Viagem aos melhores debates televisivos em Portugal (etapa 3)

23-05-2019
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"QUE GRANDE ORDINÁRIO" 2005

José ventura

Este debate foi tão inesquecível que até deu um livro. Um livro com uma versão muito própria, coisa típica no autor, por acaso um dos presentes no debate. Manuel Maria Carrilho tem esse dom, o de semear polémica por onde passa, de transformar um debate normal numa cena inesquecível e, depois, de ter versões muito próprias sobre tudo o que aconteceu. O debate em si faz lembrar os jogos do Benfica da época passada, quando tudo se resolvia (e mal) nos descontos. Quando o debate acabou - sem grande história, por sinal - Carmona Rodrigues foi direito a Manuel Maria Carrilho de mão estendida. E assim ficou, de mão no ar, porque Carrilho passou por ele num ápice, rumo aos bastidores da SIC. Foi aí que a câmara de reporta- gem apanhou a voz de Carmona a dizer "que grande ordinário". E foi aí que o debate, em si, nunca mais mereceu um segundo de atenção. O que se discutiu daí para a frente foi esta sequência, analisada em slow motion como se faz nos programas de futebol. Analisou--se, analisou-se, analisou-se. Mas a conclusão foi só uma: Carmona ganhou, Carrilho perdeu. Ou melhor, perdeu-se.

UM DEBATE INCÓMODO 2006

bruno rascão

Foi uma campanha cheia de regressos. O regresso de Cavaco Silva não foi propriamente surpreendente. Derrotado em 1996 por Jorge Sampaio, era quase certo que ia tentar a sua sorte passados dez anos. E era quase certo que ia ganhar, o que mudou a vida de muita gente, virou o PS do avesso e deu cabo de amizades com algumas décadas. Dizer que Cavaco foi o responsável por isso tudo é relativamente injusto, porque o autor de tanta mudança foi outro regressado: Mário Soares. Foi a primeira vez que um ex-Presidente tentou a terceira eleição. Ramalho Eanes já tinha sido tentado a isso em 1996 mas recusou. Soares não precisou de ser tentado, tratou do assunto sozinho. Disse a Sócrates que ia avançar, o que condicionou o PS e deixou Alegre em fúria. Quando Soares e Alegre se encontraram, a audiência estava à espera de reviver o Soares-Zenha de 1985. Em vão. Não foi um debate inesquecível, mas merece estar nestas páginas, porque debates entre ex--amigos são sempre um programa que os espectadores não perdem. Houve acusações azedas, insinuações sobre quem era mais anticavaquista, piadas sobre a idade dos candidatos (Soares referiu os "jubilosos 70 anos" de Alegre) e um esforço contínuo de mostrar diferenças onde, afinal, não havia diferenças. Mas foi um interessante debate político, com um vencedor ausente. Ao contrário do que se passou em 1985, em que os debates com Zenha e Pintasilgo iam ajudar Soares a derrotar Zenha, aqui o fim ia ser outro.

UMA LIÇÃO DE TELEVISÃO 2009

tiago miranda

Se alguém quer estudar um debate, pode começar por este. É uma "introdução" ligeiramente cínica, mas de uma eficácia absoluta. Frente a frente, dois dos mais eficazes políticos portugueses, peixes na água no aquário televisivo, agressivos q.b. e com uma longa história de desacatos parlamentares. Vale a pena atender ao contexto: Sócra tes tinha perdido as europeias, estava numa posição de fraqueza e foi obrigado a fazer debates em frente a frente com todos. O debate com Ferreira Leite era o mais importante, mas correu como previsto. Com Jerónimo idem. Com Portas não correu tão bem, mas tinham pouco eleitorado a disputar. Louçã era, talvez, o adversário mais difícil, pronto a "engolir" a ala esquerda do eleitorado socialista, pouco contente com a governação de direita (sim, isso mesmo) de Sócrates. O então primeiro-ministro ia para a televisão da mesma forma com que enfrentava os debates parlamentares. Os seus assessores estudavam os adversários, previam as perguntas e as respostas e liam todos os documentos disponíveis. Foi isso que mudou a história deste debate, em que Francisco Louçã acabou por ir ao tapete. Conta--se numa penada: o Bloco tinha no seu programa a promessa de restringir os benefícios fiscais para despesas com educação e saúde (entre outras); Sócrates leu esse parágrafo e disse que era um ataque sem precedentes à classe média; Louçã tentou explicar a racionalidade da medida, mas estava perdido. Sócrates nunca mais largou o assunto e o Bloco ficou com fama de querer atacar a classe média, em matérias essenciais. Incrivelmente, Louçã não estava preparado para este ataque. Demorou tempo a recompor-se e a perceber onde estava metido. Incrivelmente, quando Sócrates foi reeleito acabou por adotar as medidas que o Bloco preconizava na campanha. Mas isso foi muito depois dessa noite...

As dores da reeleição (sob a sombra do BPN) 2011

Tiago Miranda

Não foi a primeira vez que se encontraram frente a frente, mas foi tudo diferente. Cinco anos antes, em 2006, Manuel Alegre era o challenger do sistema, o candidato que aparecia contra Cavaco, mas acima de tudo contra Soares (que, por acaso, é que tinha aparecido contra Alegre...) e que era novidade numas presidenciais razoavelmente previsíveis. Em 2011, muita coisa tinha mudado: Alegre era candidato oficial do PS e do Bloco, Cavaco jogava tudo na reeleição e as novidades passavam pelo errático Fernando Nobre, por um inusitado Defensor Moura e pela excentricidade de José Manuel Coelho. O debate mais divertido teve como protagonistas Francisco Lopes (e a célebre frase "E o meu minuto? Quero o meu minuto!") e Fernando Nobre, com uma metáfora sobre uma galinha que fugia com "um pedacito de pão no bico". O debate mais radical pôs frente a frente Cavaco e Defensor Moura, que quis discutir o BPN do princípio ao fim. A grande questão que dividia a campanha de Alegre era até que ponto o candidato devia ir no caso BPN. Manuel Alegre foi instruído para isso, tinha lição estudada, mas o debate que vimos mostrou uma versão bem diferente. Alegre não fugiu ao tema, mas não fez disso "o" tema. O peso institucional foi óbvio. Manuel Alegre não quis imitar Defensor Moura e muito menos José Manuel Coelho (que fez a célebre rábula do "Coelho na casa da Coelha") e optou pela sua própria campanha. Afinal de contas, era a segunda vez que se defrontavam e o respeito era público e mútuo. Vantagens e desvantagens de quem tem muita experiência televisiva e já perdeu debates, como aconteceu a Cavaco contra Sampaio em 1996, da primeira vez que tentou chegar a Belém.

Sócrates v.s. Passos, o fim de um ciclo 2011

José carlos carvalho

Este debate devia estar disponível nos videoclubes dos distribuidores de televisão. Não porque seja o melhor nem o mais épico, nem porque tenha algum golpe de teatro ou momentos extraordinários. Mas porque é o último que vimos. O Sócrates/Passos é o último exemplar de uma espécie que se deu bem em Portugal mas que teve morte súbita. Podia ter sido um debate melhor? Talvez, mas ainda assim foi um grande debate, com José Sócrates a mostrar as suas qualidades televisivas, apesar de estar certo da derrota. O ex-líder socialista era muito mais eficaz quando sabia que ia ganhar (Sócrates/Santana de 2005) ou quando sabia que tinha que ganhar (Sócrates/Ferreira Leite ou Sócrates/Louçã de 2009). A certeza da derrota não animava especialmente, mas o chumbo do PEC IV, o resgate da troika e um adversário assumidamente liberal eram carburante suficiente. Nessa altura, José Sócrates já sabia que ia para Paris, mas o jogo ainda não tinha terminado. Pedro Passos Coelho não era especialmente treinado em debates televisivos. Mas tinha tudo a seu favor e soube aproveitar isso muito bem. No fundo, o seu papel passava por segurar uma vantagem conquistada nos meses anteriores, à medida que o governo Sócrates se desfez e perdeu credibilidade externa e interna. Passos não cometeu um único erro, usou as frases-chave nos momentos certos, disse ao que vinha e não escondeu o seu programa de transformação da economia. Nos impostos, a história é outra, como todos sabemos. Sócrates não precisava de grande treino, já vinha embalado. Passos Coelho tinha os melhores brasileiros a trabalhar com ele, trazidos por Miguel Relvas para ajudar a campanha. Não eram brasileiros do estilo dos que tinham aconselhado Santana quatro anos antes. Aqui a regra era simples e passava por explorar fraquezas e contradições do adversário e culpá-lo pelo resgate. Sócrates era um alvo fácil e Passos o candidato certo para o atacar. Com uma frieza exemplar e sem nunca se exaltar, o líder do PSD deixou o tempo correr e nunca saiu do seu guião. Assumiu um ar professoral, falou de Finanças com segurança e atacou com eficácia: "o senhor tem que parar de fazer fantasias a Portugal" ou "não sei porque é que o senhor se está a rir, eu estou muito preocupado com este assunto", são pequenas pérolas que perpassam por um debate dominado por temas orçamentais e por uma palavra que se colava a quem a dizia e a quem a ouvia: bancarrota.

"QUE GRANDE ORDINÁRIO" 2005

José ventura

Este debate foi tão inesquecível que até deu um livro. Um livro com uma versão muito própria, coisa típica no autor, por acaso um dos presentes no debate. Manuel Maria Carrilho tem esse dom, o de semear polémica por onde passa, de transformar um debate normal numa cena inesquecível e, depois, de ter versões muito próprias sobre tudo o que aconteceu. O debate em si faz lembrar os jogos do Benfica da época passada, quando tudo se resolvia (e mal) nos descontos. Quando o debate acabou - sem grande história, por sinal - Carmona Rodrigues foi direito a Manuel Maria Carrilho de mão estendida. E assim ficou, de mão no ar, porque Carrilho passou por ele num ápice, rumo aos bastidores da SIC. Foi aí que a câmara de reporta- gem apanhou a voz de Carmona a dizer "que grande ordinário". E foi aí que o debate, em si, nunca mais mereceu um segundo de atenção. O que se discutiu daí para a frente foi esta sequência, analisada em slow motion como se faz nos programas de futebol. Analisou--se, analisou-se, analisou-se. Mas a conclusão foi só uma: Carmona ganhou, Carrilho perdeu. Ou melhor, perdeu-se.

UM DEBATE INCÓMODO 2006

bruno rascão

Foi uma campanha cheia de regressos. O regresso de Cavaco Silva não foi propriamente surpreendente. Derrotado em 1996 por Jorge Sampaio, era quase certo que ia tentar a sua sorte passados dez anos. E era quase certo que ia ganhar, o que mudou a vida de muita gente, virou o PS do avesso e deu cabo de amizades com algumas décadas. Dizer que Cavaco foi o responsável por isso tudo é relativamente injusto, porque o autor de tanta mudança foi outro regressado: Mário Soares. Foi a primeira vez que um ex-Presidente tentou a terceira eleição. Ramalho Eanes já tinha sido tentado a isso em 1996 mas recusou. Soares não precisou de ser tentado, tratou do assunto sozinho. Disse a Sócrates que ia avançar, o que condicionou o PS e deixou Alegre em fúria. Quando Soares e Alegre se encontraram, a audiência estava à espera de reviver o Soares-Zenha de 1985. Em vão. Não foi um debate inesquecível, mas merece estar nestas páginas, porque debates entre ex--amigos são sempre um programa que os espectadores não perdem. Houve acusações azedas, insinuações sobre quem era mais anticavaquista, piadas sobre a idade dos candidatos (Soares referiu os "jubilosos 70 anos" de Alegre) e um esforço contínuo de mostrar diferenças onde, afinal, não havia diferenças. Mas foi um interessante debate político, com um vencedor ausente. Ao contrário do que se passou em 1985, em que os debates com Zenha e Pintasilgo iam ajudar Soares a derrotar Zenha, aqui o fim ia ser outro.

UMA LIÇÃO DE TELEVISÃO 2009

tiago miranda

Se alguém quer estudar um debate, pode começar por este. É uma "introdução" ligeiramente cínica, mas de uma eficácia absoluta. Frente a frente, dois dos mais eficazes políticos portugueses, peixes na água no aquário televisivo, agressivos q.b. e com uma longa história de desacatos parlamentares. Vale a pena atender ao contexto: Sócra tes tinha perdido as europeias, estava numa posição de fraqueza e foi obrigado a fazer debates em frente a frente com todos. O debate com Ferreira Leite era o mais importante, mas correu como previsto. Com Jerónimo idem. Com Portas não correu tão bem, mas tinham pouco eleitorado a disputar. Louçã era, talvez, o adversário mais difícil, pronto a "engolir" a ala esquerda do eleitorado socialista, pouco contente com a governação de direita (sim, isso mesmo) de Sócrates. O então primeiro-ministro ia para a televisão da mesma forma com que enfrentava os debates parlamentares. Os seus assessores estudavam os adversários, previam as perguntas e as respostas e liam todos os documentos disponíveis. Foi isso que mudou a história deste debate, em que Francisco Louçã acabou por ir ao tapete. Conta--se numa penada: o Bloco tinha no seu programa a promessa de restringir os benefícios fiscais para despesas com educação e saúde (entre outras); Sócrates leu esse parágrafo e disse que era um ataque sem precedentes à classe média; Louçã tentou explicar a racionalidade da medida, mas estava perdido. Sócrates nunca mais largou o assunto e o Bloco ficou com fama de querer atacar a classe média, em matérias essenciais. Incrivelmente, Louçã não estava preparado para este ataque. Demorou tempo a recompor-se e a perceber onde estava metido. Incrivelmente, quando Sócrates foi reeleito acabou por adotar as medidas que o Bloco preconizava na campanha. Mas isso foi muito depois dessa noite...

As dores da reeleição (sob a sombra do BPN) 2011

Tiago Miranda

Não foi a primeira vez que se encontraram frente a frente, mas foi tudo diferente. Cinco anos antes, em 2006, Manuel Alegre era o challenger do sistema, o candidato que aparecia contra Cavaco, mas acima de tudo contra Soares (que, por acaso, é que tinha aparecido contra Alegre...) e que era novidade numas presidenciais razoavelmente previsíveis. Em 2011, muita coisa tinha mudado: Alegre era candidato oficial do PS e do Bloco, Cavaco jogava tudo na reeleição e as novidades passavam pelo errático Fernando Nobre, por um inusitado Defensor Moura e pela excentricidade de José Manuel Coelho. O debate mais divertido teve como protagonistas Francisco Lopes (e a célebre frase "E o meu minuto? Quero o meu minuto!") e Fernando Nobre, com uma metáfora sobre uma galinha que fugia com "um pedacito de pão no bico". O debate mais radical pôs frente a frente Cavaco e Defensor Moura, que quis discutir o BPN do princípio ao fim. A grande questão que dividia a campanha de Alegre era até que ponto o candidato devia ir no caso BPN. Manuel Alegre foi instruído para isso, tinha lição estudada, mas o debate que vimos mostrou uma versão bem diferente. Alegre não fugiu ao tema, mas não fez disso "o" tema. O peso institucional foi óbvio. Manuel Alegre não quis imitar Defensor Moura e muito menos José Manuel Coelho (que fez a célebre rábula do "Coelho na casa da Coelha") e optou pela sua própria campanha. Afinal de contas, era a segunda vez que se defrontavam e o respeito era público e mútuo. Vantagens e desvantagens de quem tem muita experiência televisiva e já perdeu debates, como aconteceu a Cavaco contra Sampaio em 1996, da primeira vez que tentou chegar a Belém.

Sócrates v.s. Passos, o fim de um ciclo 2011

José carlos carvalho

Este debate devia estar disponível nos videoclubes dos distribuidores de televisão. Não porque seja o melhor nem o mais épico, nem porque tenha algum golpe de teatro ou momentos extraordinários. Mas porque é o último que vimos. O Sócrates/Passos é o último exemplar de uma espécie que se deu bem em Portugal mas que teve morte súbita. Podia ter sido um debate melhor? Talvez, mas ainda assim foi um grande debate, com José Sócrates a mostrar as suas qualidades televisivas, apesar de estar certo da derrota. O ex-líder socialista era muito mais eficaz quando sabia que ia ganhar (Sócrates/Santana de 2005) ou quando sabia que tinha que ganhar (Sócrates/Ferreira Leite ou Sócrates/Louçã de 2009). A certeza da derrota não animava especialmente, mas o chumbo do PEC IV, o resgate da troika e um adversário assumidamente liberal eram carburante suficiente. Nessa altura, José Sócrates já sabia que ia para Paris, mas o jogo ainda não tinha terminado. Pedro Passos Coelho não era especialmente treinado em debates televisivos. Mas tinha tudo a seu favor e soube aproveitar isso muito bem. No fundo, o seu papel passava por segurar uma vantagem conquistada nos meses anteriores, à medida que o governo Sócrates se desfez e perdeu credibilidade externa e interna. Passos não cometeu um único erro, usou as frases-chave nos momentos certos, disse ao que vinha e não escondeu o seu programa de transformação da economia. Nos impostos, a história é outra, como todos sabemos. Sócrates não precisava de grande treino, já vinha embalado. Passos Coelho tinha os melhores brasileiros a trabalhar com ele, trazidos por Miguel Relvas para ajudar a campanha. Não eram brasileiros do estilo dos que tinham aconselhado Santana quatro anos antes. Aqui a regra era simples e passava por explorar fraquezas e contradições do adversário e culpá-lo pelo resgate. Sócrates era um alvo fácil e Passos o candidato certo para o atacar. Com uma frieza exemplar e sem nunca se exaltar, o líder do PSD deixou o tempo correr e nunca saiu do seu guião. Assumiu um ar professoral, falou de Finanças com segurança e atacou com eficácia: "o senhor tem que parar de fazer fantasias a Portugal" ou "não sei porque é que o senhor se está a rir, eu estou muito preocupado com este assunto", são pequenas pérolas que perpassam por um debate dominado por temas orçamentais e por uma palavra que se colava a quem a dizia e a quem a ouvia: bancarrota.

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