O Estado baby-sitter e a liberdade de escolha

27-07-2018
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O Estado baby-sitter e a liberdade de escolha

Mário Amorim Lopes

ago

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Possivelmente inspirado pela rentrée política da coligação, Paulo Trigo Pereira disserta sobre a liberdade de escolha na sua crónica no Público. Faz um enquadramento genérico do tema e contextualiza-o à luz da filosofia política. Evoca pensadores como Nozick, Isaiah Berlin ou Rawls. Até Kant. E no fim decreta que, na ausência de «níveis de instrução, de rendimento, de saúde, de liberdades cívicas e políticas adequadas», não estão reunidas as condições para que os portugueses possam beneficiar de liberdade de escolha.O artigo é interessante, introduzido com o decoro e a seriedade intelectual que questões tão prementes exigem. Mas erra no busílis do seu argumento — já existe liberdade de escolha em Portugal, com ou sem aquilo que Paulo Trigo Pereira considera serem os requisitos mínimos. Está é vedada aos mais pobres, sendo apanágio exclusivo dos mais ricos. Senão vejamos. Se as escolas públicas na periferia da sua residência não têm os níveis de qualidade que lhe parecem adequados para prover uma boa educação aos seus filhos, e caso seja rico, pode sempre optar por inscrevê-los num colégio privado. É aliás esclarecedor que tantos socialistas, paladinos da defesa da escola pública, ou assim se anunciam, tenham os seus filhos em escolas privadas. Por exemplo, os filhos de António Costa estudaram no Colégio Moderno, pertencente à família de Mário Soares, e que, em 2007, ocupou o 9º lugar do ranking nacional.Mas há mais exemplos onde existe liberdade de escolha. Mesmo tendo acesso a um Serviço Nacional de Saúde tendencialmente gratuito, financiado através de impostos, uma parte considerável da população opta por subscrever um seguro de saúde privado que lhe permita escolher onde obter cuidados de saúde, pese embora o esforço financeiro acrescido. Uma vez mais, uma facilidade apenas acessível a cidadãos ricos. De forma análoga, os funcionários públicos, mediante inscrição na ADSE, um subsistema de saúde exclusivo do sector público, também dispõem de ampla liberdade de escolha nos cuidados de saúde. Podem optar entre o SNS ou um qualquer outro prestador de cuidados de saúde. Curiosamente, da última vez que Mário Soares esteve internado, este optou por ir para o Hospital da Luz, do grupo Espírito Santo Saúde, em detrimento do SNS. Uma vez mais, uma liberdade apenas para alguns.A liberdade de escolha existe, e bem. O que se exige é que esta seja democratizada, e que mais portugueses, para além dos abastados, possam beneficiar dela. Uma família pobre que resida num bairro social rodeado por escolas públicas com um mau ranking está forçada a inscrever os seus filhos nessas mesmas escolas, hipotecando o seu futuro e perpetuando o círculo vicioso da pobreza. E fá-lo enquanto os socialistas, que apregoam as virtudes da escola pública, inscrevem os seus filhos nas melhores escolas privadas do país. De igual forma, um português pobre é forçado a aguardar meses pela marcação de uma consulta, e a esperar horas para ser atendido numa urgência de um hospital público. A questão que se coloca é porquê que os mais pobres não poderão almejar a inscrever os seus filhos nas melhores escolas do país, proporcionando-lhes oportunidades idênticas às que os mais abastados beneficiam, ou a procurarem cuidados de saúde num hospital privado? Porque deverão os colégios privados ser um benefício exclusivo para os mais ricos?Garantir que todos os portugueses têm acesso aos melhores cuidados de saúde, privados ou públicos, e à melhor educação, privada ou pública, é um imperativo categórico, na acepção kantiana do termo. Democratizar a liberdade de escolha é, portanto, um garante da justiça social, conceito tão caro a Rawls. E é-lo sem violar a liberdade individual. Pelo contrário, promovendo-a. A interferência do Estado em matéria de direitos negativos tal como definidos por Berlin — direitos que não pressupõem um dever, uma obrigação, por parte de terceiros — é, mais do que coercivo, uma intromissão na vida dos cidadãos. Pressupõe uma postura paternalista do Estado, de baby-sitter, em que o cidadão é incapaz de tomar decisões, pelo que deverá o Estado tomá-las por ele. Mais ainda, a democratização da liberdade de escolha introduz concorrência e competição, motores da inovação e garantes da eficiência. Por exemplo, seria assim possível identificar de forma precisa as piores escolas, aquelas de onde as famílias fogem, e agir em conformidade.Paulo Trigo Pereira evoca a questão das desigualdades sociais como travão à liberdade de escolha, mas o argumento parece estar invertido. Ao limitarmos a liberdade e a acção dos mais pobres, diminuímos as suas chances de saírem do círculo vicioso da pobreza. A liberdade de escolha é, mais do que a promoção da eficiência económica e do bem-estar, uma obrigação moral para com estes. Não permitamos que a cegueira ideológica continue a privar os que já estão mormente privados de melhor saúde e melhor educação: os mais pobres. Já os prejudicamos o suficiente, não prejudiquemos também os seus filhos.

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Categorias: Política, Portugal, PS, Socialismo

Etiquetas: Coligação PSD/CDS, Liberalismo, Liberdade de escolha

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Mário Amorim Lopes

ago

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Possivelmente inspirado pela rentrée política da coligação, Paulo Trigo Pereira disserta sobre a liberdade de escolha na sua crónica no Público. Faz um enquadramento genérico do tema e contextualiza-o à luz da filosofia política. Evoca pensadores como Nozick, Isaiah Berlin ou Rawls. Até Kant. E no fim decreta que, na ausência de «níveis de instrução, de rendimento, de saúde, de liberdades cívicas e políticas adequadas», não estão reunidas as condições para que os portugueses possam beneficiar de liberdade de escolha.O artigo é interessante, introduzido com o decoro e a seriedade intelectual que questões tão prementes exigem. Mas erra no busílis do seu argumento — já existe liberdade de escolha em Portugal, com ou sem aquilo que Paulo Trigo Pereira considera serem os requisitos mínimos. Está é vedada aos mais pobres, sendo apanágio exclusivo dos mais ricos. Senão vejamos. Se as escolas públicas na periferia da sua residência não têm os níveis de qualidade que lhe parecem adequados para prover uma boa educação aos seus filhos, e caso seja rico, pode sempre optar por inscrevê-los num colégio privado. É aliás esclarecedor que tantos socialistas, paladinos da defesa da escola pública, ou assim se anunciam, tenham os seus filhos em escolas privadas. Por exemplo, os filhos de António Costa estudaram no Colégio Moderno, pertencente à família de Mário Soares, e que, em 2007, ocupou o 9º lugar do ranking nacional.Mas há mais exemplos onde existe liberdade de escolha. Mesmo tendo acesso a um Serviço Nacional de Saúde tendencialmente gratuito, financiado através de impostos, uma parte considerável da população opta por subscrever um seguro de saúde privado que lhe permita escolher onde obter cuidados de saúde, pese embora o esforço financeiro acrescido. Uma vez mais, uma facilidade apenas acessível a cidadãos ricos. De forma análoga, os funcionários públicos, mediante inscrição na ADSE, um subsistema de saúde exclusivo do sector público, também dispõem de ampla liberdade de escolha nos cuidados de saúde. Podem optar entre o SNS ou um qualquer outro prestador de cuidados de saúde. Curiosamente, da última vez que Mário Soares esteve internado, este optou por ir para o Hospital da Luz, do grupo Espírito Santo Saúde, em detrimento do SNS. Uma vez mais, uma liberdade apenas para alguns.A liberdade de escolha existe, e bem. O que se exige é que esta seja democratizada, e que mais portugueses, para além dos abastados, possam beneficiar dela. Uma família pobre que resida num bairro social rodeado por escolas públicas com um mau ranking está forçada a inscrever os seus filhos nessas mesmas escolas, hipotecando o seu futuro e perpetuando o círculo vicioso da pobreza. E fá-lo enquanto os socialistas, que apregoam as virtudes da escola pública, inscrevem os seus filhos nas melhores escolas privadas do país. De igual forma, um português pobre é forçado a aguardar meses pela marcação de uma consulta, e a esperar horas para ser atendido numa urgência de um hospital público. A questão que se coloca é porquê que os mais pobres não poderão almejar a inscrever os seus filhos nas melhores escolas do país, proporcionando-lhes oportunidades idênticas às que os mais abastados beneficiam, ou a procurarem cuidados de saúde num hospital privado? Porque deverão os colégios privados ser um benefício exclusivo para os mais ricos?Garantir que todos os portugueses têm acesso aos melhores cuidados de saúde, privados ou públicos, e à melhor educação, privada ou pública, é um imperativo categórico, na acepção kantiana do termo. Democratizar a liberdade de escolha é, portanto, um garante da justiça social, conceito tão caro a Rawls. E é-lo sem violar a liberdade individual. Pelo contrário, promovendo-a. A interferência do Estado em matéria de direitos negativos tal como definidos por Berlin — direitos que não pressupõem um dever, uma obrigação, por parte de terceiros — é, mais do que coercivo, uma intromissão na vida dos cidadãos. Pressupõe uma postura paternalista do Estado, de baby-sitter, em que o cidadão é incapaz de tomar decisões, pelo que deverá o Estado tomá-las por ele. Mais ainda, a democratização da liberdade de escolha introduz concorrência e competição, motores da inovação e garantes da eficiência. Por exemplo, seria assim possível identificar de forma precisa as piores escolas, aquelas de onde as famílias fogem, e agir em conformidade.Paulo Trigo Pereira evoca a questão das desigualdades sociais como travão à liberdade de escolha, mas o argumento parece estar invertido. Ao limitarmos a liberdade e a acção dos mais pobres, diminuímos as suas chances de saírem do círculo vicioso da pobreza. A liberdade de escolha é, mais do que a promoção da eficiência económica e do bem-estar, uma obrigação moral para com estes. Não permitamos que a cegueira ideológica continue a privar os que já estão mormente privados de melhor saúde e melhor educação: os mais pobres. Já os prejudicamos o suficiente, não prejudiquemos também os seus filhos.

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