prisa já tinha falado no assunto. Vai ver os jornais de Janeiro ou assim.

Ao verem o documento os jornalistas desconfiam imediatamente da sua veracidade. Ao contrário do que acontece com as escutas “normais”, não tem registados os números de telefone do “emissor” nem do “receptor”, por exemplo. E também não tem registadas as horas a que as conversas ocorreram, bem como a respectiva duração. Mas o conteúdo, por ser potencialmente verosímil, fá-los duvidar. Esta alegada conversa entre Sócrates e Vara sobre a acusação recente, por parte da Presidência da República, de que o gabinete do PM andaria a espiar Cavaco Silva, é um exemplo.

AV: Então agora andas a espiar o Cavaco? (risos)

JS: Já viste esta merda? Agora até o Presidente anda feito com a Manuela Ferreira Leite. Idealizaram todos juntos esta coisa da asfixia democrática.

(…)

AV: Já viste este título fabuloso? Olha só: “Presidência suspeita estar a ser vigiada pelo Governo”.

JS: E já viste de onde vem a notícia, qual a fonte? Olha só: fonte não identificada do Presidente da República…

AV: O que quer dizer: o Presidente da República ele próprio!

JS: O gajo e o seu escravo privativo, o sabujo do faz tudo do Fernando Lima [assessor de imprensa de Cavaco Silva e alegado autor da fuga de informação para o jornal Público].

AV: É uma bonita oposição que tu tens ali, já viste?

JS: Podes crer, pá. Já não me bastava a Ferreira Leite, agora ainda me sai o Cavaco na rifa, todos juntinhos em campanha eleitoral à volta desta cretinice da asfixia democrática, com a Presidência da República a dar uma ajudazinha oficial e tudo.

AV: Mas será que eles pensam que alguém acredita nesta merda?

JS: Claro que pensam. Há sempre um imbecil que engole estas patranhas. E cada imbecil que acredita nisto é um voto que os gajos ganham.

Uma terceira escuta diz respeito ao dia 3 de Setembro, quando a TVI anunciou o fim do Jornal de Sexta. Sócrates ganhara; Manuela Moura Guedes perdera.

AV: Parabéns!

JS: Parabéns porquê?

AV: A Manuela Moura Guedes foi à vida.

JS: Porra! E dás-me os parabéns por causa disso? Já pensaste no que anda por aí a deitar-me as culpas?

AV: Seja lá como for, a gaja ter deixado aquele telejornal é bom para ti.

JS: É bom mas é uma gaita. Quando já ninguém acreditava naquela gaja, agora é que correm com ela, e logo em vésperas de duas eleições.

AV: Mas como é que a gaja saltou?

JS: Sei lá. Foi uma decisão da Prisa espanhola e do camelo do Juan Luis Cebrian, que anda às turras com o Zapatero.

AV: Mas terem corrido com a gaja é um alívio para ti.

JS: Porra! Se queriam correr com a gaja, esperavam até ao fim das eleições. Fazer esta coisa agora parece encomendado.

AV: Que se lixe, foi à vida, foi à vida. Não ficas satisfeito?

JS: Claro. Claro que fico. Por um lado fico.

A conversa imaginária entre Sócrates e Vara não surge do nada. Tem uma história – a que se segue.

Junho de 2009

Teófilo Santiago, director da Polícia Judiciária (PJ) de Aveiro (X), está a investigar uma rede alargada de corrupção e tráfico de influências com epicentro no distrito, tendo como protagonista um industrial de sucata, Manuel Godinho. Em causa estão alegados subornos do empresário a políticos e gestores para ser favorecido em concursos públicos. Entre os suspeitos contam-se figuras conhecidas, quase todas ligadas ao PS e quase todas, naquele momento, sob escuta telefónica. Duas delas, o gestor Armado Vara e o jovem e ambicioso advogado Paulo Penedos, consultor jurídico da Portugal Telecom (PT), viriam a revelar-se especialmente produtivas para a investigação.

No momento em que Teófilo Santiago começa a ouvir as conversas telefónicas cruzadas de Vara e de Penedos, percebe de imediato que o que tem na mão não é um, mas dois escândalos: o da alegada corrupção de políticos por um sucateiro e outro, bem mais ardiloso, de eventual atentado contra o Estado de Direito. A diferença substancial entre os dois é que o segundo tem um suspeito com um nome conhecido: José Sócrates.

Para o director da PJ de Aveiro, o Primeiro-Ministro encontra-se, naquele preciso instante no centro nevrálgico de uma conspiração cuja finalidade é controlar meios de comunicação social como a TVI (altamente hostil ao Governo socialista), o Correio da Manhã, o Público ou as publicações de referência da Controlinveste (Diário de Notícias e TSF). Tem de comunicar já as suas suspeitas ao Procurador-Geral da República (PGR), Fernando Pinto Monteiro. No despacho que na terça-feira, 23 de Junho, lhe remete, Marques Vidal não pode ser mais claro: “No que concerne à necessidade de diligência de investigação autónoma, esta decorre da premência da realização de diligências para esclarecimento do 'esquema' (…) e à identificação de todos os participantes no 'esquema' da TVI, diligências que a não serem realizadas de imediato poderão levar a perdas irremediáveis para a actividade de aquisição da prova, sendo certo que existem indicações que o 'esquema' TVI poderá estar concluído até à próxima quinta-feira.” Têm dois dias. Precisam agir em tempo recorde.

Para atestar a solidez dos indícios que encontrou, Marques Vidal remete a Pinto Monteiro dezenas de CD's com as escutas a Vara e Penedos, ambos arguidos no “Face Oculta”. Entre as conversas enviadas encontram-se 11 mantidas entre Armando Vara e José Sócrates [os diálogos nunca viriam a ser conhecidos, uma vez que foram destruídos na sequência de uma decisão do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha do Nascimento].

Não é, porém, necessário conhecer o teor das discussões entre o PM e Vara para notar com relativa facilidade que, com ou sem a intervenção directa do PM, está em marcha a tomada da TVI e a deposição do casal José Eduardo Moniz e Manuela Moura Guedes. A partir de determinada altura, os diálogos entre os intervenientes – sobretudo os protagonizados por Paulo Penedos e Rui Pedro Soares, Administrador Executivo da PT, superior hierárquico de Paulo Penedos e homem de confiança total de José Sócrates - ganham uma força, um ritmo e uma intensidade imparáveis, sempre em crescendo, sempre numa voragem de tal modo descontrolada que lhes permite, num curto espaço temporal, cavalgar ondas de euforia e frustração; gozo e desilusão. Tudo sempre em doses excessivas, cavalares. É o relato desses dias de tensão, em que a figura de José Sócrates está omnipresente, que se segue. (1)

Sexta-feira, 19 de Junho de 2009

Rui Pedro Soares vai jantar com José Sócrates. Embora tenham uma relação próxima, não é habitual que o façam. À mesa, ter-se-á falado na PT – pelo menos é o que o administrador da empresa garante a Paulo Penedos quando, quase à uma da manhã, lhe telefona para lhe fazer o “relatório” do repasto:

- O chefe [a investigação acredita que se refere a José Sócrates] pediu-me para ir para lá três meses [para a Prisa, proprietária da TVI, supõe o MP]. O chefe disse que é tudo ou nada, e que não pode ficar com a fama sem o proveito. Disse-lhe para pensar bem mas que estou disponível para o que quiser.

Sábado, 20 de Junho de 2009

Às 14h42m, nova conversa entre os dois amigos. Rui está entusiasmado. Relata a Paulo os avanços no projecto de aquisição da TVI pela PT, revelando-lhe que já tem um nome para liderar a informação, substituindo João Maia Abreu, que fora uma aposta pessoal de José Eduardo Moniz para o lugar.

Rui Pedro Soares (RPS) – Já está escolhido o homem da informação – o Paulo Baldaia [director da rádio TSF, do grupo Controlinveste]. É uma escolha inatacável.

Paulo Penedos (PP) – É dado como próximo do Tozé Seguro [António José Seguro, na altura o principal opositor de Sócrates no PS], tem muita visibilidade com o DN e a TSF. O João Marcelino [director do DN] puxou muito pelo gajo nisto.

RPS - Temos a Lusomundo tratada, e ele também é muito amigo do [Nuno] Vasconcellos [presidente da Ongoing], do [Rafael] Mora [vice-presidente da Ongoing] e do António Costa [director do Diário Económico, propriedade da Ongoing]. Estamos sobre gelo fino. (X)

Domingo, 21 de Junho de 2009

Tal como acontece com Sócrates, conhecido por telefonar aos seus colaboradores a qualquer hora do dia ou da noite, também Rui Pedro Soares o faz. São 23h03m quando liga a Armando Vara para lhe dar uma grande notícia.

RPS: Está fechado [o negócio da compra da TVI]. Já tenho as assinaturas da PT e amanhã vou lá [a Espanha] buscar as assinaturas deles. O negócio vai ser comunicado na quinta-feira.

Talvez para surpresa de Rui Pedro Soares, Armando Vara não solta foguetes. Há algo que o preocupa: o futuro de José Eduardo Moniz, que considera demasiado perigoso para ser deixado ao abandono.

AV - Qual é o destino do gajo?

RPS - Passa a consultor estratégico da Prisa.

Vara serena. Ter Moniz como parte integrante do negócio é a garantia de que dificilmente alguém poderá dizer que se está perante um terrível saneamento político. Mas, apesar de desejado, o homem forte da TVI não suscita a mínima confiança entre os amigos de Sócrates. A informação sobre o negócio, que deveria permanecer secreta, chega à Presidência da República. Alguém deu com a língua nos dentes. Rui Pedro fica preocupado. Elege imediatamente um suspeito pela fuga: José Eduardo Moniz. Vara centra a sua atenção na forma como serão “arrumadas” as “bestas negras” do socratismo.

AV - Qual vai ser a situação da Manuela Moura Guedes?

RPS - Fica lá dentro mas na prateleira.

Voluntária ou involuntariamente, José Eduardo Moniz dá uma alegria ao trio quando admite publicamente que pondera sair da TVI para se candidatar à presidência do Sport Lisboa e Benfica. Rui Pedro Soares e Paulo Penedos rejubilam: o facto de o jornalista admitir sair da estação apenas porque quer mudar de vida pode criar convicção generalizada de que Moniz sairia de qualquer maneira. Pouco depois de admitir avançar, Moniz recua. Mas Paulo Penedos não desanima:

- Isto foi bom porque funcionou como uma cortina de fumo [para ocultar o facto de naquele momento Moniz estar a negociar com a Prisa a saída da estação, ao mesmo tempo que acordava com a PT os termos de uma futura colaboração].

Segunda-feira, 22 de Junho de 2009

José Sócrates reúne o seu inner circle em São Bento. À volta da mesa larga, O PM passa os primeiros 15 minutos da reunião a barafustar violentamente com os presentes e os ausentes. É sempre assim, quase um ritual – Vieira da Silva, Almeida Ribeiro, Pedro Silva Pereira e Augusto Santos Silva perdoam-lhe a excentricidade. O assunto PT não é falado.

Terça-feira, 23 de Junho de 2009

Rui Pedro Soares parte para Madrid num jacto privado. Vai ultimar o negócio com a Prisa. São 11h27 quando pega no telemóvel para comentar com Penedos a manchete do Diário Económico, que o deixa rejubilante. O jornal dá conta de que a PT não é a única interessada na TVI – também os espanhóis da Telefonica se teriam juntado à corrida. O júbilo do administrador da PT justifica-se pelo facto de, a partir daquele momento, ser possível defender que a TVI é um activo tão valioso que justifica uma guerra empresarial entre dois gigantes das comunicações. Os dois estão eufóricos com o seu talento. Gozam como miúdos: se se dedicarem à ficção, ficam ricos.

RPS – Como sentes a imprensa?

PP – Com alguma calma.

RPS – [Depois disto] Podemos escrever um livro e começarmos a ser pagos a peso de ouro.

Quarta-feira, 24 de Junho de 2009

No primeiro minuto do dia, Paulo Penedos reporta a Rui Pedro Soares as manchetes dos jornais da manhã seguinte, que está a ver nas televisões. Mas a grande preocupação de Rui é resolver, a partir de Madrid, o imbróglio Moniz – está difícil chegar a um contrato que satisfaça todas as partes. E, até que o homem da TVI se sentisse confortável, avançar é muito arriscado. À medida que os minutos passam e o ruído político se dissemina, com a oposição em bloco a criticar o negócio, este vai criando resistências dentro da própria PT, o que é registado por Penedos com apreensão.

PP – O chairman está contra, o Zeinal [Bava] faz isto porque é um gajo profissional mas está-se a torcer, isto é uma maluqueira e vão levar muita porrada.

RPS – Analisa e decide se é melhor para o PSD a “pequena tourada” que vão ensaiar e que Belém vem ampliar ou manter a TVI como está agora durante mais três meses (…) se o Moniz é corrido sem nós entrarmos é melhor para a PT mas é muito pior para o “chefe máximo” [que a investigação acredita ser Sócrates], porque nós vamos ajudar a amortecer o embate, não vamos ampliá-lo.

Às 00h59m, novo diálogo, com Moniz novamente no centro das atenções.

RPS – Disse ao Sócrates que andamos nisto há dez meses e que só nos últimos dias é que...

PP – É verdade, mas enquanto estiveste com pessoas da tua confiança directa ou indirecta nada se soube.

RPS - O chefe perguntou se não é melhor correrem com o gajo [Moniz] antes de nós [PT] entrarmos. Respondi-lhe que não.

PP - Custe o que custar, em termos de dinheiro para pôr no negócio, por muito que um gajo possa pensar que o crime compensa ou que vamos beneficiar o infractor, o gajo devia sair confortável para estar calado. Porque uma coisa é as patifarias que ele pode fazer por trás mas outra coisa diferente é o gajo dar a cara.

Quarta-feira, 24 de Junho de 2009

Logo pelas 7 da manhã, Luís Bernardo cumpre a sua rotina diária: levanta-se, ouve os noticiários das rádios, faz a barba, veste o fato e dirige-se a São Bento. Este é um dia especialmente importante; potencialmente explosivo. Realiza-se no Parlamento o debate quinzenal entre o Primeiro-Ministro e a oposição. Sócrates sabe que o assunto-PT será seguramente abordado – só desconhece por quem. Também ele obedece às suas rotinas: prepara rigorosamente as suas pequenas fichas com os tópicos que resumem as mensagens-chave que pretende passar, antes de percorrer a pé o curto caminho entre o seu gabinete e o edifício da Assembleia. Já no plenário, as intervenções sucedem-se sem que o tema seja abordado. A dada altura, começa a instalar-se a ideia de que o PM sobreviverá à questão sacramental. Até que Diogo Feio, do CDS, toma a palavra.

- Qual é o interesse que o senhor deputado tem na linha editorial da TVI? Está preocupado com alguma coisa? Como eu o percebo, porque o senhor deputado acha que a TVI tem seguido uma linha contra o Governo e deve manter-se.

Sócrates reage prontamente: “O Governo não recebeu quaisquer tipo de informações sobre as perspectivas estratégicas da PT.” Mais: o Executivo não dá orientações sobre “aquilo que são negócios que têm em conta as perspectivas estratégicas da PT”.

A pressão pública para que o negócio não se realize é crescente. Ou o concretizam rapidamente ou tudo vai pelos ares. Ainda em Madrid, convicto de que é possível salvar o plano, Rui Pedro aguarda a todo o momento a hora em que falará com a Prisa. Dá instruções a Penedos para meter de imediato uma pessoa num avião para lhe levar o seu portátil a Madrid. Entretanto, pede-lhe que vá ao seu gabinete e entre no seu e-mail – a password é “Sócrates2009”. O contrato de Moniz está concluído e tem de ser entregue a Zeinal Bava, CEO da PT.

Depois do que se passara nessa tarde na Assembleia, a líder do PSD não tem condições políticas para permanecer calada sobre o caso que incendeia as manchetes dos jornais. Em entrevista a Ana Lourenço, na SIC Notícias, Manuela Ferreira Leite critica duramente o negócio, acusando José Sócrates de mentir quando disse que o desconhecia – nem todos os intervenientes o percebem imediatamente, mas o golpe de misericórdia que faltava para aniquilar as manobras em curso acaba de ser dado. Depois da entrevista, pelas 23h05m, Armando Vara comenta-a ao telefone com o empresário Lopes Barreira, um dos arguidos do processo Face Oculta. E faz uma afirmação explosiva: que ninguém acredita que Sócrates não saiba do negócio.

Lopes Barreira (LB) – Viste a entrevista da bruxa [Manuela Ferreira Leite]?

AV – Não.

LB - Saiu-se bem.

AV - Não vi, mas já ouvi dizer que ela disse que o Sócrates mentiu ao dizer que não sabia de nada.

LB - O Sócrates não tem matéria, não se dizia uma coisa dessas.

AV - Ninguém acredita que não soubesse. Foi um erro trágico. Devia ter dito que não foi oficialmente informado, mas que tinha conhecimento disso. Isto vai correr mal.

Quinta-feira, 25 de Junho de 2009

A manhã começa com Cavaco Silva a cavalgar as críticas da sua amiga Ferreira Leite. “Tem de haver transparência nos negócios”, afirma aos jornalistas. O pânico dissemina-se pelas hostes socialistas. No início da tarde, Paulo Penedos transporta Rui Pedro Soares para a sede do PS com o objectivo de este se reunir com José Sócrates. O encontro, realizado um dia depois da viagem do administrador da PT a Espanha para negociar com a Prisa, dura várias horas, pois só por volta das 19h55 é que Rui Pedro Soares surge nas escutas a ligar a Paulo Penedos, que naquele momento se encontra no seu gabinete, situado no 11º andar do edifício-sede da PT, em Lisboa.

O teor dessa conversa (a primeira depois do encontro com o Primeiro-Ministro) surpreendeu posteriormente os investigadores do processo, uma vez que contraria radicalmente o de anteriores diálogos sobre o negócio da aquisição da TVI. Polícias e magistrados ficam convictos de que os suspeitos foram avisados de que estariam a ser escutados, moldando o seu discurso a partir de então. Rui Pedro Soares confidencia a Penedos que José Sócrates está furioso.

RPS – Fizemos merda (…) Como sabes isto [a aquisição da TVI] esteve para ser feito, para não ser feito... Andou para trás e para a frente durante demasiado tempo, arrastou-se demasiado... Devia ter tido a cautela de falar com o Sócrates... Não falei e o gajo não quer o negócio. Era isto que eu temia. Acho que o Henrique [Granadeiro] não falou com ele, o Zeinal não falou com ele... Eh pá... Agora ele está todo fodido e com razão.

PP – Mas não contigo?

RPS - Quem devia estar informado disto não era eu... ouve... Eu nunca imaginei que ninguém tivesse falado com o gajo sobre isto... Agora o gajo está... Eh pá, foda-se pá (…) Esta merda esteve sempre... Num faz, não faz e agora que fizemos isto o gajo está todo fodido connosco.

PP - Mas está fechado [o negócio]?

RPS - Não, não está fechado.

PP - Então... Se ele não quer...

Rui Pedro Soares pede a Paulo Penedos para o ir buscar. É imperioso informar Zeinal Bava da alegada oposição de Sócrates antes de o presidente executivo entrar no estúdio da RTP para ser entrevistado por Judite Sousa, a quem se preparava para confirmar o interesse da PT na aquisição. Rui Pedro parece desesperado: “Vou ter de tirar o sonho do Zeinal.”

A entrevista realiza-se. Zeinal reafirma o interesse no negócio. Nas suas notas pessoais, escritas depois da entrevista ao líder da PT, Judite Sousa registou o ambiente geral: “Na imprensa e nos bastidores a ideia da compra era alterar a linha editorial da TVI, afastando José Eduardo Moniz. Na quinta-feira o Presidente pediu transparência e ética nos negócios. Falei com Abílio Martins, director de comunicação da PT, e pedi-lhe uma entrevista com Zeinal Bava. Ele vem e explica a racionalidade do negócio, recusando outras leituras e sublinhando que é insultuoso insinuar-se que a PT é instrumentalizável. No final, o Abílio Martins mostrou-me sms que foi recebendo durante a entrevista, provenientes de colegas meus. Tom geral: ‘A gaja está lixada’. No dia seguinte, o Abílio telefona-me e diz-me que tinha sido dura com o Zeinal. Fiquei a perceber como é que funciona o jornalismo a este nível na imprensa económica.” (2)

Sexta-feira, 26 Junho de 2009

Em São Bento, Sócrates tenta focar-se na governação. Já praticamente não lê jornais – o que não quer dizer que não acompanhe intensamente as notícias através dos briefings permanentes dos seus assessores David Damião e Luís Bernardo. Diz frequentemente que não está para se irritar com “pistoleiros” – a expressão mais simpática das que normalmente utilizava para designar os profissionais de comunicação social. Mas nesta sexta-feira tem de vir a público falar sobre o caso – ou melhor: sobre o fim do caso. Anuncia publicamente que, se a PT avançar para a compra da TVI, o Estado accionará a golden share na PT e veta o negócio.

Nesse mesmo dia, às 20h32, Rui Pedro liga pela enésima vez ao seu agora companheiro de angústia.

RPS – Vamos ter de reunir para ver se avançamos ou não com o negócio. O Zeinal está radicalizado; diz que não sabe porque é que não se avança com o negócio. O que achas que devemos fazer?

PP – Não acredito que depois da posição do Governo haja maioria no Conselho de Administração para o negócio passar e por isso não vale a pena a Comissão Executiva entrar numa estratégia de...

Rui Pedro Soares interrompe-o...

RPS - … ele diz que o José Eduardo Moniz está de acordo, que lhe comunicou que está de acordo com o negócio e portanto não tem que estar subjugado aos timings políticos.

PP – Vai-se levantar uma polémica monumental pelo desrespeito da orientação do Governo, vai-lhe [a Zeinal Bava] cair tudo em cima.

Sábado, 27 de Junho de 2009

Triste, derrotado, frustrado, Rui Pedro Soares decide escrever “a sua” história. Alegadamente sabendo que o telefonema está a ser gravado pelas autoridades, telefona para o seu amigo Paulo e faz-lhe um longo depoimento sobre o drama dos últimos dias. Alvo a abater: José Eduardo Moniz, o homem que, acredita ele, o terá enganado desde o início. São 16h26.

RPS: Tens um papel e uma caneta? Vou-te contar a cilada que o Moniz fez: em Maio, a Prisa informa a PT que o Moniz vai sair para o Benfica e vai ser presidente do Benfica em Outubro. E quer abrir negociações porque está desesperado e tem de fechar até 30 de Junho. Vêm cá a Lisboa no dia 25 de Maio e falam com o Zeinal e comigo. Dizem que o Moniz vai sair da estação, que está desgastado, que ele quer sair, que quer ir para presidente do Benfica e que o Estado pode entrar na Media Capital. Com aquelas coisas do Zeinal a PT diz que não, que tem que ver várias hipóteses.

Entretanto fica combinado que na semana seguinte eu vou a Madrid falar com o Polanco (…) Ele [Polanco] repetiu que o José Eduardo Moniz está desgastado, quer sair e que gostavam muito que a PT entrasse no negócio. Disse-lhe que não podia ser porque se a PT entrasse no negócio, com o Moniz, em Portugal havia uma escandaleira monumental, e diz-se que há censura, etc. etc. O Polanco retorquiu que o Moniz está de acordo e que defende o negócio. Ele está de acordo, quer sair, decidimos em Maio que a mulher dele sai do ecrã a 30 de Junho e que ela passava para o núcleo de formação de programas.

O administrador da PT termina com um desabafo: - Vão meter-me nos cornos do toiro para verem se chegam ao Sócrates. Apenas uma hora depois, já Paulo Penedos e o seu pai, José Penedos, falam sobre a desgraça que caiu no colo do amigo. José Penedos (JP) – Falei com o Rui Pedro Soares e ele está desesperado. PP – Saiu no Correio da Manhã que o negócio se deve a ele como principal negociador, com deslocações a Madrid e que ele foi identificado como amigo do Sócrates dentro da Federação Nacional do PS. JP – Isso é uma chatice; é uma vingança interna.

Terça-feira, 7 de Julho de 2009

Apesar de a poeira do caso estar paulatinamente a pausar, Rui Pedro Soares não pára de pensar – e de falar - no assunto. Não esconde a ninguém que José Eduardo Moniz é uma espinha na sua garganta. Sente-se enganado. Às 13h17 telefona ao seu companheiro de mágoas.

RPS – Já está confirmado quem andou a fazer “jogo triplo”... Foi o Moniz, porque também foi ele que, ao mesmo tempo que estava a negociar connosco e a dizer aos espanhóis que queria sair, andava a dizer para a Presidência da República que o queriam pôr fora. Já suspeitavam disso, agora têm a certeza. Ele [Moniz] já tinha feito o mesmo à ZON; com esta só um maluco lhe dá emprego em Portugal.

Rui Pedro Soares presidente do Belenenses à chegada para a reunião promovida pelo Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol com clubes da I Liga, em Fátima, 11 de janeiro 2018. A Reunião do Conselho de Arbitragem (CA) da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) com os 18 clubes da I Liga realizou-se para analisar o projeto do videoárbitro. PAULO CUNHA/LUSA créditos: © 2018 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.

A história provaria o contrário: o jornalista foi anunciado no final de Julho como vice-presidente da Ongoing, ainda antes de ir de férias. No Parlamento, quando a 9 de Março de 2010 foi ouvido na Comissão de Ética em que se procurava investigar se o PM tinha mentido na Assembleia, confirmou ter-se encontrado com Zeinal Bava a 23 de Junho de 2009. Nessa reunião, o então o presidente da comissão executiva ter-lhe-á dito “estarem em curso conversas com a Prisa” e que “gostaria muito” que o ex-director-geral da TVI desse o seu contributo não só à Media Capital, mas também à PT. A resposta foi um não: “Lamento, mas não vai contar comigo. Porque suspeito que este acordo confirmará o que se passa neste momento, um clima de tensão insuportável entre mim e a administração que conduzirá inevitavelmente a alterações editoriais.” (3)

Sexta-feira, 10 de Agosto de 2009

A novela em redor do futuro de Manuela Moura Guedes, ainda e sempre inimiga pública número um de José Sócrates, está ao rubro. Agora que não tem José Eduardo Moniz para a proteger a pivot está fragilizada. Nos bastidores, as conversas apontam todas no mesmo sentido: sabe-se que cairá; resta saber quando - e às mãos de quem. Às 20h48, Joaquim Oliveira, presidente da Controlinveste, comenta o assunto com Armando Vara.

Joaquim Oliveira (JO) – Estive com o Juca Magalhães [Júlio Magalhães, o jornalista que viria a suceder a João Maia Abreu como director de informação da TVI na sequência do afastamento de Manuela Moura Guedes] e ele disse-me que a senhora [Manuela Moura Guedes] vai ficar lá devidamente espaldada e que ninguém lhe toca, ninguém lhe chega, que para chegarem ali iam ter de trucidar tudo e todos. Eu disse-lhe que se calhar começa daqui a 15 dias.

AV – Se não for daqui a 15 dias é daqui a 45.

JO – Sim. Também não posso com ela; é execrável.

AV – Em quem é que ela está espaldada? Demitem-se todos?

JO – Está espaldada numa trupe que domina a informação e estão à volta dela e num tal Prates. O Mário Moura já não está ao lado dela; ela zangou-se com a mulher dele.

AV – Se o Mora [Rafael Mora] estiver no jantar de amanhã vamos saber tudo.

Quinta-feira, 3 de Setembro de 2009

Não foram 15, nem 45. Vinte e quatro dias depois da conversa entre Vara e Oliveira, Manuel Moura Guedes estranha que, contrariamente ao que é habitual, a promoção do Jornal de Sexta não esteja a ser emitida. “Telefonei ao Luís Cunha Velho [director-geral da TVI] a dar-lhe conta da minha estranheza.”(4) Uma conversa telefónica não era suficiente. Tinham de falar pessoalmente.

Juntamente com o director de informação, João Maia Abreu, dirige-se ao seu gabinete. Moura Guedes relata o que se passou a seguir: “Apareceu o administrador Bernardo Bairrão, que me informou que por ordem dos espanhóis não podia ir para o ar, que iam suspender o jornal, por pressão do Primeiro-Ministro. Para além disso, voltou-se para mim e para o Maia Abreu e disse: 'Já perceberam que isto tem implicações nas nossas vidas? Vamos ter de nos demitir...' Eu disse:'Pois, parece-me que sim.'” (5) Manuela Moura Guedes e Joao Maia Abreu afastaram-se dos seus postos. Bairrão permaneceu...

A partir do momento em que o seu afastamento é tornado público, Manuela transforma-se num alvo a abater – mesmo entre os colegas da TVI, que não lhe perdoam o facto de ter constituído uma equipa de elite, que trabalhava totalmente à margem das tarefas diárias da redacção. “Foi um processo verdadeiramente estalinista.” (6) É obrigada a mudar de lugar na redacção e encostada a um canto. Não lhe são atribuídas novas funções. As pessoas que ainda lhe falam fazem-no discretamente “por terem medo de represálias”. Entra numa depressão profunda. “Passava os dias inteiros sem ter o que fazer; quando saía da redacção tinha ataques de choro, já não dava para aguentar mais.”(7) O desenlace é conhecido: a jornalista meteu baixa médica e acabou por negociar a saída em troco de uma indemnização de algumas centenas de milhares de euros.

Sexta-feira, 5 de Setembro de 2014

Os 36 arguidos do caso Face Oculta – 34 pessoas e duas empresas – são condenados pelo Tribunal de Aveiro. Com cerca de 2800 páginas, o acórdão determina que a pena mais pesada seja aplicada ao principal arguido: Manuel Godinho, líder da rede de associação criminosa, é condenado a 17 anos e seis meses de prisão efectiva. Também Armando Vara e José Penedos, com uma pena de cinco anos para cada um, não escapam à prisão efectiva. Com Paulo Penedos o juiz é mais simpático, embora pouco: quatro anos de clausura.

Nas escutas que constam do acórdão final, Vara invoca, em conversas com arguidos ou testemunhas do caso, frequentemente o nome de José Sócrates, dando a entender que o seu peso junto do seu amigo poderia ser decisivo para desbloquear situações e resolver problemas imprevistos. Na prática, seria, acreditou o juiz, uma espécie de facilitador de negócios.

AV – Já foste notificado que continuas? FR – Não. Eh pá, eu só queria saber o que...a tua opinião. Eu tenho uma carta feita a pôr o meu lugar à disposição do Governo. (…) AV – O Primeiro-Ministro hoje deve, deve... já falou ao Mário Lino [então ministro dos Transportes, Obras Públicas e Comunicações; superior hierárquico de Ana Paula Vitorino], já ficou fodido com o assunto, não é! E, tanto quanto eu percebo, já deu instruções para parar tudo.

Numa das conversas que a investigação mais valorizou, mantida a 18/06/2009 pelas 22h17, o ex-ministro socialista fala com Francisco Bandeira, ex-administrador da Caixa Geral de Depósitos, que está assustado com o facto de Ana Paula Vitorino (na altura Secretária de Estado dos Transportes e arqui-inimiga de Manuel Godinho, que tinha negócios com a CP), ter alegadamente demitido Cardoso dos Reis, presidente da empresa transportadora nacional:

AV – Sim.

Francisco Bandeira (FB) – Oh pá. Desculpa estar-te a chatear.

AV – Então?

FB – Oh pá, tua sabes alguma...oh, a gaja [Ana Paula Vitorino] demitiu o Cardoso dos Reis. Então, a três meses das eleições vai demitir o gajo!

AV – Como é que é?

FB – Oh pá, demitiu o gajo. Eh pá, diz que foi o Primeiro-Ministro... eh pá, um gajo nosso... desde há trinta anos, eh pá, esta merda está porreira, pá, um gajo dá tiros nos pés, carago.

Vara também estranha a decisão.

AV – Coisa esquisita! (…) Mas demitiu com que justificação?

FB – Oh pá, não sei, pá... não estive com o gajo, pá.

AV – Eh pá, vou fazer... vou mandar uma mensagem, o gajo está lá pra...

FB – Uhh?

AV – Vou mandar uma mensagem.

FB – A quem? Ao gajo?

AV – Não. Ao Primeiro [a investigação acredita que Vara se referia a José Sócrates].

FB – Eh pá, vê lá isso, pá.

AV – Tá, tá, até já. (7)

Logo na manhã seguinte, Armando Vara telefona a Cardoso dos Reis, o homem que havia sido informado da sua demissão por Ana Paula Vitorino, que tutelava a pasta. São 11h08.

AV – Francisco!

Cardoso dos Reis (CR) – Tás bom?

AV – Já foste notificado que continuas?

FR – Não. Eh pá, eu só queria saber o que...a tua opinião. Eu tenho uma carta feita a pôr o meu lugar à disposição do Governo.

(…)

AV – O Primeiro-Ministro hoje deve, deve... já falou ao Mário Lino [então ministro dos Transportes, Obras Públicas e Comunicações; superior hierárquico de Ana Paula Vitorino], já ficou fodido com o assunto, não é! E, tanto quanto eu percebo, já deu instruções para parar tudo.

FR – Eh pá, eu acho isto tudo uma loucura completa. A gaja [Ana Paula Vitorino] passou-se dos cornos, pá...

AV – O que foi que ela te disse? O que é que ela te disse? Que ias sair dali, prós, prós Portos?

FR – Ela disse-me, ela disse-me o seguinte: “Olha, tenho duas notícias para ti. Uma boa e uma má. A má é que o, sabes como são estas coisas, Primeiro-Ministro, [e] o ministro querem fazer alterações e mais não sei que mais, pá, portanto nós temos que mexer aqui nas empresas, pá, e tu devias sair da CP. Eh pá, a boa notícia é que vais para administrador do Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos.”

AV – Uh!

FR – Eu disse: “Eh pá, olha. Eh, a minha resposta é a seguinte: vou pensar, eh, há uma coisa que te digo. É que não te vou deixar pendurada, nem ó [sic] Governo. Portanto, ah... Das duas uma: ou saio porque vou para outro sítio, pá...eh, ou aceito aquilo que me... (imperceptível) ”.

AV – Uh!

FR – Não te vou é entalar-te e deixar-te numa situação delicada. Da forma como ela me diz, pá, eu penso, o Mário Lino está por trás disto e o Sócrates também. Portanto, eh pá...

AV – Não. O Sócrates não estava, pá. Então, mandei-lhe a mensagem quando soube... Mandei-lhe a mensagem e já me ligou hoje de manhã.

(…)

FR – O problema, sabes qual é? É que o próximo Conselho de Ministros vai ser a última oportunidade que há-de nomear administradores públicos, porque no período que medeia a convocação de eleições e.... (imperceptível).

AV – Não vai nomear, tá descansado.

FR – Não pode nomear ninguém, pá.

AV – Está descansado que ele não vai nomear, pá (…) Vais-te manter onde estás, pá (…) O assunto foi exposto ao Primeiro-Ministro... o Primeiro-Ministro disse que tenham... tenham juízo. (8)

Armando Vara foi condenado pela alegada prática de três crimes de tráfico de influências. (ndr: a sentença foi confirmada em todas as instâncias superiores, transitando hoje, 11 de Dezembro, em julgado)

(248 dias antes...)

Quarta-feira, 18 de Novembro de 2009

Exactamente 75 dias após o fim do Jornal de Sexta, Pinto Monteiro decide dar um presente de Natal antecipado a José Sócrates. Num despacho de 26 páginas, analisa ao detalhe as acusações que lhe foram enviadas pelo Ministério Público de Aveiro.

A dada altura, o PGR insinua um milímetro de solidariedade em relação à cruzada anti-violação-do-Estado-de-Direito: “Não se ignora que o Jornal Nacional de Sexta da TVI (e em menor escala também o jornal Público) foram objecto de viva contestação por parte de elementos do PS (e do próprio Primeiro-Ministro), sendo de admitir que estes meios de comunicação social terão, eventualmente, sido objecto de pressões no sentido de não adoptarem uma linha editorial hostil ao Governo.” O problema – para Marques Vidal e Teófilo Santiago, bem entendido - é o que vem depois: “Não pode, porém, confundir-se a adopção (pelo partido e membros do Governo e pelos partidos da oposição) de procedimentos comummente aceites no sentido de se obter uma “imprensa favorável”, com recurso a comportamentos criminalmente puníveis. Ainda que se fale de “interferência”, entendemos que a tentativa de alteração da linha editorial de um órgão de comunicação social, a ter existido, não pode ser confundida com o propósito de subverter o Estado de Direito.”

Pinto Monteiro defende que, apesar de alguns produtos resultantes de conversas entre Paulo Penedos e Rui Pedro Soares incluírem referências a contactos havidos entre a PT e a Prisa, “não existe nos elementos disponíveis qualquer referência a acções ou omissões de titulares de cargos políticos ou de outras pessoas, que se mostrem de algum modo idóneos para tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de Direito constitucionalmente estabelecido, nomeadamente os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República Portuguesa”.

Conclusão: “Não existem no conjunto dos documentos examinados elementos de facto que justifiquem a instauração de procedimento criminal contra o Primeiro-Ministro José Sócrates e/ou qualquer outro dos indivíduos mencionados nas certidões, pela prática do referido crime de atentado contra o Estado de Direito.”

Fernando Pinto Monteiro

No fim do dia, Sócrates derrota barbaramente os seus inimigos. Uma vez mais.

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Título: Cercado, os Dias Fatais de José Sócrates

Autor: Fernando Esteves

Editora: Matéria-Prima

O “CHEFE MAIOR”

Outubro de 2009

A conspiração é intensa. A propaganda da oposição e os serviços de contrapropaganda de José Sócrates travam nas redacções portuguesas uma luta silenciosa e feroz. Os adversários do Primeiro-Ministro estão desesperados para provar que este mentiu ao Parlamento quando, quatro meses antes, em Junho, garantiu aos deputados em plena Assembleia da República não possuir conhecimento do negócio da aquisição da TVI pela Portugal Telecom (PT). Se o conseguirem, dão um golpe profundo nas aspirações de José Sócrates vencer as eleições que se avizinham – quem votará num PM que mente aos deputados?

Do outro lado da barricada, os colaboradores do PM tentam tudo para impedir a eclosão de mais um escândalo durante a campanha. Luís Bernardo e David Damião, os assessores de imprensa de Sócrates, repetem já em piloto automático as ideias que repetem aos jornalistas desde que, em Junho, o caso tomou conta das manchetes dos jornais: não é verdade que Sócrates tenha estado envolvido no plano de compra da TVI – e ainda mais irreal é a ideia segundo a qual o seu alegado envolvimento teve como finalidade a concretização de uma tenebrosa, de uma excitante, de uma vigorosa fantasia: através de uma “tomada de poder” daquela estação privada, acabar com o Jornal de Sexta da TVI, o incómodo espaço informativo conduzido pela jornalista Manuela Moura Guedes que, através das notícias incisivas sobre os sucessivos casos a que o PM foi sendo associado, há muitos meses lhe estraga os fins-de-semana.

Apesar de o negócio ter sido abortado pelo próprio José Sócrates, que accionou a golden-share do Estado na PT, os estilhaços da polémica continuam, com o sufrágio popular mesmo à porta, a atingi-lo fortemente. Os seus inimigos desejam ardentemente ver a sua cabeça pendurada na janela de São Bento. E estão dispostos a tudo para o conseguir – inclusivamente a mergulhar sem escrúpulos em exercícios de baixa política. É o que fazem, ao distribuírem insidiosamente a alguns jornalistas um documento falso com a transcrição de várias conversas alegadamente ocorridas entre Sócrates e Armando Vara, o seu amigo e camarada do Partido Socialista (PS). A primeira, que supostamente tivera lugar a 1 de Agosto, poucos dias depois de o PM ter decidido inviabilizar o negócio, começa exactamente pela questão PT/TVI.

Armando Vara (AV): A propósito desta coisa da PT e da TVI, estava aqui a ler uma coisa do Henrique Granadeiro [Chairman da PT] a dizer que foi a Ferreira Leite quando era ministra das Finanças quem obrigou a PT a comprar a rede fixa do Estado para arranjar despesas extraordinárias e aldrabar o défice.

José Sócrates (JS): Esta gente tem a memória muito curta… mas aposto que esta coisa ainda vai sobrar para mim por causa da porcaria da TVI.

AV: Pode ser que não…

JS: Pode ser que não uma gaita. O negócio é melhor para a TVI e para a Media Capital do que para a PT. E mesmo que não mexam uma palha na TVI já só me estão a chatear os cornos por causa desta merda.

AV: Mas tu já sabias do negócio? Disseste na Assembleia que não sabias…

JS: E não sabia… quer dizer, sabia há já vários meses que o Teixeira dos Santos me tinha dito, em Março ou assim, que a PT estava a estudar o assunto… mas eram só estudos, não havia uma intenção concretizada, ou assim. Os gajos estão sempre a fazer estudos sobre tudo e mais alguma coisa. Também foi uma surpresa para mim esta coisa ter avançado e oxalá não tivesse avançado, por causa da porcaria da TVI… ainda me vão chatear por causa disto…

AV: Mas disseste na Assembleia que não sabias nada…

JS: E não sabia de nada de concreto, porra! E aquilo que sabia era o que toda a gente sabia. Se vires bem, a Prisa já tinha falado no assunto. Vai ver os jornais de Janeiro ou assim.

Ao verem o documento os jornalistas desconfiam imediatamente da sua veracidade. Ao contrário do que acontece com as escutas “normais”, não tem registados os números de telefone do “emissor” nem do “receptor”, por exemplo. E também não tem registadas as horas a que as conversas ocorreram, bem como a respectiva duração. Mas o conteúdo, por ser potencialmente verosímil, fá-los duvidar. Esta alegada conversa entre Sócrates e Vara sobre a acusação recente, por parte da Presidência da República, de que o gabinete do PM andaria a espiar Cavaco Silva, é um exemplo.

AV: Então agora andas a espiar o Cavaco? (risos)

JS: Já viste esta merda? Agora até o Presidente anda feito com a Manuela Ferreira Leite. Idealizaram todos juntos esta coisa da asfixia democrática.

(…)

AV: Já viste este título fabuloso? Olha só: “Presidência suspeita estar a ser vigiada pelo Governo”.

JS: E já viste de onde vem a notícia, qual a fonte? Olha só: fonte não identificada do Presidente da República…

AV: O que quer dizer: o Presidente da República ele próprio!

JS: O gajo e o seu escravo privativo, o sabujo do faz tudo do Fernando Lima [assessor de imprensa de Cavaco Silva e alegado autor da fuga de informação para o jornal Público].

AV: É uma bonita oposição que tu tens ali, já viste?

JS: Podes crer, pá. Já não me bastava a Ferreira Leite, agora ainda me sai o Cavaco na rifa, todos juntinhos em campanha eleitoral à volta desta cretinice da asfixia democrática, com a Presidência da República a dar uma ajudazinha oficial e tudo.

AV: Mas será que eles pensam que alguém acredita nesta merda?

JS: Claro que pensam. Há sempre um imbecil que engole estas patranhas. E cada imbecil que acredita nisto é um voto que os gajos ganham.

Uma terceira escuta diz respeito ao dia 3 de Setembro, quando a TVI anunciou o fim do Jornal de Sexta. Sócrates ganhara; Manuela Moura Guedes perdera.

AV: Parabéns!

JS: Parabéns porquê?

AV: A Manuela Moura Guedes foi à vida.

JS: Porra! E dás-me os parabéns por causa disso? Já pensaste no que anda por aí a deitar-me as culpas?

AV: Seja lá como for, a gaja ter deixado aquele telejornal é bom para ti.

JS: É bom mas é uma gaita. Quando já ninguém acreditava naquela gaja, agora é que correm com ela, e logo em vésperas de duas eleições.

AV: Mas como é que a gaja saltou?

JS: Sei lá. Foi uma decisão da Prisa espanhola e do camelo do Juan Luis Cebrian, que anda às turras com o Zapatero.

AV: Mas terem corrido com a gaja é um alívio para ti.

JS: Porra! Se queriam correr com a gaja, esperavam até ao fim das eleições. Fazer esta coisa agora parece encomendado.

AV: Que se lixe, foi à vida, foi à vida. Não ficas satisfeito?

JS: Claro. Claro que fico. Por um lado fico.

A conversa imaginária entre Sócrates e Vara não surge do nada. Tem uma história – a que se segue.

Junho de 2009

Teófilo Santiago, director da Polícia Judiciária (PJ) de Aveiro (X), está a investigar uma rede alargada de corrupção e tráfico de influências com epicentro no distrito, tendo como protagonista um industrial de sucata, Manuel Godinho. Em causa estão alegados subornos do empresário a políticos e gestores para ser favorecido em concursos públicos. Entre os suspeitos contam-se figuras conhecidas, quase todas ligadas ao PS e quase todas, naquele momento, sob escuta telefónica. Duas delas, o gestor Armado Vara e o jovem e ambicioso advogado Paulo Penedos, consultor jurídico da Portugal Telecom (PT), viriam a revelar-se especialmente produtivas para a investigação.

No momento em que Teófilo Santiago começa a ouvir as conversas telefónicas cruzadas de Vara e de Penedos, percebe de imediato que o que tem na mão não é um, mas dois escândalos: o da alegada corrupção de políticos por um sucateiro e outro, bem mais ardiloso, de eventual atentado contra o Estado de Direito. A diferença substancial entre os dois é que o segundo tem um suspeito com um nome conhecido: José Sócrates.

Para o director da PJ de Aveiro, o Primeiro-Ministro encontra-se, naquele preciso instante no centro nevrálgico de uma conspiração cuja finalidade é controlar meios de comunicação social como a TVI (altamente hostil ao Governo socialista), o Correio da Manhã, o Público ou as publicações de referência da Controlinveste (Diário de Notícias e TSF). Tem de comunicar já as suas suspeitas ao Procurador-Geral da República (PGR), Fernando Pinto Monteiro. No despacho que na terça-feira, 23 de Junho, lhe remete, Marques Vidal não pode ser mais claro: “No que concerne à necessidade de diligência de investigação autónoma, esta decorre da premência da realização de diligências para esclarecimento do 'esquema' (…) e à identificação de todos os participantes no 'esquema' da TVI, diligências que a não serem realizadas de imediato poderão levar a perdas irremediáveis para a actividade de aquisição da prova, sendo certo que existem indicações que o 'esquema' TVI poderá estar concluído até à próxima quinta-feira.” Têm dois dias. Precisam agir em tempo recorde.

Para atestar a solidez dos indícios que encontrou, Marques Vidal remete a Pinto Monteiro dezenas de CD's com as escutas a Vara e Penedos, ambos arguidos no “Face Oculta”. Entre as conversas enviadas encontram-se 11 mantidas entre Armando Vara e José Sócrates [os diálogos nunca viriam a ser conhecidos, uma vez que foram destruídos na sequência de uma decisão do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha do Nascimento].

Não é, porém, necessário conhecer o teor das discussões entre o PM e Vara para notar com relativa facilidade que, com ou sem a intervenção directa do PM, está em marcha a tomada da TVI e a deposição do casal José Eduardo Moniz e Manuela Moura Guedes. A partir de determinada altura, os diálogos entre os intervenientes – sobretudo os protagonizados por Paulo Penedos e Rui Pedro Soares, Administrador Executivo da PT, superior hierárquico de Paulo Penedos e homem de confiança total de José Sócrates - ganham uma força, um ritmo e uma intensidade imparáveis, sempre em crescendo, sempre numa voragem de tal modo descontrolada que lhes permite, num curto espaço temporal, cavalgar ondas de euforia e frustração; gozo e desilusão. Tudo sempre em doses excessivas, cavalares. É o relato desses dias de tensão, em que a figura de José Sócrates está omnipresente, que se segue. (1)

Sexta-feira, 19 de Junho de 2009

Rui Pedro Soares vai jantar com José Sócrates. Embora tenham uma relação próxima, não é habitual que o façam. À mesa, ter-se-á falado na PT – pelo menos é o que o administrador da empresa garante a Paulo Penedos quando, quase à uma da manhã, lhe telefona para lhe fazer o “relatório” do repasto:

- O chefe [a investigação acredita que se refere a José Sócrates] pediu-me para ir para lá três meses [para a Prisa, proprietária da TVI, supõe o MP]. O chefe disse que é tudo ou nada, e que não pode ficar com a fama sem o proveito. Disse-lhe para pensar bem mas que estou disponível para o que quiser.

Sábado, 20 de Junho de 2009

Às 14h42m, nova conversa entre os dois amigos. Rui está entusiasmado. Relata a Paulo os avanços no projecto de aquisição da TVI pela PT, revelando-lhe que já tem um nome para liderar a informação, substituindo João Maia Abreu, que fora uma aposta pessoal de José Eduardo Moniz para o lugar.

Rui Pedro Soares (RPS) – Já está escolhido o homem da informação – o Paulo Baldaia [director da rádio TSF, do grupo Controlinveste]. É uma escolha inatacável.

Paulo Penedos (PP) – É dado como próximo do Tozé Seguro [António José Seguro, na altura o principal opositor de Sócrates no PS], tem muita visibilidade com o DN e a TSF. O João Marcelino [director do DN] puxou muito pelo gajo nisto.

RPS - Temos a Lusomundo tratada, e ele também é muito amigo do [Nuno] Vasconcellos [presidente da Ongoing], do [Rafael] Mora [vice-presidente da Ongoing] e do António Costa [director do Diário Económico, propriedade da Ongoing]. Estamos sobre gelo fino. (X)

Domingo, 21 de Junho de 2009

Tal como acontece com Sócrates, conhecido por telefonar aos seus colaboradores a qualquer hora do dia ou da noite, também Rui Pedro Soares o faz. São 23h03m quando liga a Armando Vara para lhe dar uma grande notícia.

RPS: Está fechado [o negócio da compra da TVI]. Já tenho as assinaturas da PT e amanhã vou lá [a Espanha] buscar as assinaturas deles. O negócio vai ser comunicado na quinta-feira.

Talvez para surpresa de Rui Pedro Soares, Armando Vara não solta foguetes. Há algo que o preocupa: o futuro de José Eduardo Moniz, que considera demasiado perigoso para ser deixado ao abandono.

AV - Qual é o destino do gajo?

RPS - Passa a consultor estratégico da Prisa.

Vara serena. Ter Moniz como parte integrante do negócio é a garantia de que dificilmente alguém poderá dizer que se está perante um terrível saneamento político. Mas, apesar de desejado, o homem forte da TVI não suscita a mínima confiança entre os amigos de Sócrates. A informação sobre o negócio, que deveria permanecer secreta, chega à Presidência da República. Alguém deu com a língua nos dentes. Rui Pedro fica preocupado. Elege imediatamente um suspeito pela fuga: José Eduardo Moniz. Vara centra a sua atenção na forma como serão “arrumadas” as “bestas negras” do socratismo.

AV - Qual vai ser a situação da Manuela Moura Guedes?

RPS - Fica lá dentro mas na prateleira.

Voluntária ou involuntariamente, José Eduardo Moniz dá uma alegria ao trio quando admite publicamente que pondera sair da TVI para se candidatar à presidência do Sport Lisboa e Benfica. Rui Pedro Soares e Paulo Penedos rejubilam: o facto de o jornalista admitir sair da estação apenas porque quer mudar de vida pode criar convicção generalizada de que Moniz sairia de qualquer maneira. Pouco depois de admitir avançar, Moniz recua. Mas Paulo Penedos não desanima:

- Isto foi bom porque funcionou como uma cortina de fumo [para ocultar o facto de naquele momento Moniz estar a negociar com a Prisa a saída da estação, ao mesmo tempo que acordava com a PT os termos de uma futura colaboração].

Segunda-feira, 22 de Junho de 2009

José Sócrates reúne o seu inner circle em São Bento. À volta da mesa larga, O PM passa os primeiros 15 minutos da reunião a barafustar violentamente com os presentes e os ausentes. É sempre assim, quase um ritual – Vieira da Silva, Almeida Ribeiro, Pedro Silva Pereira e Augusto Santos Silva perdoam-lhe a excentricidade. O assunto PT não é falado.

Terça-feira, 23 de Junho de 2009

Rui Pedro Soares parte para Madrid num jacto privado. Vai ultimar o negócio com a Prisa. São 11h27 quando pega no telemóvel para comentar com Penedos a manchete do Diário Económico, que o deixa rejubilante. O jornal dá conta de que a PT não é a única interessada na TVI – também os espanhóis da Telefonica se teriam juntado à corrida. O júbilo do administrador da PT justifica-se pelo facto de, a partir daquele momento, ser possível defender que a TVI é um activo tão valioso que justifica uma guerra empresarial entre dois gigantes das comunicações. Os dois estão eufóricos com o seu talento. Gozam como miúdos: se se dedicarem à ficção, ficam ricos.

RPS – Como sentes a imprensa?

PP – Com alguma calma.

RPS – [Depois disto] Podemos escrever um livro e começarmos a ser pagos a peso de ouro.

Quarta-feira, 24 de Junho de 2009

No primeiro minuto do dia, Paulo Penedos reporta a Rui Pedro Soares as manchetes dos jornais da manhã seguinte, que está a ver nas televisões. Mas a grande preocupação de Rui é resolver, a partir de Madrid, o imbróglio Moniz – está difícil chegar a um contrato que satisfaça todas as partes. E, até que o homem da TVI se sentisse confortável, avançar é muito arriscado. À medida que os minutos passam e o ruído político se dissemina, com a oposição em bloco a criticar o negócio, este vai criando resistências dentro da própria PT, o que é registado por Penedos com apreensão.

PP – O chairman está contra, o Zeinal [Bava] faz isto porque é um gajo profissional mas está-se a torcer, isto é uma maluqueira e vão levar muita porrada.

RPS – Analisa e decide se é melhor para o PSD a “pequena tourada” que vão ensaiar e que Belém vem ampliar ou manter a TVI como está agora durante mais três meses (…) se o Moniz é corrido sem nós entrarmos é melhor para a PT mas é muito pior para o “chefe máximo” [que a investigação acredita ser Sócrates], porque nós vamos ajudar a amortecer o embate, não vamos ampliá-lo.

Às 00h59m, novo diálogo, com Moniz novamente no centro das atenções.

RPS – Disse ao Sócrates que andamos nisto há dez meses e que só nos últimos dias é que...

PP – É verdade, mas enquanto estiveste com pessoas da tua confiança directa ou indirecta nada se soube.

RPS - O chefe perguntou se não é melhor correrem com o gajo [Moniz] antes de nós [PT] entrarmos. Respondi-lhe que não.

PP - Custe o que custar, em termos de dinheiro para pôr no negócio, por muito que um gajo possa pensar que o crime compensa ou que vamos beneficiar o infractor, o gajo devia sair confortável para estar calado. Porque uma coisa é as patifarias que ele pode fazer por trás mas outra coisa diferente é o gajo dar a cara.

Quarta-feira, 24 de Junho de 2009

Logo pelas 7 da manhã, Luís Bernardo cumpre a sua rotina diária: levanta-se, ouve os noticiários das rádios, faz a barba, veste o fato e dirige-se a São Bento. Este é um dia especialmente importante; potencialmente explosivo. Realiza-se no Parlamento o debate quinzenal entre o Primeiro-Ministro e a oposição. Sócrates sabe que o assunto-PT será seguramente abordado – só desconhece por quem. Também ele obedece às suas rotinas: prepara rigorosamente as suas pequenas fichas com os tópicos que resumem as mensagens-chave que pretende passar, antes de percorrer a pé o curto caminho entre o seu gabinete e o edifício da Assembleia. Já no plenário, as intervenções sucedem-se sem que o tema seja abordado. A dada altura, começa a instalar-se a ideia de que o PM sobreviverá à questão sacramental. Até que Diogo Feio, do CDS, toma a palavra.

- Qual é o interesse que o senhor deputado tem na linha editorial da TVI? Está preocupado com alguma coisa? Como eu o percebo, porque o senhor deputado acha que a TVI tem seguido uma linha contra o Governo e deve manter-se.

Sócrates reage prontamente: “O Governo não recebeu quaisquer tipo de informações sobre as perspectivas estratégicas da PT.” Mais: o Executivo não dá orientações sobre “aquilo que são negócios que têm em conta as perspectivas estratégicas da PT”.

A pressão pública para que o negócio não se realize é crescente. Ou o concretizam rapidamente ou tudo vai pelos ares. Ainda em Madrid, convicto de que é possível salvar o plano, Rui Pedro aguarda a todo o momento a hora em que falará com a Prisa. Dá instruções a Penedos para meter de imediato uma pessoa num avião para lhe levar o seu portátil a Madrid. Entretanto, pede-lhe que vá ao seu gabinete e entre no seu e-mail – a password é “Sócrates2009”. O contrato de Moniz está concluído e tem de ser entregue a Zeinal Bava, CEO da PT.

Depois do que se passara nessa tarde na Assembleia, a líder do PSD não tem condições políticas para permanecer calada sobre o caso que incendeia as manchetes dos jornais. Em entrevista a Ana Lourenço, na SIC Notícias, Manuela Ferreira Leite critica duramente o negócio, acusando José Sócrates de mentir quando disse que o desconhecia – nem todos os intervenientes o percebem imediatamente, mas o golpe de misericórdia que faltava para aniquilar as manobras em curso acaba de ser dado. Depois da entrevista, pelas 23h05m, Armando Vara comenta-a ao telefone com o empresário Lopes Barreira, um dos arguidos do processo Face Oculta. E faz uma afirmação explosiva: que ninguém acredita que Sócrates não saiba do negócio.

Lopes Barreira (LB) – Viste a entrevista da bruxa [Manuela Ferreira Leite]?

AV – Não.

LB - Saiu-se bem.

AV - Não vi, mas já ouvi dizer que ela disse que o Sócrates mentiu ao dizer que não sabia de nada.

LB - O Sócrates não tem matéria, não se dizia uma coisa dessas.

AV - Ninguém acredita que não soubesse. Foi um erro trágico. Devia ter dito que não foi oficialmente informado, mas que tinha conhecimento disso. Isto vai correr mal.

Quinta-feira, 25 de Junho de 2009

A manhã começa com Cavaco Silva a cavalgar as críticas da sua amiga Ferreira Leite. “Tem de haver transparência nos negócios”, afirma aos jornalistas. O pânico dissemina-se pelas hostes socialistas. No início da tarde, Paulo Penedos transporta Rui Pedro Soares para a sede do PS com o objectivo de este se reunir com José Sócrates. O encontro, realizado um dia depois da viagem do administrador da PT a Espanha para negociar com a Prisa, dura várias horas, pois só por volta das 19h55 é que Rui Pedro Soares surge nas escutas a ligar a Paulo Penedos, que naquele momento se encontra no seu gabinete, situado no 11º andar do edifício-sede da PT, em Lisboa.

O teor dessa conversa (a primeira depois do encontro com o Primeiro-Ministro) surpreendeu posteriormente os investigadores do processo, uma vez que contraria radicalmente o de anteriores diálogos sobre o negócio da aquisição da TVI. Polícias e magistrados ficam convictos de que os suspeitos foram avisados de que estariam a ser escutados, moldando o seu discurso a partir de então. Rui Pedro Soares confidencia a Penedos que José Sócrates está furioso.

RPS – Fizemos merda (…) Como sabes isto [a aquisição da TVI] esteve para ser feito, para não ser feito... Andou para trás e para a frente durante demasiado tempo, arrastou-se demasiado... Devia ter tido a cautela de falar com o Sócrates... Não falei e o gajo não quer o negócio. Era isto que eu temia. Acho que o Henrique [Granadeiro] não falou com ele, o Zeinal não falou com ele... Eh pá... Agora ele está todo fodido e com razão.

PP – Mas não contigo?

RPS - Quem devia estar informado disto não era eu... ouve... Eu nunca imaginei que ninguém tivesse falado com o gajo sobre isto... Agora o gajo está... Eh pá, foda-se pá (…) Esta merda esteve sempre... Num faz, não faz e agora que fizemos isto o gajo está todo fodido connosco.

PP - Mas está fechado [o negócio]?

RPS - Não, não está fechado.

PP - Então... Se ele não quer...

Rui Pedro Soares pede a Paulo Penedos para o ir buscar. É imperioso informar Zeinal Bava da alegada oposição de Sócrates antes de o presidente executivo entrar no estúdio da RTP para ser entrevistado por Judite Sousa, a quem se preparava para confirmar o interesse da PT na aquisição. Rui Pedro parece desesperado: “Vou ter de tirar o sonho do Zeinal.”

A entrevista realiza-se. Zeinal reafirma o interesse no negócio. Nas suas notas pessoais, escritas depois da entrevista ao líder da PT, Judite Sousa registou o ambiente geral: “Na imprensa e nos bastidores a ideia da compra era alterar a linha editorial da TVI, afastando José Eduardo Moniz. Na quinta-feira o Presidente pediu transparência e ética nos negócios. Falei com Abílio Martins, director de comunicação da PT, e pedi-lhe uma entrevista com Zeinal Bava. Ele vem e explica a racionalidade do negócio, recusando outras leituras e sublinhando que é insultuoso insinuar-se que a PT é instrumentalizável. No final, o Abílio Martins mostrou-me sms que foi recebendo durante a entrevista, provenientes de colegas meus. Tom geral: ‘A gaja está lixada’. No dia seguinte, o Abílio telefona-me e diz-me que tinha sido dura com o Zeinal. Fiquei a perceber como é que funciona o jornalismo a este nível na imprensa económica.” (2)

Sexta-feira, 26 Junho de 2009

Em São Bento, Sócrates tenta focar-se na governação. Já praticamente não lê jornais – o que não quer dizer que não acompanhe intensamente as notícias através dos briefings permanentes dos seus assessores David Damião e Luís Bernardo. Diz frequentemente que não está para se irritar com “pistoleiros” – a expressão mais simpática das que normalmente utilizava para designar os profissionais de comunicação social. Mas nesta sexta-feira tem de vir a público falar sobre o caso – ou melhor: sobre o fim do caso. Anuncia publicamente que, se a PT avançar para a compra da TVI, o Estado accionará a golden share na PT e veta o negócio.

Nesse mesmo dia, às 20h32, Rui Pedro liga pela enésima vez ao seu agora companheiro de angústia.

RPS – Vamos ter de reunir para ver se avançamos ou não com o negócio. O Zeinal está radicalizado; diz que não sabe porque é que não se avança com o negócio. O que achas que devemos fazer?

PP – Não acredito que depois da posição do Governo haja maioria no Conselho de Administração para o negócio passar e por isso não vale a pena a Comissão Executiva entrar numa estratégia de...

Rui Pedro Soares interrompe-o...

RPS - … ele diz que o José Eduardo Moniz está de acordo, que lhe comunicou que está de acordo com o negócio e portanto não tem que estar subjugado aos timings políticos.

PP – Vai-se levantar uma polémica monumental pelo desrespeito da orientação do Governo, vai-lhe [a Zeinal Bava] cair tudo em cima.

Sábado, 27 de Junho de 2009

Triste, derrotado, frustrado, Rui Pedro Soares decide escrever “a sua” história. Alegadamente sabendo que o telefonema está a ser gravado pelas autoridades, telefona para o seu amigo Paulo e faz-lhe um longo depoimento sobre o drama dos últimos dias. Alvo a abater: José Eduardo Moniz, o homem que, acredita ele, o terá enganado desde o início. São 16h26.

RPS: Tens um papel e uma caneta? Vou-te contar a cilada que o Moniz fez: em Maio, a Prisa informa a PT que o Moniz vai sair para o Benfica e vai ser presidente do Benfica em Outubro. E quer abrir negociações porque está desesperado e tem de fechar até 30 de Junho. Vêm cá a Lisboa no dia 25 de Maio e falam com o Zeinal e comigo. Dizem que o Moniz vai sair da estação, que está desgastado, que ele quer sair, que quer ir para presidente do Benfica e que o Estado pode entrar na Media Capital. Com aquelas coisas do Zeinal a PT diz que não, que tem que ver várias hipóteses.

Entretanto fica combinado que na semana seguinte eu vou a Madrid falar com o Polanco (…) Ele [Polanco] repetiu que o José Eduardo Moniz está desgastado, quer sair e que gostavam muito que a PT entrasse no negócio. Disse-lhe que não podia ser porque se a PT entrasse no negócio, com o Moniz, em Portugal havia uma escandaleira monumental, e diz-se que há censura, etc. etc. O Polanco retorquiu que o Moniz está de acordo e que defende o negócio. Ele está de acordo, quer sair, decidimos em Maio que a mulher dele sai do ecrã a 30 de Junho e que ela passava para o núcleo de formação de programas.

O administrador da PT termina com um desabafo: - Vão meter-me nos cornos do toiro para verem se chegam ao Sócrates. Apenas uma hora depois, já Paulo Penedos e o seu pai, José Penedos, falam sobre a desgraça que caiu no colo do amigo. José Penedos (JP) – Falei com o Rui Pedro Soares e ele está desesperado. PP – Saiu no Correio da Manhã que o negócio se deve a ele como principal negociador, com deslocações a Madrid e que ele foi identificado como amigo do Sócrates dentro da Federação Nacional do PS. JP – Isso é uma chatice; é uma vingança interna.

Terça-feira, 7 de Julho de 2009

Apesar de a poeira do caso estar paulatinamente a pausar, Rui Pedro Soares não pára de pensar – e de falar - no assunto. Não esconde a ninguém que José Eduardo Moniz é uma espinha na sua garganta. Sente-se enganado. Às 13h17 telefona ao seu companheiro de mágoas.

RPS – Já está confirmado quem andou a fazer “jogo triplo”... Foi o Moniz, porque também foi ele que, ao mesmo tempo que estava a negociar connosco e a dizer aos espanhóis que queria sair, andava a dizer para a Presidência da República que o queriam pôr fora. Já suspeitavam disso, agora têm a certeza. Ele [Moniz] já tinha feito o mesmo à ZON; com esta só um maluco lhe dá emprego em Portugal.

Rui Pedro Soares presidente do Belenenses à chegada para a reunião promovida pelo Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol com clubes da I Liga, em Fátima, 11 de janeiro 2018. A Reunião do Conselho de Arbitragem (CA) da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) com os 18 clubes da I Liga realizou-se para analisar o projeto do videoárbitro. PAULO CUNHA/LUSA créditos: © 2018 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.

A história provaria o contrário: o jornalista foi anunciado no final de Julho como vice-presidente da Ongoing, ainda antes de ir de férias. No Parlamento, quando a 9 de Março de 2010 foi ouvido na Comissão de Ética em que se procurava investigar se o PM tinha mentido na Assembleia, confirmou ter-se encontrado com Zeinal Bava a 23 de Junho de 2009. Nessa reunião, o então o presidente da comissão executiva ter-lhe-á dito “estarem em curso conversas com a Prisa” e que “gostaria muito” que o ex-director-geral da TVI desse o seu contributo não só à Media Capital, mas também à PT. A resposta foi um não: “Lamento, mas não vai contar comigo. Porque suspeito que este acordo confirmará o que se passa neste momento, um clima de tensão insuportável entre mim e a administração que conduzirá inevitavelmente a alterações editoriais.” (3)

Sexta-feira, 10 de Agosto de 2009

A novela em redor do futuro de Manuela Moura Guedes, ainda e sempre inimiga pública número um de José Sócrates, está ao rubro. Agora que não tem José Eduardo Moniz para a proteger a pivot está fragilizada. Nos bastidores, as conversas apontam todas no mesmo sentido: sabe-se que cairá; resta saber quando - e às mãos de quem. Às 20h48, Joaquim Oliveira, presidente da Controlinveste, comenta o assunto com Armando Vara.

Joaquim Oliveira (JO) – Estive com o Juca Magalhães [Júlio Magalhães, o jornalista que viria a suceder a João Maia Abreu como director de informação da TVI na sequência do afastamento de Manuela Moura Guedes] e ele disse-me que a senhora [Manuela Moura Guedes] vai ficar lá devidamente espaldada e que ninguém lhe toca, ninguém lhe chega, que para chegarem ali iam ter de trucidar tudo e todos. Eu disse-lhe que se calhar começa daqui a 15 dias.

AV – Se não for daqui a 15 dias é daqui a 45.

JO – Sim. Também não posso com ela; é execrável.

AV – Em quem é que ela está espaldada? Demitem-se todos?

JO – Está espaldada numa trupe que domina a informação e estão à volta dela e num tal Prates. O Mário Moura já não está ao lado dela; ela zangou-se com a mulher dele.

AV – Se o Mora [Rafael Mora] estiver no jantar de amanhã vamos saber tudo.

Quinta-feira, 3 de Setembro de 2009

Não foram 15, nem 45. Vinte e quatro dias depois da conversa entre Vara e Oliveira, Manuel Moura Guedes estranha que, contrariamente ao que é habitual, a promoção do Jornal de Sexta não esteja a ser emitida. “Telefonei ao Luís Cunha Velho [director-geral da TVI] a dar-lhe conta da minha estranheza.”(4) Uma conversa telefónica não era suficiente. Tinham de falar pessoalmente.

Juntamente com o director de informação, João Maia Abreu, dirige-se ao seu gabinete. Moura Guedes relata o que se passou a seguir: “Apareceu o administrador Bernardo Bairrão, que me informou que por ordem dos espanhóis não podia ir para o ar, que iam suspender o jornal, por pressão do Primeiro-Ministro. Para além disso, voltou-se para mim e para o Maia Abreu e disse: 'Já perceberam que isto tem implicações nas nossas vidas? Vamos ter de nos demitir...' Eu disse:'Pois, parece-me que sim.'” (5) Manuela Moura Guedes e Joao Maia Abreu afastaram-se dos seus postos. Bairrão permaneceu...

A partir do momento em que o seu afastamento é tornado público, Manuela transforma-se num alvo a abater – mesmo entre os colegas da TVI, que não lhe perdoam o facto de ter constituído uma equipa de elite, que trabalhava totalmente à margem das tarefas diárias da redacção. “Foi um processo verdadeiramente estalinista.” (6) É obrigada a mudar de lugar na redacção e encostada a um canto. Não lhe são atribuídas novas funções. As pessoas que ainda lhe falam fazem-no discretamente “por terem medo de represálias”. Entra numa depressão profunda. “Passava os dias inteiros sem ter o que fazer; quando saía da redacção tinha ataques de choro, já não dava para aguentar mais.”(7) O desenlace é conhecido: a jornalista meteu baixa médica e acabou por negociar a saída em troco de uma indemnização de algumas centenas de milhares de euros.

Sexta-feira, 5 de Setembro de 2014

Os 36 arguidos do caso Face Oculta – 34 pessoas e duas empresas – são condenados pelo Tribunal de Aveiro. Com cerca de 2800 páginas, o acórdão determina que a pena mais pesada seja aplicada ao principal arguido: Manuel Godinho, líder da rede de associação criminosa, é condenado a 17 anos e seis meses de prisão efectiva. Também Armando Vara e José Penedos, com uma pena de cinco anos para cada um, não escapam à prisão efectiva. Com Paulo Penedos o juiz é mais simpático, embora pouco: quatro anos de clausura.

Nas escutas que constam do acórdão final, Vara invoca, em conversas com arguidos ou testemunhas do caso, frequentemente o nome de José Sócrates, dando a entender que o seu peso junto do seu amigo poderia ser decisivo para desbloquear situações e resolver problemas imprevistos. Na prática, seria, acreditou o juiz, uma espécie de facilitador de negócios.

AV – Já foste notificado que continuas? FR – Não. Eh pá, eu só queria saber o que...a tua opinião. Eu tenho uma carta feita a pôr o meu lugar à disposição do Governo. (…) AV – O Primeiro-Ministro hoje deve, deve... já falou ao Mário Lino [então ministro dos Transportes, Obras Públicas e Comunicações; superior hierárquico de Ana Paula Vitorino], já ficou fodido com o assunto, não é! E, tanto quanto eu percebo, já deu instruções para parar tudo.

Numa das conversas que a investigação mais valorizou, mantida a 18/06/2009 pelas 22h17, o ex-ministro socialista fala com Francisco Bandeira, ex-administrador da Caixa Geral de Depósitos, que está assustado com o facto de Ana Paula Vitorino (na altura Secretária de Estado dos Transportes e arqui-inimiga de Manuel Godinho, que tinha negócios com a CP), ter alegadamente demitido Cardoso dos Reis, presidente da empresa transportadora nacional:

AV – Sim.

Francisco Bandeira (FB) – Oh pá. Desculpa estar-te a chatear.

AV – Então?

FB – Oh pá, tua sabes alguma...oh, a gaja [Ana Paula Vitorino] demitiu o Cardoso dos Reis. Então, a três meses das eleições vai demitir o gajo!

AV – Como é que é?

FB – Oh pá, demitiu o gajo. Eh pá, diz que foi o Primeiro-Ministro... eh pá, um gajo nosso... desde há trinta anos, eh pá, esta merda está porreira, pá, um gajo dá tiros nos pés, carago.

Vara também estranha a decisão.

AV – Coisa esquisita! (…) Mas demitiu com que justificação?

FB – Oh pá, não sei, pá... não estive com o gajo, pá.

AV – Eh pá, vou fazer... vou mandar uma mensagem, o gajo está lá pra...

FB – Uhh?

AV – Vou mandar uma mensagem.

FB – A quem? Ao gajo?

AV – Não. Ao Primeiro [a investigação acredita que Vara se referia a José Sócrates].

FB – Eh pá, vê lá isso, pá.

AV – Tá, tá, até já. (7)

Logo na manhã seguinte, Armando Vara telefona a Cardoso dos Reis, o homem que havia sido informado da sua demissão por Ana Paula Vitorino, que tutelava a pasta. São 11h08.

AV – Francisco!

Cardoso dos Reis (CR) – Tás bom?

AV – Já foste notificado que continuas?

FR – Não. Eh pá, eu só queria saber o que...a tua opinião. Eu tenho uma carta feita a pôr o meu lugar à disposição do Governo.

(…)

AV – O Primeiro-Ministro hoje deve, deve... já falou ao Mário Lino [então ministro dos Transportes, Obras Públicas e Comunicações; superior hierárquico de Ana Paula Vitorino], já ficou fodido com o assunto, não é! E, tanto quanto eu percebo, já deu instruções para parar tudo.

FR – Eh pá, eu acho isto tudo uma loucura completa. A gaja [Ana Paula Vitorino] passou-se dos cornos, pá...

AV – O que foi que ela te disse? O que é que ela te disse? Que ias sair dali, prós, prós Portos?

FR – Ela disse-me, ela disse-me o seguinte: “Olha, tenho duas notícias para ti. Uma boa e uma má. A má é que o, sabes como são estas coisas, Primeiro-Ministro, [e] o ministro querem fazer alterações e mais não sei que mais, pá, portanto nós temos que mexer aqui nas empresas, pá, e tu devias sair da CP. Eh pá, a boa notícia é que vais para administrador do Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos.”

AV – Uh!

FR – Eu disse: “Eh pá, olha. Eh, a minha resposta é a seguinte: vou pensar, eh, há uma coisa que te digo. É que não te vou deixar pendurada, nem ó [sic] Governo. Portanto, ah... Das duas uma: ou saio porque vou para outro sítio, pá...eh, ou aceito aquilo que me... (imperceptível) ”.

AV – Uh!

FR – Não te vou é entalar-te e deixar-te numa situação delicada. Da forma como ela me diz, pá, eu penso, o Mário Lino está por trás disto e o Sócrates também. Portanto, eh pá...

AV – Não. O Sócrates não estava, pá. Então, mandei-lhe a mensagem quando soube... Mandei-lhe a mensagem e já me ligou hoje de manhã.

(…)

FR – O problema, sabes qual é? É que o próximo Conselho de Ministros vai ser a última oportunidade que há-de nomear administradores públicos, porque no período que medeia a convocação de eleições e.... (imperceptível).

AV – Não vai nomear, tá descansado.

FR – Não pode nomear ninguém, pá.

AV – Está descansado que ele não vai nomear, pá (…) Vais-te manter onde estás, pá (…) O assunto foi exposto ao Primeiro-Ministro... o Primeiro-Ministro disse que tenham... tenham juízo. (8)

Armando Vara foi condenado pela alegada prática de três crimes de tráfico de influências. (ndr: a sentença foi confirmada em todas as instâncias superiores, transitando hoje, 11 de Dezembro, em julgado)

(248 dias antes...)

Quarta-feira, 18 de Novembro de 2009

Exactamente 75 dias após o fim do Jornal de Sexta, Pinto Monteiro decide dar um presente de Natal antecipado a José Sócrates. Num despacho de 26 páginas, analisa ao detalhe as acusações que lhe foram enviadas pelo Ministério Público de Aveiro.

A dada altura, o PGR insinua um milímetro de solidariedade em relação à cruzada anti-violação-do-Estado-de-Direito: “Não se ignora que o Jornal Nacional de Sexta da TVI (e em menor escala também o jornal Público) foram objecto de viva contestação por parte de elementos do PS (e do próprio Primeiro-Ministro), sendo de admitir que estes meios de comunicação social terão, eventualmente, sido objecto de pressões no sentido de não adoptarem uma linha editorial hostil ao Governo.” O problema – para Marques Vidal e Teófilo Santiago, bem entendido - é o que vem depois: “Não pode, porém, confundir-se a adopção (pelo partido e membros do Governo e pelos partidos da oposição) de procedimentos comummente aceites no sentido de se obter uma “imprensa favorável”, com recurso a comportamentos criminalmente puníveis. Ainda que se fale de “interferência”, entendemos que a tentativa de alteração da linha editorial de um órgão de comunicação social, a ter existido, não pode ser confundida com o propósito de subverter o Estado de Direito.”

Pinto Monteiro defende que, apesar de alguns produtos resultantes de conversas entre Paulo Penedos e Rui Pedro Soares incluírem referências a contactos havidos entre a PT e a Prisa, “não existe nos elementos disponíveis qualquer referência a acções ou omissões de titulares de cargos políticos ou de outras pessoas, que se mostrem de algum modo idóneos para tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de Direito constitucionalmente estabelecido, nomeadamente os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República Portuguesa”.

Conclusão: “Não existem no conjunto dos documentos examinados elementos de facto que justifiquem a instauração de procedimento criminal contra o Primeiro-Ministro José Sócrates e/ou qualquer outro dos indivíduos mencionados nas certidões, pela prática do referido crime de atentado contra o Estado de Direito.”

Fernando Pinto Monteiro

No fim do dia, Sócrates derrota barbaramente os seus inimigos. Uma vez mais.

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Título: Cercado, os Dias Fatais de José Sócrates

Autor: Fernando Esteves

Editora: Matéria-Prima

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