“Não tenho os valores tradicionais da direita. Não sou pateta!”

04-01-2017
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O passado e a forma como a ele sobrevivemos pode explicar melhor quem somos. Aos 81 anos, a economista e autora Helena Sacadura Cabral desvela sobre a sua vida na obra autobiográfica “Memórias de Uma Vida Consentida”. A mãe dos irmãos Portas, Paulo e Miguel, recebe-nos no seu apartamento, na Lapa, onde o Tejo e os cacilheiros parecem chegar à janela. Durante duas horas revela a origem burguesa, a educação austera, como vingou num mundo de homens, quando era esperado que fosse apenas uma senhora bem casada. Ou como superou um divórcio que a fez recorrer à psicanálise. Entre os vários quadros na sala, destaca-se um em que Helena está desenhada a óleo, melancólica, grávida do filho Miguel, uma obra do pintor Nikias Skapinakis. No escritório, do lado direito do computador, tem os retratos dos dois homens que mais amou. Do lado do coração, estão os retratos dos filhos. O falecimento do filho Miguel Portas foi um duro golpe. Valeu-lhe a fé, a família, os amigos e o trabalho. Para seguir em frente e nunca deixar de fazer nada que lhe apeteça. Tal como lhe pediu Miguel.

Porque é que decidiu só agora escrever sobre o passado?

Achei que talvez valesse a pena explicar como uma vida se constrói. Se o Miguel não tivesse morrido não sei se este livro seria algum dia escrito...

E se o Paulo não tivesse saído da cena política?

Também não. Esse livro estava todo na minha cabeça. Não o tinha escrito até agora, de facto, para proteger os meus dois filhos, duas figuras públicas. Embora apenas mencione quatro nomes: O Paulo [Portas], o Miguel [Portas], a Maria Nobre Franco e a Maria Velho da Costa, que é madrinha do Paulo. Não há mais nomes. Cheguei a uma altura da vida em que posso falar de mim sem nenhuma espécie de pudor que não seja aquele que me impõe o facto de ser conhecida e ter dois filhos conhecidos.

Os seus filhos tinham-lhe pedido para não publicar as suas memórias antes de saírem da cena política?

Não. Eles nem sabiam que iria fazê-lo. Aliás, os meus filhos foram sempre impecáveis nisso. Não se metem. Nunca dou os meus livros a ler aos meus filhos, nada.

Alguém da família leu este livro de memórias antes de ser publicado?

Nada. Ninguém. A não ser a editora e vocês [jornalistas].

Não pediu autorização aos visados?

Não. Eu não falo deles. Falo do meu marido, do amigo A e B. Isto é a minha vida, por onde passaram pessoas várias. Mas se tivesse que pedir autorização de tudo aquilo que fiz ou escrevo, estava servida.

Estes escritos são uma espécie de catarse de episódios complicados por que passou? Como o divórcio e a morte do seu filho Miguel Portas?

A morte do Miguel foi um ponto de partida para valorar a vida de uma forma muito diferente. E de dar muito pouca importância ao que os outros que não conhecemos pensam a nosso respeito. Os que conhecemos ficam-nos a conhecer de outra maneira.

Conta que em menina teve uma educação austera, conservadora, católica. Mas que se rebelou muito cedo quando decide estudar economia contra a vontade do seu pai...

Ele queria que eu casasse com um homem de bem, de dinheiro, inteligente, que soubesse apreciar as minhas qualidades. Mas ensinou-me coisas que me foram úteis, o francês que falo como uma primeira língua. Coitadinho... quis que aprendesse piano, mas sou de facto uma negação. A professora de piano disse ao meu pai: “Senhor doutor, não insista. Não vale a pena!” E depois fez uma coisa muito importante até ao aparecimento do meu marido, deu-me a cultura dos clássicos. Eu detestava o “Navio Fantasma” [ópera de Richard Wagner] e o meu pai dizia-me: “Ouve, filha, ouve, porque quando começares a ouvir vais gostar.” Hoje gosto muitíssimo. O meu pai tinha carradas de razão. Educa-se o ouvido ouvindo, educa-se a cabeça lendo, educa-se a escrita lendo muito. Aliás, por muitas vezes ele vem-me à memória [emociona-se].

Terá tido menos razão quando não quis que prosseguisse os estudos...

Sim. Mas às tantas disse-me: “Ao menos segue um dos cursos da família, Direito.” Não quis. Preferi Economia. Ele então disse-me: “Tratas da tua vida que eu trato da tua alimentação.”

É quando consegue uma bolsa de estudo.

Sim, concorri a uma bolsa, que ganhei, e dei explicações aos 13 anos. Ganhava 25 tostões à hora. Era a primeira moeda nobre a seguir aos 10 tostões. Entrei na faculdade com 15 anos, fui a melhor aluna do curso.

Nesses tempos não era costume uma mulher destacar-se no meio universitário...

Pois não. Ainda mais na área de economia. Repare, há 70 anos, no instituto onde eu andei quase não havia mulheres. Seríamos umas cinco ou seis. E depois, ou seguia a via de ensino, ou provava ser muito boa e podia ser que alguém me convidasse para outra coisa. Assim foi. Acabei o curso num dia e, três dias depois, fui convidada para ingressar na comissão de coordenação económica.

No contexto onde cresceu era mais esperado que se cingisse a ser uma dona de casa exemplar.

Mas tive uma mãe especial, que me dizia: “Cuca, nunca dependas de um homem! Se fores independente constróis a felicidade.”

Algo que seguiu à risca. Escreveu também que a sua mãe um dia lhe disse — duvidando da sua futura silhueta — ‘quando uma mulher não tem físico, importa que tenha cabeça’. Isso marcou-a?

Marcou-me. A minha mãe incentivava-me a estar no quadro de honra. Dizia-me: “Em tudo o que faças, sê a melhor.” E comentava com graça: “aperta o nariz Cuca, que tens o nariz de Sacadura [Cabral], aperta, aperta, que isso não é do lado Trindade.” [risos] Dizia tudo o que tinha a dizer com o seu sentido de humor. As mulheres da família eram lutadoras, mas incapazes de guerrear pela hostilidade. Em casa dos meus avós não havia discussões. Se acredito no casamento é por causa dos meus avós. E da minha mãe e do meu padrasto.

A sua mãe encontrou o grande amor num segundo casamento?

Sim. O meu pai era 17 anos mais velho do que a minha mãe e divorciaram-se. A minha mãe veio a casar depois, aos 31, com um homem dez anos mais novo. O que foi revolucionário. Foram 48 anos de um casamento fabuloso com o meu padrasto. Quando a minha mãe morreu, a primeira coisa que quis foi que ele viesse viver comigo.

Foi como um pai?

Ele nunca quis ser nosso pai. Mas foi sempre o nosso melhor amigo. A pessoa que estava presente em todas as decisões difíceis, na retaguarda.

Conta que o seu padrasto era vosso vizinho e que a Helena e o seu irmão o tinham conhecido antes mesmo da vossa mãe, porque iam brincar para o quintal dele.

É verdade. Nós e os miúdos daquela redondeza andávamos sempre na ‘cavalice’ naquele quintal que bordeava a nossa casa. E um dia a minha mãe achou por bem, pelo Natal, presenteá-lo com uma bola [de carne]. Uma oferta para ele e para os outros rapazes. Eram um grupo de estudantes que alugavam uma casa para estudar, era uma república. O meu padrasto estudava medicina, outro estudava direito e por aí fora. Nós saíamos do colégio, lanchávamos na [casa da] avó Joana e ‘pimba’ para o quintal dos rapazes. Foi assim que a minha mãe conheceu o meu padrasto. É uma linda história de amor de onde nasceu um queridíssimo irmão, o mais novo.

Foi no segundo ano de universidade que descobriu a arte da sedução...

Eu entrei com 15 anos na faculdade. Era uma miúda de laços e tranças, soquetes e, de um ano para o outro, mudei... Os meus colegas que usavam capa e batina estenderam as capas [aos meus pés] para gozarem comigo.

Sobre essa fase escreveu “Nascia assim a lenda da Helena Sacadura Cabral. Que em determinada altura gozou da fama de ser uma das mais jovens atraentes de Lisboa”. O que a levou a afirmar isto?

[risos] Na altura não tinha a consciência disso. Nós avaliamo-nos sempre com alguma parcimónia, senão somos tontas. Tinha a noção que o mais importante de mim não era o exterior, era o interior. Mas fazia por me alindar. E fui conseguindo. Bem mais tarde, várias pessoas, homens entenda-se, disseram-me: “Tu eras das mulheres janotas de Lisboa.”

Teve muitos pretendentes?

Gabo-me de ter tido muitos e inteligentes. Mas tinham medo de mim. Porque era a melhor aluna. E isso impunha respeito. Dá muito trabalho uma mulher inteligente. Os homens gostam de admirar uma mulher assim, mas não gostam de a levar para casa. No fundo, nessa época namorei dois homens e tive um coup de foudre [paixão súbita] por outro.

De todos os amores, a maior referência afetiva é a do arquiteto Nuno Portas, pai dos seus filhos, de quem se divorciou há mais de 50 anos. Foi o grande amor da sua vida?

Foi seguramente a pessoa mais importante da minha vida. Esse homem faz parte integrante das minhas células. É como se você tivesse qualquer coisa que, quando acaba, guarda num cofre e ninguém mexe. O Nuno Portas ocupou um lugar que ninguém mais ocupou. O Nuno encantava-me pela criatividade, pela cultura, pelo que me ensinava. Ainda hoje quando vou a Barcelona ainda a vejo pelos olhos do Nuno Portas. Ele ensinou-me a ver as cores, os volumes, ensinou-me o jazz.

A Helena de hoje ainda tem muito do que aprendeu com Nuno Portas?

Sim, ainda tenho hoje muito desses dez anos de vivência com ele. Claro que me construí com muitas outras pessoas, gente do teatro, da música, da economia, da política. A relação que tive com o Nuno não me inibiu de gostar de outras pessoas. Mas o que tive com ele foi único.

Mas não é isso que é o amor da vida?

O homem de quem desejei ter filhos foi o Nuno. Isso diz tudo. Mas não lhe posso dizer que foram dez anos felizes...

Não foram?

Não. O amor é difícil. No fundo, o Nuno gostou de uma mulher que eu não era, devo ter dado sinais de que era essa mulher. Com a morte do Miguel tive uma perceção estranha de explicar que me fez compreender porque é que eu e o pai dos meus filhos não funcionámos.

A pessoas vivem a dor de uma forma muito diferente. No seu caso passou a encarar de outra maneira a vida e os amores passados?

O Miguel pediu-me antes de morrer: “Mãe, não deixe de fazer nada. Seja um exemplo daquilo que eu gostaria que continuasse a fazer.” O meu filho morreu a 24 de abril e eu, no dia 1 de maio, no dia dos anos dele estava na Feira do Livro a assinar livros. E não abandonei o féretro, durante todas as horas que demorou o funeral, com aquela multidão de gente. A morte do Miguel não teve intimidade, foi o contrário daquilo que gostaria que fosse. O partido tomou conta da morte do Miguel. Fez disso uma bandeira. E nós [família] não fomos ouvidos praticamente para nada. Mas o Miguel permitiu-lhes isso. E como lhes permitiu, tenho que aceitar. Não voltaria a acontecer, porque não deixaria. A morte de um filho vive-se na intimidade.

Ele tinha muitos amigos chegados no partido, o Bloco de Esquerda.

Tinha. O partido era uma segunda família. O Miguel é um bom exemplo do meu ódio pela política. Aliás, o pai dos meus filhos e o Miguel constituem a grande razão para odiar a política. Quando conheci o Nuno ele não tinha o envolvimento na política que depois veio a ter. Ainda tive uns mesesinhos em que sonhava harmonia. Só que, infelizmente, ele foi para o ateliê do arquiteto Nuno Teotónio Pereira, em que a política passava do risco do papel às reuniões. Deixei de ter um marido...

Nuno Portas é considerado por muitos um sedutor, um homem dado a grandes paixões. Foi também essa característica que os afastou?

[ri-se] Foi. Não quero falar muito disso, porque há uma pessoa que amo muito que é produto dessa vida aventurosa, a Catarina [Portas]. Na altura da separação, chegada aos 30 anos, não estava disposta a não perceber o que se tinha passado. O nascimento da Catarina não deveria ser a justificação para o divórcio.

Não foi isso que os separou?

Teria sido perfeitamente capaz de dar licença para perfilhar a Catarina e continuar casada com um homem que tinha tido uma filha [fora do casamento]. A Catarina é uma peça gregária, que une, não afasta. Ela veio para minha casa quando tinha seis meses... Os irmãos adoravam a Catarina, mesmo quando se pegavam com ela. O que é original na nossa família, e isso dá-me uma grande tranquilidade, é a ternura que existe entre nós os quatro. Eu e os três filhos. Uma não é minha...

Chama a Catarina de filha?

Chamo. E considero uma filha. Sou a mãe dos irmãos e uma pessoa que ela sabe que gosta muito dela. E não deixarei de, quando fechar os olhos, a considerar como filha... [emociona-se]. Mas o que esteve na base do nosso divórcio não foi isso, foi realmente estarmos a caminhar em sentidos opostos. Continuei católica, ele deixou de ser. Ele foi para a política, eu não fui. Ele gostava de umas coisas, eu de outras.

Nuno Portas teve Jorge Sampaio como advogado a resolver o divórcio. A separação foi resolvida de forma justa?

Jorge Sampaio, esse rapaz simpático... Do ponto de vista do que Sampaio queria para o seu cliente correu bem. De uma forma justa? Não sei, porque deixei de contar com o pai dos meus filhos para o que quer que fosse. A pensão estava determinada, mas vinha com tal irregularidade que deixei de contar com ela. Algo que só ficou resolvido quando o Miguel foi viver com o pai.

Como era ser uma mulher divorciada nos anos 60 e 70?

Era complicado. As mulheres casadas tinham imenso medo das divorciadas. Com quem os maridos se podiam complementar. Estavam disponíveis. E eram as melhores amigas dos amigos. Tenho muito mais amigos do que amigas.

No campo profissional, tem sido uma mulher num mundo de homens. Passou pelo Ministério da Economia, pela aeronáutica civil, pelo ministério das comunicações e foi a primeira mulher nos quadros financeiros do Banco de Portugal. Este último feito deu-lhe a medida das suas capacidades profissionais?

O primeiro passo nesse sentido foi ter trabalhado na aeronáutica civil. Entrei um bocadinho antes de me separar, onde tirei o brevet para pilotar aviões que me permitiu falar com os pilotos de igual para igual. Quando entrei no Banco de Portugal senti que tinha vencido uma carga de batalhas e que não tinha que ter medo por ser a primeira mulher a fazê-lo. Depois entraram outras a seguir, como a Teodora Cardoso.

Como foi recebida entre os pares?

Talvez fosse um bocadinho bonitinha demais para o que eles gostavam.

Foi assediada?

Nunca tive assédios, nem avanços nenhuns, até me sinto um bocadinho complexada. [risos] Sempre me trataram com seriedade. Cedo tive a noção que não era justo que ser mulher fosse impeditivo para se alcançar um cargo, e que não tinha nada que me comportar como um homem. Se durante uns tempos usei calças, era para subir aos aviões, mas ia com as unhas pintadas e tudo o resto. Gosto da diferença.

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E teve dois filhos muito diferentes. Costuma dizer que o Miguel saiu mais a si e que o Paulo saiu ao pai. Porém, as pessoas identificam-na mais com o Paulo, mais educado por si, que é de direita, como a Helena...

De direita, eu? Dá-me imensa vontade de rir. Tenho o aspetozinho de uma mulher de direita. Acha que uma mulher que aos 80 anos trabalha como eu trabalho, que respeita os valores que respeito, em que primeiro estão aqueles que têm menos, é de direita? As pessoas que a gente hoje identifica como de direita não reconhecem muitas dessas coisas. Há uma direita elitista, como há uma esquerda elitista tramada, a chamada esquerda caviar, que tem exatamente as mesmas coisas que tenho. Nunca ocupei cargos públicos que não fossem por concurso, nada na minha vida se fez sem trabalho. Quem é que encontram na esquerda assim? O Jerónimo [de Sousa] talvez. Estes rapazinhos de esquerda que estão no governo, chegaram lá como? Fizeram o seu percurso político...

Os seus filhos também fizeram um percurso político. O Miguel fez parte dessa esquerda...

Pois fizeram. E não foi do meu agrado. Graças a Deus o Paulo já não está [na política] e espero que não volte. Quanto a mim, não sou de direita, mas não sou de esquerda. Não tenho os valores tradicionais da direita. Não sou pateta! O Paulo cresceu mais comigo, mas é um tipo feito por si. Nós temos profundas divergências em determinadas coisas, sou pelas barrigas de aluguer, ele não é, sou pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo, ele não sei se é. Se me perguntar quem é que o Paulo tem como referência, dir-lhe-ei o Churchill.

E a mãe não é uma referência para o Paulo?

A mãe é uma pessoa de quem ele gosta e admira muito.

A Helena também fuma charutos como o Churchill...

De facto, fumo e pode ver ali uma fotografia minha a fumar charuto. Mas os meus valores não são os dele. O Paulo admira as minhas qualidades, mas acha que tem tantas ou mais do que eu. Mas isso qualquer um dos dois achava. Tanto o Miguel ou o Paulo não se achavam modestos. O Miguel disfarçava mais [risos].

Como eram os pequenos Miguel e Paulo?

O Miguel fazia as maiores rabinices possíveis ao Paulo. Atava-lhe um cordel à volta da cueca e prendia-lhe uma caixinha de fósforos com um pavio curto e dizia-lhe: “Agarra a caixa”. E o Paulo não conseguia. Também andavam à almofadada um com o outro. Mas, no meio disso tudo, eram muito amigos.

Nessa altura já se percebia em ambos a queda para a política?

Nos dois. O Paulo imitava um ministro qualquer da educação. Fazia impressão a maneira como o imitava tão bem. O Miguel começa a ligar-se à política com 10 anos. A distribuir papéis.

Que tipo de mãe era? Dura?

Duríssima. Ou se estudava ou se trabalhava. Havia uma regra: quem estuda e tem aproveitamento tem o direito a compensações, férias e tudo isso. O Paulo teve sempre jeito para gerir. Ele cedia um bocadinho, a mãe cedia um bocadinho. Ele era um bargaining [regateador]. O Miguel era mais ‘ou é como é, ou não é como é”. Eu sou da mesma maneira. ‘Então não é!’, dizia eu. Chocámos muitas vezes. Ele ‘rabinete’ e eu ordenava-lhe “sente-se aí um bocado sentado virado para a parede durante dez minutos”. Ele mais tarde saía da parede a dizer: “Sabe mãe, gostei imenso de estar na parede.”

Com que valores os educou?

Gastar menos do que aquilo que se tem. Não ostentar o que se tem nem quem se é. Passei horrores com o [apelido] Sacadura Cabral. Perguntavam-me na escola “O que é que a menina é ao Sacadura Cabral? É neta?” Respondia que era sobrinha. “Sobrinha neta?” Não, apenas sobrinha. “Sobrinha? Então quantos filhos eram?” Era uma lengalenga. Ensinei os meus filhos a um certo low-profile. A serem honestos. A pouparem. Neste último ponto não fui muito eficaz, porque nem o Miguel nem o Paulo são de poupanças. E os políticos, apesar do que dizem, não ganham o suficiente [para poupanças]. A não ser que sejam desonestos. E isso os meus filhos não são!

No livro confessa que a sua relação com o seu filho Miguel nunca foi fácil. E conta que logo aos 12 anos o Miguel decidiu ir viver para casa do pai...

Eu disse-lhe: “Aqui em casa ou se trabalha ou se estuda, Miguel. Andares a distribuir papéis do Partido Comunista não é nem estudo nem trabalho.”

Outra razão para essa saída de sua casa foi contada pelo Miguel na última entrevista dada ao Expresso. Relatou um episódio em que queria ir à missa de um certo padre progressista, que metia guitarradas. Consta que a Helena o proibiu de ir e o deixou de castigo. Ele acabou por fugir e deixou-lhe um bilhete: “Entre a mãe e Deus, escolho Deus.” Foi assim?

Esse episódio do padre estava relacionado com um dia em que queria ir à praia com os meus filhos de manhã. Por isso, ele não poderia ir a essa missa do padre progressista. E disse-lhe: “Tenho muita pena, mas do que tu precisas é da missa e não da missa do padre progressista.” Entretanto, fui tomar café e quando voltei sua excelência tinha saído e deixado esse papelinho a dizer que entre mim e Deus, escolhia Deus.

O que sentiu?

Senti que era parvo, completamente. E que só não levava um par de estalos porque não estava ali na altura. Mais tarde, quando nos voltámos a encontrar, já não lhe podia dar em diferido o par de estalos e disse-lhe: “Aqui em casa quem manda sou eu. Enquanto aqui viveres, vives com as minhas normas. Estás a estudar pouco, a contestar a minha autoridade e eu não estou muito contente com isso. Por isso vou-te pôr a trabalhar.” Ele pensou durante 24 horas e decidiu: “Vou para casa do meu pai.”

Custou-lhe?

Custou. Porque achei que estava a ser justa. E que [a partir daí] ele iria beneficiar de uma liberdade que lhe iria fazer mal.

Manteve essa ideia?

Sim. Ele casou com 18 anos. Sem a [outra] criatura estar grávida.

Sei que não foi ao casamento, mas que abriu a casa para os festejos...

Dei-lhe a festa. Não fui ao casamento porque achava que aquilo era uma fantasia lírica. Não compactuei. Como ainda hoje não vou a uma posse [de Estado] de um filho.

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É verdade que mandou o seu filho Paulo estudar um ano para Paris quando se deu o 25 de Abril?

Sim. Achei que ele cá não estudava nada.

Sobre isso Paulo Portas chegou a contar que a mãe considerava que não eram tempos para educar um adolescente em Portugal. Enquanto o país festejava a liberdade porque é que decidiu retirar o seu filho desse ambiente?

Sabe o que se passou a seguir ao 25 de Abril? Era uma balda. Olha-me a beleza. Nunca mais encontrava eixo. O PREC era um país fora de eixo. E, portanto, eu não queria um filho a estudar fora de eixo. Já me bastava o outro, que andava a distribuir papéis. Ainda bem que tivemos o 25 de Abril. Algo que me orgulho e que sinto muita alegria. Pena foi o que fizemos dele. Sobre estes 42 anos da chamada democracia tenho pena. Acho que o país sobre muitos aspetos perdeu qualidades.

Achou logo isso na altura?

Percebi que ia dar mau resultado. Mas tinha preparado antes a fuga do Miguel no tempo do Salazar e do Marcello Caetano. Tinha planeada a forma de o colocar lá fora [no estrangeiro] se corresse o risco de ser preso. Tinha preparado por onde saía, com quem saía, como teria o dinheiro.

O Miguel sabia desses planos de fuga que tinha para ele?

Não. Estava combinado entre mim e as pessoas que o iriam ajudar. Mas não mo prenderiam. Isso garanto-lhe eu.

É a mãe leoa a agir?

Sim. Estou atenta. E sou capaz de criar todas as condições para que quando vem a altura da aflição ela não exista.

A relação com o Miguel foi sempre assim, conflituosa?

Não. A partir dos 22 ou 23 anos a relação foi outra. O Miguel começou a pensar na vida de outra forma. Acabou o curso de Economia, a pulso. Com grande sacrifício meu. Passámos a ter uma área de conversa em comum — a economia. Muitos anos depois do meu divórcio, ele começou a ver em mim outras coisas. A maturidade dele ajudou.

O que pensou quando ele criou o Bloco de Esquerda?

[risos] Primeiro deu-me imensa vontade de rir quando ele criou a Plataforma de Esquerda. Pensei ‘qualquer dia apeia-se’. Uma plataforma só serve para duas coisas: Para uma pessoa apanhar um comboio ou para apear-se. Quando entrou no Bloco, fiquei a ver o que ia sair dali, que imaginava algo complicado. Devo dizer-lhe uma coisa: a morte do meu filho suavizou muito o meu relacionamento com algumas pessoas do Bloco. Gosto muito do Francisco Louçã, gosto muito do João Semedo e...

Nem sempre teve essa opinião favorável sobre Louçã...

Não. E ele sabe. Tinha-lhe um azar enorme. Achava-lhe um padre frustrado. Mas mudei completamente de opinião. O Francisco foi um grande amigo do Miguel, o que me sensibiliza muitíssimo. O João Semedo é um homem muito bom. Não pensamos da mesma forma, mas tenho-lhe uma ternura muito grande. Tanta que nunca mais tinha entrado no Instituto de Oncologia desde que o Miguel morreu e voltei para visitar o João.

É conhecida entre as pessoas que a conhecem como uma amiga generosa.

Isso acho que sou. [Emociona-se] Mas tenho amigos muito generosos, que não me largam. Numa aflição chamo mais depressa um amigo do que um filho. Porque não quero preocupá-lo. Não tenho as chaves de casa do meu filho e o meu filho não tem as chaves de minha casa.

O Miguel chegou a comentar em entrevista sobre a vossa relação: “Evito discutir [com a minha mãe]. Desaprendi de discutir. É melhor vermo-nos em doses homeopáticas. Fora disso, gostamos muito um do outro.”

É exatamente isso. Nós tínhamos uma zona em que entrávamos em conflito, que era a política, e sobre a qual evitávamos falar. Sempre prezei imenso a minha intimidade com os meus filhos, os jantares, o passear, o beijar, o dar a mão, o ir ao cinema. Para que é que havia de perder tempo a discutir com um filho sobre política? Só na altura das eleições. Se estavam a ficar tristes ou não. O resto é desprezo. O poder é a coisa mais afrodisíaca que há e é o que faz vir à superfície o que temos de pior. Porque não há poder sem autoridade e a autoridade é o exercício de uma tutela sobre alguém.

Viu o lado pior dos seus filhos na política?

Para já, eles eram melhores do que a maioria dos que conheço. Mas nunca gostei de ver os meus filhos na versão de políticos. Porque não gosto de política e acho que eles têm qualidades intelectuais que dariam carreiras brilhantes noutras atividades, com mais utilidade.

Chegou a ver a série americana “House of Cards” [Sobre os meandros da política, com Kevin Spacey e Robin Wright]?

Deus me livre. O meu filho Paulo disse “não percas o ‘House of Cards’, porque é uma série fabulosa”. Respondi-lhe: “O caraças!” O Paulo vê. Tudo o que seja séries políticas, o Paulo acompanha.

Votou alguma vez nos seus filhos?

Sim. Com grande dor de estômago, votei no Bloco de Esquerda para o Miguel ir para a União Europeia. Ui! O que me doeu. Custou-me. No Paulo também votei nas europeias, mas ele escolheu ficar na Assembleia em lugar de ir para a UE. Aí tem. Das duas vezes votei para irem para fora, para longe.

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Já foi convidada para cargos políticos?

Já. Muito convidada, muito assediada. Olhe, aí tem o assédio. Não foi sexual, mas foi político. E todos de esquerda.

Que partidos? PS, Bloco?

No Bloco chamavam-me um figo. Olhem, arranjámos uma de direita para defender os nossos valores.

Não aprecia nenhuma medida ou política tomada pelo Bloco de Esquerda? É a esquerda caviar de que falava há pouco?

Não. A esquerda caviar não é do Bloco. Mas do PS. O que tenho mais pena no Bloco é que se tenha tornado um partido de poder. Até estou de acordo com algumas medidas do Bloco. Por exemplo, o casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma medida fraturante, mas acho justa.

O Paulo discorda de si?

Em relação ao casamento é da mesma opinião. Em relação à adoção [por casais homossexuais] é que temos posições diferentes. Acho que um casal do mesmo sexo deve poder adotar uma criança. [Uma lei já em vigor] Prefiro uma criança adotada por duas mães ou por dois pais, do que institucionalizada. O que sei sobre o que o Paulo acha é o que vem nos jornais. O que às vezes não corresponde a nada. Por isso sou mãe de 20 Paulos. [Há um rumor que diz que] eu ‘tenho’ uma quinta do outro lado, que nem sei onde é, mas que me foi dada pelo meu filho Paulo... Inventam-se as coisas mais estranhas...

Esses e outros rumores que surgem sobre o Paulo não a incomodam?

Não vou ligar a rumores que sei que são falsos. É uma carapaça! Se eu não os conhecesse é que me podiam incomodar. Mas devo dizer que também há rumores sobre o Miguel.

Sejam rumores verdadeiros ou falsos não a perturbam?

Escorre como se fosse azeite. Nunca foi objeto de perda de um minuto de conversa entre nós.

A vida privada dos seus filhos nunca devia ser tema. É isso?

Eu não falo da vida privada com os meus filhos. Como posso admitir que os outros falem na vida privada deles? A que propósito? Mesmo assim, tinha talvez mais conversas nessa área com o Miguel do que com o Paulo. E chegava às vezes a dizer ao Miguel: “Não preciso de tantos pormenores!”

Passaram quatro anos sobre a morte do Miguel. Sei que é uma mulher de fé. Foi essa fé em Deus que a ajudou a superar a perda?

Eu precisava que a minha fé não fosse abalada. E o padre José Tolentino Mendonça passou-me força. Os filhos são um empréstimo de Deus!

Acredita num Deus redentor?

Acredito num Deus que foi crucificado para nos redimirmos. E acredito que o pior demónio que existe são os homens. Não acredito na figura do demónio, mas no demónio que existe em todos nós. Temos o livre arbítrio para fazermos o bem e o mal.

Acredita então no homem redentor.

Sim, mais do que num Deus redentor, acredito no homem redentor.

Para si é mais importante ser amada ou amar alguém?

Isso é uma grande pergunta. Tenho que lhe confessar que para mim é mais importante ser amada. Se tiver coragem, um dia ficarão a conhecer uma lindíssima história de amor que tive inesperadamente com uma pessoa estrangeira na idade madura. Foram 10 anos. Infelizmente ele já morreu. Ainda hoje falo com ele, como falo com o meu filho Miguel, ou a minha mãe e avó Joana. Para mim os mortos não estão mortos, senão fisicamente.

Tem 81 anos. Como encara o envelhecimento?

Da melhor forma. Estou bem contentinha de cá estar. É viver, não precisar de plásticas, não precisar de dizer que tenho menos 10 ou 15 anos. Algo que acho de uma ridicularia horrível. É aceitar as coisas. Costumo dizer às pessoas mais novas: “Tomara tu cá chegares.” [risos]

Pelo menos essa gargalhada não perde.

A vida é positiva para mim. Não tive nada gratuitamente. Mas acho que, entre o que paguei e aquilo que tenho, Nosso Senhor tem-me tratado bem.

A ideia de fim não a ensombra?

Porque é que haveria de me ensombrar? Gosto do outono e não tenho vocação para o masoquismo. Costumo dizer: ‘Convém-me não morrer à sexta-feira porque só darão por mim na segunda.’ Mas, como se diz no Alentejo, depois de morta cevada ao rabo. [forte gargalhada]

Termina este seu livro de recordações pela fase dos 50 anos. Porque é que deixou de contar os últimos 30 anos?

Espero contá-los a seguir. Depois dos 50 descobri tudo o que havia para descobrir. [ri-se] Há esperança para todos. No outro dia, o Paulo fez 54 anos e eu disse-lhe: “A tua mãe começou aos 50. Vê se aproveitas bem os 54 anos.” Ele, durante todo o período na política não aproveitou a vida. Há um hiato. Agora vai viver. E isso deixa-me muito satisfeita.

Acaba de recordar o que viveu. Como gostaria de ser recordada?

Que gaja porreira! Rigorosamente assim.

Artigo publicado na edição do EXPRESSO de 1 de outubro de 2016

O passado e a forma como a ele sobrevivemos pode explicar melhor quem somos. Aos 81 anos, a economista e autora Helena Sacadura Cabral desvela sobre a sua vida na obra autobiográfica “Memórias de Uma Vida Consentida”. A mãe dos irmãos Portas, Paulo e Miguel, recebe-nos no seu apartamento, na Lapa, onde o Tejo e os cacilheiros parecem chegar à janela. Durante duas horas revela a origem burguesa, a educação austera, como vingou num mundo de homens, quando era esperado que fosse apenas uma senhora bem casada. Ou como superou um divórcio que a fez recorrer à psicanálise. Entre os vários quadros na sala, destaca-se um em que Helena está desenhada a óleo, melancólica, grávida do filho Miguel, uma obra do pintor Nikias Skapinakis. No escritório, do lado direito do computador, tem os retratos dos dois homens que mais amou. Do lado do coração, estão os retratos dos filhos. O falecimento do filho Miguel Portas foi um duro golpe. Valeu-lhe a fé, a família, os amigos e o trabalho. Para seguir em frente e nunca deixar de fazer nada que lhe apeteça. Tal como lhe pediu Miguel.

Porque é que decidiu só agora escrever sobre o passado?

Achei que talvez valesse a pena explicar como uma vida se constrói. Se o Miguel não tivesse morrido não sei se este livro seria algum dia escrito...

E se o Paulo não tivesse saído da cena política?

Também não. Esse livro estava todo na minha cabeça. Não o tinha escrito até agora, de facto, para proteger os meus dois filhos, duas figuras públicas. Embora apenas mencione quatro nomes: O Paulo [Portas], o Miguel [Portas], a Maria Nobre Franco e a Maria Velho da Costa, que é madrinha do Paulo. Não há mais nomes. Cheguei a uma altura da vida em que posso falar de mim sem nenhuma espécie de pudor que não seja aquele que me impõe o facto de ser conhecida e ter dois filhos conhecidos.

Os seus filhos tinham-lhe pedido para não publicar as suas memórias antes de saírem da cena política?

Não. Eles nem sabiam que iria fazê-lo. Aliás, os meus filhos foram sempre impecáveis nisso. Não se metem. Nunca dou os meus livros a ler aos meus filhos, nada.

Alguém da família leu este livro de memórias antes de ser publicado?

Nada. Ninguém. A não ser a editora e vocês [jornalistas].

Não pediu autorização aos visados?

Não. Eu não falo deles. Falo do meu marido, do amigo A e B. Isto é a minha vida, por onde passaram pessoas várias. Mas se tivesse que pedir autorização de tudo aquilo que fiz ou escrevo, estava servida.

Estes escritos são uma espécie de catarse de episódios complicados por que passou? Como o divórcio e a morte do seu filho Miguel Portas?

A morte do Miguel foi um ponto de partida para valorar a vida de uma forma muito diferente. E de dar muito pouca importância ao que os outros que não conhecemos pensam a nosso respeito. Os que conhecemos ficam-nos a conhecer de outra maneira.

Conta que em menina teve uma educação austera, conservadora, católica. Mas que se rebelou muito cedo quando decide estudar economia contra a vontade do seu pai...

Ele queria que eu casasse com um homem de bem, de dinheiro, inteligente, que soubesse apreciar as minhas qualidades. Mas ensinou-me coisas que me foram úteis, o francês que falo como uma primeira língua. Coitadinho... quis que aprendesse piano, mas sou de facto uma negação. A professora de piano disse ao meu pai: “Senhor doutor, não insista. Não vale a pena!” E depois fez uma coisa muito importante até ao aparecimento do meu marido, deu-me a cultura dos clássicos. Eu detestava o “Navio Fantasma” [ópera de Richard Wagner] e o meu pai dizia-me: “Ouve, filha, ouve, porque quando começares a ouvir vais gostar.” Hoje gosto muitíssimo. O meu pai tinha carradas de razão. Educa-se o ouvido ouvindo, educa-se a cabeça lendo, educa-se a escrita lendo muito. Aliás, por muitas vezes ele vem-me à memória [emociona-se].

Terá tido menos razão quando não quis que prosseguisse os estudos...

Sim. Mas às tantas disse-me: “Ao menos segue um dos cursos da família, Direito.” Não quis. Preferi Economia. Ele então disse-me: “Tratas da tua vida que eu trato da tua alimentação.”

É quando consegue uma bolsa de estudo.

Sim, concorri a uma bolsa, que ganhei, e dei explicações aos 13 anos. Ganhava 25 tostões à hora. Era a primeira moeda nobre a seguir aos 10 tostões. Entrei na faculdade com 15 anos, fui a melhor aluna do curso.

Nesses tempos não era costume uma mulher destacar-se no meio universitário...

Pois não. Ainda mais na área de economia. Repare, há 70 anos, no instituto onde eu andei quase não havia mulheres. Seríamos umas cinco ou seis. E depois, ou seguia a via de ensino, ou provava ser muito boa e podia ser que alguém me convidasse para outra coisa. Assim foi. Acabei o curso num dia e, três dias depois, fui convidada para ingressar na comissão de coordenação económica.

No contexto onde cresceu era mais esperado que se cingisse a ser uma dona de casa exemplar.

Mas tive uma mãe especial, que me dizia: “Cuca, nunca dependas de um homem! Se fores independente constróis a felicidade.”

Algo que seguiu à risca. Escreveu também que a sua mãe um dia lhe disse — duvidando da sua futura silhueta — ‘quando uma mulher não tem físico, importa que tenha cabeça’. Isso marcou-a?

Marcou-me. A minha mãe incentivava-me a estar no quadro de honra. Dizia-me: “Em tudo o que faças, sê a melhor.” E comentava com graça: “aperta o nariz Cuca, que tens o nariz de Sacadura [Cabral], aperta, aperta, que isso não é do lado Trindade.” [risos] Dizia tudo o que tinha a dizer com o seu sentido de humor. As mulheres da família eram lutadoras, mas incapazes de guerrear pela hostilidade. Em casa dos meus avós não havia discussões. Se acredito no casamento é por causa dos meus avós. E da minha mãe e do meu padrasto.

A sua mãe encontrou o grande amor num segundo casamento?

Sim. O meu pai era 17 anos mais velho do que a minha mãe e divorciaram-se. A minha mãe veio a casar depois, aos 31, com um homem dez anos mais novo. O que foi revolucionário. Foram 48 anos de um casamento fabuloso com o meu padrasto. Quando a minha mãe morreu, a primeira coisa que quis foi que ele viesse viver comigo.

Foi como um pai?

Ele nunca quis ser nosso pai. Mas foi sempre o nosso melhor amigo. A pessoa que estava presente em todas as decisões difíceis, na retaguarda.

Conta que o seu padrasto era vosso vizinho e que a Helena e o seu irmão o tinham conhecido antes mesmo da vossa mãe, porque iam brincar para o quintal dele.

É verdade. Nós e os miúdos daquela redondeza andávamos sempre na ‘cavalice’ naquele quintal que bordeava a nossa casa. E um dia a minha mãe achou por bem, pelo Natal, presenteá-lo com uma bola [de carne]. Uma oferta para ele e para os outros rapazes. Eram um grupo de estudantes que alugavam uma casa para estudar, era uma república. O meu padrasto estudava medicina, outro estudava direito e por aí fora. Nós saíamos do colégio, lanchávamos na [casa da] avó Joana e ‘pimba’ para o quintal dos rapazes. Foi assim que a minha mãe conheceu o meu padrasto. É uma linda história de amor de onde nasceu um queridíssimo irmão, o mais novo.

Foi no segundo ano de universidade que descobriu a arte da sedução...

Eu entrei com 15 anos na faculdade. Era uma miúda de laços e tranças, soquetes e, de um ano para o outro, mudei... Os meus colegas que usavam capa e batina estenderam as capas [aos meus pés] para gozarem comigo.

Sobre essa fase escreveu “Nascia assim a lenda da Helena Sacadura Cabral. Que em determinada altura gozou da fama de ser uma das mais jovens atraentes de Lisboa”. O que a levou a afirmar isto?

[risos] Na altura não tinha a consciência disso. Nós avaliamo-nos sempre com alguma parcimónia, senão somos tontas. Tinha a noção que o mais importante de mim não era o exterior, era o interior. Mas fazia por me alindar. E fui conseguindo. Bem mais tarde, várias pessoas, homens entenda-se, disseram-me: “Tu eras das mulheres janotas de Lisboa.”

Teve muitos pretendentes?

Gabo-me de ter tido muitos e inteligentes. Mas tinham medo de mim. Porque era a melhor aluna. E isso impunha respeito. Dá muito trabalho uma mulher inteligente. Os homens gostam de admirar uma mulher assim, mas não gostam de a levar para casa. No fundo, nessa época namorei dois homens e tive um coup de foudre [paixão súbita] por outro.

De todos os amores, a maior referência afetiva é a do arquiteto Nuno Portas, pai dos seus filhos, de quem se divorciou há mais de 50 anos. Foi o grande amor da sua vida?

Foi seguramente a pessoa mais importante da minha vida. Esse homem faz parte integrante das minhas células. É como se você tivesse qualquer coisa que, quando acaba, guarda num cofre e ninguém mexe. O Nuno Portas ocupou um lugar que ninguém mais ocupou. O Nuno encantava-me pela criatividade, pela cultura, pelo que me ensinava. Ainda hoje quando vou a Barcelona ainda a vejo pelos olhos do Nuno Portas. Ele ensinou-me a ver as cores, os volumes, ensinou-me o jazz.

A Helena de hoje ainda tem muito do que aprendeu com Nuno Portas?

Sim, ainda tenho hoje muito desses dez anos de vivência com ele. Claro que me construí com muitas outras pessoas, gente do teatro, da música, da economia, da política. A relação que tive com o Nuno não me inibiu de gostar de outras pessoas. Mas o que tive com ele foi único.

Mas não é isso que é o amor da vida?

O homem de quem desejei ter filhos foi o Nuno. Isso diz tudo. Mas não lhe posso dizer que foram dez anos felizes...

Não foram?

Não. O amor é difícil. No fundo, o Nuno gostou de uma mulher que eu não era, devo ter dado sinais de que era essa mulher. Com a morte do Miguel tive uma perceção estranha de explicar que me fez compreender porque é que eu e o pai dos meus filhos não funcionámos.

A pessoas vivem a dor de uma forma muito diferente. No seu caso passou a encarar de outra maneira a vida e os amores passados?

O Miguel pediu-me antes de morrer: “Mãe, não deixe de fazer nada. Seja um exemplo daquilo que eu gostaria que continuasse a fazer.” O meu filho morreu a 24 de abril e eu, no dia 1 de maio, no dia dos anos dele estava na Feira do Livro a assinar livros. E não abandonei o féretro, durante todas as horas que demorou o funeral, com aquela multidão de gente. A morte do Miguel não teve intimidade, foi o contrário daquilo que gostaria que fosse. O partido tomou conta da morte do Miguel. Fez disso uma bandeira. E nós [família] não fomos ouvidos praticamente para nada. Mas o Miguel permitiu-lhes isso. E como lhes permitiu, tenho que aceitar. Não voltaria a acontecer, porque não deixaria. A morte de um filho vive-se na intimidade.

Ele tinha muitos amigos chegados no partido, o Bloco de Esquerda.

Tinha. O partido era uma segunda família. O Miguel é um bom exemplo do meu ódio pela política. Aliás, o pai dos meus filhos e o Miguel constituem a grande razão para odiar a política. Quando conheci o Nuno ele não tinha o envolvimento na política que depois veio a ter. Ainda tive uns mesesinhos em que sonhava harmonia. Só que, infelizmente, ele foi para o ateliê do arquiteto Nuno Teotónio Pereira, em que a política passava do risco do papel às reuniões. Deixei de ter um marido...

Nuno Portas é considerado por muitos um sedutor, um homem dado a grandes paixões. Foi também essa característica que os afastou?

[ri-se] Foi. Não quero falar muito disso, porque há uma pessoa que amo muito que é produto dessa vida aventurosa, a Catarina [Portas]. Na altura da separação, chegada aos 30 anos, não estava disposta a não perceber o que se tinha passado. O nascimento da Catarina não deveria ser a justificação para o divórcio.

Não foi isso que os separou?

Teria sido perfeitamente capaz de dar licença para perfilhar a Catarina e continuar casada com um homem que tinha tido uma filha [fora do casamento]. A Catarina é uma peça gregária, que une, não afasta. Ela veio para minha casa quando tinha seis meses... Os irmãos adoravam a Catarina, mesmo quando se pegavam com ela. O que é original na nossa família, e isso dá-me uma grande tranquilidade, é a ternura que existe entre nós os quatro. Eu e os três filhos. Uma não é minha...

Chama a Catarina de filha?

Chamo. E considero uma filha. Sou a mãe dos irmãos e uma pessoa que ela sabe que gosta muito dela. E não deixarei de, quando fechar os olhos, a considerar como filha... [emociona-se]. Mas o que esteve na base do nosso divórcio não foi isso, foi realmente estarmos a caminhar em sentidos opostos. Continuei católica, ele deixou de ser. Ele foi para a política, eu não fui. Ele gostava de umas coisas, eu de outras.

Nuno Portas teve Jorge Sampaio como advogado a resolver o divórcio. A separação foi resolvida de forma justa?

Jorge Sampaio, esse rapaz simpático... Do ponto de vista do que Sampaio queria para o seu cliente correu bem. De uma forma justa? Não sei, porque deixei de contar com o pai dos meus filhos para o que quer que fosse. A pensão estava determinada, mas vinha com tal irregularidade que deixei de contar com ela. Algo que só ficou resolvido quando o Miguel foi viver com o pai.

Como era ser uma mulher divorciada nos anos 60 e 70?

Era complicado. As mulheres casadas tinham imenso medo das divorciadas. Com quem os maridos se podiam complementar. Estavam disponíveis. E eram as melhores amigas dos amigos. Tenho muito mais amigos do que amigas.

No campo profissional, tem sido uma mulher num mundo de homens. Passou pelo Ministério da Economia, pela aeronáutica civil, pelo ministério das comunicações e foi a primeira mulher nos quadros financeiros do Banco de Portugal. Este último feito deu-lhe a medida das suas capacidades profissionais?

O primeiro passo nesse sentido foi ter trabalhado na aeronáutica civil. Entrei um bocadinho antes de me separar, onde tirei o brevet para pilotar aviões que me permitiu falar com os pilotos de igual para igual. Quando entrei no Banco de Portugal senti que tinha vencido uma carga de batalhas e que não tinha que ter medo por ser a primeira mulher a fazê-lo. Depois entraram outras a seguir, como a Teodora Cardoso.

Como foi recebida entre os pares?

Talvez fosse um bocadinho bonitinha demais para o que eles gostavam.

Foi assediada?

Nunca tive assédios, nem avanços nenhuns, até me sinto um bocadinho complexada. [risos] Sempre me trataram com seriedade. Cedo tive a noção que não era justo que ser mulher fosse impeditivo para se alcançar um cargo, e que não tinha nada que me comportar como um homem. Se durante uns tempos usei calças, era para subir aos aviões, mas ia com as unhas pintadas e tudo o resto. Gosto da diferença.

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E teve dois filhos muito diferentes. Costuma dizer que o Miguel saiu mais a si e que o Paulo saiu ao pai. Porém, as pessoas identificam-na mais com o Paulo, mais educado por si, que é de direita, como a Helena...

De direita, eu? Dá-me imensa vontade de rir. Tenho o aspetozinho de uma mulher de direita. Acha que uma mulher que aos 80 anos trabalha como eu trabalho, que respeita os valores que respeito, em que primeiro estão aqueles que têm menos, é de direita? As pessoas que a gente hoje identifica como de direita não reconhecem muitas dessas coisas. Há uma direita elitista, como há uma esquerda elitista tramada, a chamada esquerda caviar, que tem exatamente as mesmas coisas que tenho. Nunca ocupei cargos públicos que não fossem por concurso, nada na minha vida se fez sem trabalho. Quem é que encontram na esquerda assim? O Jerónimo [de Sousa] talvez. Estes rapazinhos de esquerda que estão no governo, chegaram lá como? Fizeram o seu percurso político...

Os seus filhos também fizeram um percurso político. O Miguel fez parte dessa esquerda...

Pois fizeram. E não foi do meu agrado. Graças a Deus o Paulo já não está [na política] e espero que não volte. Quanto a mim, não sou de direita, mas não sou de esquerda. Não tenho os valores tradicionais da direita. Não sou pateta! O Paulo cresceu mais comigo, mas é um tipo feito por si. Nós temos profundas divergências em determinadas coisas, sou pelas barrigas de aluguer, ele não é, sou pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo, ele não sei se é. Se me perguntar quem é que o Paulo tem como referência, dir-lhe-ei o Churchill.

E a mãe não é uma referência para o Paulo?

A mãe é uma pessoa de quem ele gosta e admira muito.

A Helena também fuma charutos como o Churchill...

De facto, fumo e pode ver ali uma fotografia minha a fumar charuto. Mas os meus valores não são os dele. O Paulo admira as minhas qualidades, mas acha que tem tantas ou mais do que eu. Mas isso qualquer um dos dois achava. Tanto o Miguel ou o Paulo não se achavam modestos. O Miguel disfarçava mais [risos].

Como eram os pequenos Miguel e Paulo?

O Miguel fazia as maiores rabinices possíveis ao Paulo. Atava-lhe um cordel à volta da cueca e prendia-lhe uma caixinha de fósforos com um pavio curto e dizia-lhe: “Agarra a caixa”. E o Paulo não conseguia. Também andavam à almofadada um com o outro. Mas, no meio disso tudo, eram muito amigos.

Nessa altura já se percebia em ambos a queda para a política?

Nos dois. O Paulo imitava um ministro qualquer da educação. Fazia impressão a maneira como o imitava tão bem. O Miguel começa a ligar-se à política com 10 anos. A distribuir papéis.

Que tipo de mãe era? Dura?

Duríssima. Ou se estudava ou se trabalhava. Havia uma regra: quem estuda e tem aproveitamento tem o direito a compensações, férias e tudo isso. O Paulo teve sempre jeito para gerir. Ele cedia um bocadinho, a mãe cedia um bocadinho. Ele era um bargaining [regateador]. O Miguel era mais ‘ou é como é, ou não é como é”. Eu sou da mesma maneira. ‘Então não é!’, dizia eu. Chocámos muitas vezes. Ele ‘rabinete’ e eu ordenava-lhe “sente-se aí um bocado sentado virado para a parede durante dez minutos”. Ele mais tarde saía da parede a dizer: “Sabe mãe, gostei imenso de estar na parede.”

Com que valores os educou?

Gastar menos do que aquilo que se tem. Não ostentar o que se tem nem quem se é. Passei horrores com o [apelido] Sacadura Cabral. Perguntavam-me na escola “O que é que a menina é ao Sacadura Cabral? É neta?” Respondia que era sobrinha. “Sobrinha neta?” Não, apenas sobrinha. “Sobrinha? Então quantos filhos eram?” Era uma lengalenga. Ensinei os meus filhos a um certo low-profile. A serem honestos. A pouparem. Neste último ponto não fui muito eficaz, porque nem o Miguel nem o Paulo são de poupanças. E os políticos, apesar do que dizem, não ganham o suficiente [para poupanças]. A não ser que sejam desonestos. E isso os meus filhos não são!

No livro confessa que a sua relação com o seu filho Miguel nunca foi fácil. E conta que logo aos 12 anos o Miguel decidiu ir viver para casa do pai...

Eu disse-lhe: “Aqui em casa ou se trabalha ou se estuda, Miguel. Andares a distribuir papéis do Partido Comunista não é nem estudo nem trabalho.”

Outra razão para essa saída de sua casa foi contada pelo Miguel na última entrevista dada ao Expresso. Relatou um episódio em que queria ir à missa de um certo padre progressista, que metia guitarradas. Consta que a Helena o proibiu de ir e o deixou de castigo. Ele acabou por fugir e deixou-lhe um bilhete: “Entre a mãe e Deus, escolho Deus.” Foi assim?

Esse episódio do padre estava relacionado com um dia em que queria ir à praia com os meus filhos de manhã. Por isso, ele não poderia ir a essa missa do padre progressista. E disse-lhe: “Tenho muita pena, mas do que tu precisas é da missa e não da missa do padre progressista.” Entretanto, fui tomar café e quando voltei sua excelência tinha saído e deixado esse papelinho a dizer que entre mim e Deus, escolhia Deus.

O que sentiu?

Senti que era parvo, completamente. E que só não levava um par de estalos porque não estava ali na altura. Mais tarde, quando nos voltámos a encontrar, já não lhe podia dar em diferido o par de estalos e disse-lhe: “Aqui em casa quem manda sou eu. Enquanto aqui viveres, vives com as minhas normas. Estás a estudar pouco, a contestar a minha autoridade e eu não estou muito contente com isso. Por isso vou-te pôr a trabalhar.” Ele pensou durante 24 horas e decidiu: “Vou para casa do meu pai.”

Custou-lhe?

Custou. Porque achei que estava a ser justa. E que [a partir daí] ele iria beneficiar de uma liberdade que lhe iria fazer mal.

Manteve essa ideia?

Sim. Ele casou com 18 anos. Sem a [outra] criatura estar grávida.

Sei que não foi ao casamento, mas que abriu a casa para os festejos...

Dei-lhe a festa. Não fui ao casamento porque achava que aquilo era uma fantasia lírica. Não compactuei. Como ainda hoje não vou a uma posse [de Estado] de um filho.

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É verdade que mandou o seu filho Paulo estudar um ano para Paris quando se deu o 25 de Abril?

Sim. Achei que ele cá não estudava nada.

Sobre isso Paulo Portas chegou a contar que a mãe considerava que não eram tempos para educar um adolescente em Portugal. Enquanto o país festejava a liberdade porque é que decidiu retirar o seu filho desse ambiente?

Sabe o que se passou a seguir ao 25 de Abril? Era uma balda. Olha-me a beleza. Nunca mais encontrava eixo. O PREC era um país fora de eixo. E, portanto, eu não queria um filho a estudar fora de eixo. Já me bastava o outro, que andava a distribuir papéis. Ainda bem que tivemos o 25 de Abril. Algo que me orgulho e que sinto muita alegria. Pena foi o que fizemos dele. Sobre estes 42 anos da chamada democracia tenho pena. Acho que o país sobre muitos aspetos perdeu qualidades.

Achou logo isso na altura?

Percebi que ia dar mau resultado. Mas tinha preparado antes a fuga do Miguel no tempo do Salazar e do Marcello Caetano. Tinha planeada a forma de o colocar lá fora [no estrangeiro] se corresse o risco de ser preso. Tinha preparado por onde saía, com quem saía, como teria o dinheiro.

O Miguel sabia desses planos de fuga que tinha para ele?

Não. Estava combinado entre mim e as pessoas que o iriam ajudar. Mas não mo prenderiam. Isso garanto-lhe eu.

É a mãe leoa a agir?

Sim. Estou atenta. E sou capaz de criar todas as condições para que quando vem a altura da aflição ela não exista.

A relação com o Miguel foi sempre assim, conflituosa?

Não. A partir dos 22 ou 23 anos a relação foi outra. O Miguel começou a pensar na vida de outra forma. Acabou o curso de Economia, a pulso. Com grande sacrifício meu. Passámos a ter uma área de conversa em comum — a economia. Muitos anos depois do meu divórcio, ele começou a ver em mim outras coisas. A maturidade dele ajudou.

O que pensou quando ele criou o Bloco de Esquerda?

[risos] Primeiro deu-me imensa vontade de rir quando ele criou a Plataforma de Esquerda. Pensei ‘qualquer dia apeia-se’. Uma plataforma só serve para duas coisas: Para uma pessoa apanhar um comboio ou para apear-se. Quando entrou no Bloco, fiquei a ver o que ia sair dali, que imaginava algo complicado. Devo dizer-lhe uma coisa: a morte do meu filho suavizou muito o meu relacionamento com algumas pessoas do Bloco. Gosto muito do Francisco Louçã, gosto muito do João Semedo e...

Nem sempre teve essa opinião favorável sobre Louçã...

Não. E ele sabe. Tinha-lhe um azar enorme. Achava-lhe um padre frustrado. Mas mudei completamente de opinião. O Francisco foi um grande amigo do Miguel, o que me sensibiliza muitíssimo. O João Semedo é um homem muito bom. Não pensamos da mesma forma, mas tenho-lhe uma ternura muito grande. Tanta que nunca mais tinha entrado no Instituto de Oncologia desde que o Miguel morreu e voltei para visitar o João.

É conhecida entre as pessoas que a conhecem como uma amiga generosa.

Isso acho que sou. [Emociona-se] Mas tenho amigos muito generosos, que não me largam. Numa aflição chamo mais depressa um amigo do que um filho. Porque não quero preocupá-lo. Não tenho as chaves de casa do meu filho e o meu filho não tem as chaves de minha casa.

O Miguel chegou a comentar em entrevista sobre a vossa relação: “Evito discutir [com a minha mãe]. Desaprendi de discutir. É melhor vermo-nos em doses homeopáticas. Fora disso, gostamos muito um do outro.”

É exatamente isso. Nós tínhamos uma zona em que entrávamos em conflito, que era a política, e sobre a qual evitávamos falar. Sempre prezei imenso a minha intimidade com os meus filhos, os jantares, o passear, o beijar, o dar a mão, o ir ao cinema. Para que é que havia de perder tempo a discutir com um filho sobre política? Só na altura das eleições. Se estavam a ficar tristes ou não. O resto é desprezo. O poder é a coisa mais afrodisíaca que há e é o que faz vir à superfície o que temos de pior. Porque não há poder sem autoridade e a autoridade é o exercício de uma tutela sobre alguém.

Viu o lado pior dos seus filhos na política?

Para já, eles eram melhores do que a maioria dos que conheço. Mas nunca gostei de ver os meus filhos na versão de políticos. Porque não gosto de política e acho que eles têm qualidades intelectuais que dariam carreiras brilhantes noutras atividades, com mais utilidade.

Chegou a ver a série americana “House of Cards” [Sobre os meandros da política, com Kevin Spacey e Robin Wright]?

Deus me livre. O meu filho Paulo disse “não percas o ‘House of Cards’, porque é uma série fabulosa”. Respondi-lhe: “O caraças!” O Paulo vê. Tudo o que seja séries políticas, o Paulo acompanha.

Votou alguma vez nos seus filhos?

Sim. Com grande dor de estômago, votei no Bloco de Esquerda para o Miguel ir para a União Europeia. Ui! O que me doeu. Custou-me. No Paulo também votei nas europeias, mas ele escolheu ficar na Assembleia em lugar de ir para a UE. Aí tem. Das duas vezes votei para irem para fora, para longe.

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Já foi convidada para cargos políticos?

Já. Muito convidada, muito assediada. Olhe, aí tem o assédio. Não foi sexual, mas foi político. E todos de esquerda.

Que partidos? PS, Bloco?

No Bloco chamavam-me um figo. Olhem, arranjámos uma de direita para defender os nossos valores.

Não aprecia nenhuma medida ou política tomada pelo Bloco de Esquerda? É a esquerda caviar de que falava há pouco?

Não. A esquerda caviar não é do Bloco. Mas do PS. O que tenho mais pena no Bloco é que se tenha tornado um partido de poder. Até estou de acordo com algumas medidas do Bloco. Por exemplo, o casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma medida fraturante, mas acho justa.

O Paulo discorda de si?

Em relação ao casamento é da mesma opinião. Em relação à adoção [por casais homossexuais] é que temos posições diferentes. Acho que um casal do mesmo sexo deve poder adotar uma criança. [Uma lei já em vigor] Prefiro uma criança adotada por duas mães ou por dois pais, do que institucionalizada. O que sei sobre o que o Paulo acha é o que vem nos jornais. O que às vezes não corresponde a nada. Por isso sou mãe de 20 Paulos. [Há um rumor que diz que] eu ‘tenho’ uma quinta do outro lado, que nem sei onde é, mas que me foi dada pelo meu filho Paulo... Inventam-se as coisas mais estranhas...

Esses e outros rumores que surgem sobre o Paulo não a incomodam?

Não vou ligar a rumores que sei que são falsos. É uma carapaça! Se eu não os conhecesse é que me podiam incomodar. Mas devo dizer que também há rumores sobre o Miguel.

Sejam rumores verdadeiros ou falsos não a perturbam?

Escorre como se fosse azeite. Nunca foi objeto de perda de um minuto de conversa entre nós.

A vida privada dos seus filhos nunca devia ser tema. É isso?

Eu não falo da vida privada com os meus filhos. Como posso admitir que os outros falem na vida privada deles? A que propósito? Mesmo assim, tinha talvez mais conversas nessa área com o Miguel do que com o Paulo. E chegava às vezes a dizer ao Miguel: “Não preciso de tantos pormenores!”

Passaram quatro anos sobre a morte do Miguel. Sei que é uma mulher de fé. Foi essa fé em Deus que a ajudou a superar a perda?

Eu precisava que a minha fé não fosse abalada. E o padre José Tolentino Mendonça passou-me força. Os filhos são um empréstimo de Deus!

Acredita num Deus redentor?

Acredito num Deus que foi crucificado para nos redimirmos. E acredito que o pior demónio que existe são os homens. Não acredito na figura do demónio, mas no demónio que existe em todos nós. Temos o livre arbítrio para fazermos o bem e o mal.

Acredita então no homem redentor.

Sim, mais do que num Deus redentor, acredito no homem redentor.

Para si é mais importante ser amada ou amar alguém?

Isso é uma grande pergunta. Tenho que lhe confessar que para mim é mais importante ser amada. Se tiver coragem, um dia ficarão a conhecer uma lindíssima história de amor que tive inesperadamente com uma pessoa estrangeira na idade madura. Foram 10 anos. Infelizmente ele já morreu. Ainda hoje falo com ele, como falo com o meu filho Miguel, ou a minha mãe e avó Joana. Para mim os mortos não estão mortos, senão fisicamente.

Tem 81 anos. Como encara o envelhecimento?

Da melhor forma. Estou bem contentinha de cá estar. É viver, não precisar de plásticas, não precisar de dizer que tenho menos 10 ou 15 anos. Algo que acho de uma ridicularia horrível. É aceitar as coisas. Costumo dizer às pessoas mais novas: “Tomara tu cá chegares.” [risos]

Pelo menos essa gargalhada não perde.

A vida é positiva para mim. Não tive nada gratuitamente. Mas acho que, entre o que paguei e aquilo que tenho, Nosso Senhor tem-me tratado bem.

A ideia de fim não a ensombra?

Porque é que haveria de me ensombrar? Gosto do outono e não tenho vocação para o masoquismo. Costumo dizer: ‘Convém-me não morrer à sexta-feira porque só darão por mim na segunda.’ Mas, como se diz no Alentejo, depois de morta cevada ao rabo. [forte gargalhada]

Termina este seu livro de recordações pela fase dos 50 anos. Porque é que deixou de contar os últimos 30 anos?

Espero contá-los a seguir. Depois dos 50 descobri tudo o que havia para descobrir. [ri-se] Há esperança para todos. No outro dia, o Paulo fez 54 anos e eu disse-lhe: “A tua mãe começou aos 50. Vê se aproveitas bem os 54 anos.” Ele, durante todo o período na política não aproveitou a vida. Há um hiato. Agora vai viver. E isso deixa-me muito satisfeita.

Acaba de recordar o que viveu. Como gostaria de ser recordada?

Que gaja porreira! Rigorosamente assim.

Artigo publicado na edição do EXPRESSO de 1 de outubro de 2016

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