Universalistas por defeito

15-04-2018
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Primeiro Paris, agora Matosinhos. Comissariada pelo arquiteto e professor Nuno Grande, a exposição “Os Universalistas”, concebida para assinalar os 50 anos da da presença da Fundação Calouste Gulbenkian em Paris, cidade onde foi apresentada pela primeira vez entre abril e agosto de 2016, desencadeia uma viagem através do último meio século de pensamento e produção arquitetónica em Portugal.

Concebida em parceria com a Cité de l’architetcture et du patrimoine, teve a sua primeira e única, até agora, apresentação no Palais de Chaillot, na capital francesa. Chega agora a Portugal e instala-se em Matosinhos, na Casa da Arquitectura, e permite uma visão muito abrangente e muito para lá de todo um conjunto de ideias feitas sobre o que é e como se tem desenvolvido a arquitetura portuguesa contemporânea.

Num texto inserido no catálogo da exposição, Nuno Grande especifica que a seleção de autores e de projetos expostos parte de uma tese. O curador defende a existência de “um universalismo particular e latente no modo como os melhores arquitetos portugueses vêm criando as suas obras – de geração em geração - , partindo de um equilíbrio constante entre a herança universal da História da arquitetura e as especificidades geográficas e culturais dos lugares onde as edificam; isto é, operando na articulação coerente e crítica entre aquilo a que chamamos hoje de ‘global’ e de ‘local’”.

Para quem visita esta mostra ressalta desde logo uma evidência: um dos maiores e injustos erros cometidos a cada momento passa pelo afunilar do que se julga ser o universo arquitetónico português, reduzido aos nomes de sempre, com a eterna nomeação de Álvaro Siza, Eduardo Souto de Moura ou Carrilho da Graça e os irmãos Aires Mateus.

António Pedro Ferreira

A deambulação pelo espaço expositivo permite mergulhar na enorme diversidade e na muita qualidade da arquitetura feita em Portugal por inúmeros arquitetos arredados dos focos mediáticos.

São muitas as surpresas proporcionadas por um percurso que nos leva ao confronto com a porventura inesperada qualidade e importância de obras como a igreja da “Sagrada Família”, de Amâncio (Pancho) Guedes, em Machava, Moçambique; a estaçāo ferroviária da Beira, de Joāo Garizo do Carmo, Francisco José de Castro e Paulo Melo Sampaio, em Moçambique; a "Casa em Ovar", de Paula Santos, uma das poucas arquitetas representadas na mostra; a embaixada de Portugal no Brasil, de Chorão Ramalho; a reabilitação da Casa dos Bicos, em Lisboa, por Manuel Vicente e José Daniel Santa-Rita; a escola Superior de Arte e Design, nas Caldas da Rainha, de Vítor Figueiredo; o Conservatório de Música, em Coimbra, de José Paulo Santos; ou a Casa das Mudas, na Madeira, de Paulo David. São escassos exemplos de uma lista longa onde se incluem obras, entre outros, de nomes referenciais como Fernando Távora, Nuno Teotónio Pereira, Francisco Keil do Amaral, Álvaro Siza, Gonçalo Byrne, Alcino Soutinho, Eduardo Souto Moura, Manuel Graça Dias, João Luís Carrilho da Graça, os irmãos Aires Mateus, Cristina Guedes e Francisco Vieira de Campos.

Nuno Grande fala de um “universalismo–autre”, distinto do imposto, política e filosoficamente, pelo iluminismo europeu desde o século XVIII. Essa espécie de outro universalismo é “o resultado de um contínuo contacto com a geografia e a cultura do ‘outro’, com base na viagem, na diáspora, na colonização, e na emigração, fenómenos determinantes da História de Portugal”.

D.R.

Acontece que este universalismo português, e tendo em conta todas aquelas variáveis, acaba por ser “um universalismo por defeito”, como afirma Eduardo Lourenço na entrevista que abre a exposição.

O catálogo contém, de resto, vários textos deste filósofo e pensador, cem como fotografias de Alfredo Cunha, caricaturas de João Abel Manta, o filme “Revolução”, de Ana Haterley e depoimentos críticos de Ana Tostões, Ana Vaz Milheiro, José António Bandeirinha, Jorge Figueira, Ricardo Carvalho, além dos franceses Jean-Louis Cohen, Dominique Machabert, Jacques Lucan e Francis Rambert.

A partir de um conjunto vasto de reflexões, a arquitetura portuguesa é posta em diálogo com a inevitável influência do internacionalismo moderno, mas também do nacionalismo, na última fase do chamado Estado Novo, no período entre 1960 e 1974. Num outro momento da exposição abordam-se as últimas décadas do colonialismo português, de 1961 a 1975. Vem depois a Revolução do 25 de abril de 1974, a que se segue o processo de integração na Comunidade Europeia, de 1980 a 2000. Por fim, o impacto da globalização, de 2001 a 2016.

A lista dos projetos é longa e inclui obras como a sede e museu da Fundação Calouste Gulbenkian (1959-1969), de Ruy Athouguia, Pedro Cid e Alberto Pessoa; piscina das Marés, em Leça da Palmeira, Matosinhos (1961-1966), de Álvaro Siza; igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa (1962-1973), de Nuno Portas e Nuno Teotónio Pereira; Edifício Franjinhas, em Lisboa, (1965-1973), de Nuno Teotónio Pereira; Bairro de S. Vítor, SAAL- Norte (1974-1976), de Àlvaro Siza; Pousada de Santa Marinha da Costa, Guimarães (1972-1985), de Fernando Távora; Câmara Municipal de Matosinhos, (1980-1987), de Alcino Soutinho; Casa das Artes, Porto (1981-1991), de Eduardo Souto Moura; Escola Superior de Comunicação, Lisboa (1988-1993), de Carrilho da Graça; Casa das Mudas, Madeira (2001-2004), de Paulo David; Museu Marítimo de Ílhavo (1999-2012), de ARX; Casa em Ovar (2011-2013), de Paula Santos; ou o Centro de arte contemporânea Arquipélago, S. Miguel, Açores (2010-2015), de João Mendes Ribeiro e gabinete Menos é Mais.

D.R.

Para o fim, um conjunto de questões suscitadas neste jornal aquando da inauguração em Paris e que, melhor ou pior respondidas, continuam a ser fonte de debate. O contacto com tamanha diversidade de proposta incita a questionar sobre a existência, ou não, de uma especificidade na arquitetura portuguesa. O desenho é uma marca distintiva do modo de fazer arquitetura em Portugal, ou trata-se antes da memória dos tempos áureos da chamada Escola de Arquitetura do Porto, onde pontificaram Carlos Ramos, Fernando Távora e Álvaro Siza?

Se é impossível ignorar o impacto tido pela urgência arquitetónica despoletada com o 25 de abril de 1974, torna-se cada vez mais relevante perguntar se a participação, o tema da habitação social e o direito à cidade foram características exclusivas do processo SAAL ou, com a crise social na Europa, assistimos a um renascimento de propostas capazes de marcarem a existência de uma arquitetura diferente?

Não haverá respostas definitivas, mas este percurso pelos “Universalistas” dá um contributo decisivo para uma maior aproximação ao que foram as preocupações, as propostas e as respostas dos arquitetos portugueses aos desafios colocados no último meio século pela situação política, pelas carências sociais, pelos culturais de um país em transição.

Primeiro Paris, agora Matosinhos. Comissariada pelo arquiteto e professor Nuno Grande, a exposição “Os Universalistas”, concebida para assinalar os 50 anos da da presença da Fundação Calouste Gulbenkian em Paris, cidade onde foi apresentada pela primeira vez entre abril e agosto de 2016, desencadeia uma viagem através do último meio século de pensamento e produção arquitetónica em Portugal.

Concebida em parceria com a Cité de l’architetcture et du patrimoine, teve a sua primeira e única, até agora, apresentação no Palais de Chaillot, na capital francesa. Chega agora a Portugal e instala-se em Matosinhos, na Casa da Arquitectura, e permite uma visão muito abrangente e muito para lá de todo um conjunto de ideias feitas sobre o que é e como se tem desenvolvido a arquitetura portuguesa contemporânea.

Num texto inserido no catálogo da exposição, Nuno Grande especifica que a seleção de autores e de projetos expostos parte de uma tese. O curador defende a existência de “um universalismo particular e latente no modo como os melhores arquitetos portugueses vêm criando as suas obras – de geração em geração - , partindo de um equilíbrio constante entre a herança universal da História da arquitetura e as especificidades geográficas e culturais dos lugares onde as edificam; isto é, operando na articulação coerente e crítica entre aquilo a que chamamos hoje de ‘global’ e de ‘local’”.

Para quem visita esta mostra ressalta desde logo uma evidência: um dos maiores e injustos erros cometidos a cada momento passa pelo afunilar do que se julga ser o universo arquitetónico português, reduzido aos nomes de sempre, com a eterna nomeação de Álvaro Siza, Eduardo Souto de Moura ou Carrilho da Graça e os irmãos Aires Mateus.

António Pedro Ferreira

A deambulação pelo espaço expositivo permite mergulhar na enorme diversidade e na muita qualidade da arquitetura feita em Portugal por inúmeros arquitetos arredados dos focos mediáticos.

São muitas as surpresas proporcionadas por um percurso que nos leva ao confronto com a porventura inesperada qualidade e importância de obras como a igreja da “Sagrada Família”, de Amâncio (Pancho) Guedes, em Machava, Moçambique; a estaçāo ferroviária da Beira, de Joāo Garizo do Carmo, Francisco José de Castro e Paulo Melo Sampaio, em Moçambique; a "Casa em Ovar", de Paula Santos, uma das poucas arquitetas representadas na mostra; a embaixada de Portugal no Brasil, de Chorão Ramalho; a reabilitação da Casa dos Bicos, em Lisboa, por Manuel Vicente e José Daniel Santa-Rita; a escola Superior de Arte e Design, nas Caldas da Rainha, de Vítor Figueiredo; o Conservatório de Música, em Coimbra, de José Paulo Santos; ou a Casa das Mudas, na Madeira, de Paulo David. São escassos exemplos de uma lista longa onde se incluem obras, entre outros, de nomes referenciais como Fernando Távora, Nuno Teotónio Pereira, Francisco Keil do Amaral, Álvaro Siza, Gonçalo Byrne, Alcino Soutinho, Eduardo Souto Moura, Manuel Graça Dias, João Luís Carrilho da Graça, os irmãos Aires Mateus, Cristina Guedes e Francisco Vieira de Campos.

Nuno Grande fala de um “universalismo–autre”, distinto do imposto, política e filosoficamente, pelo iluminismo europeu desde o século XVIII. Essa espécie de outro universalismo é “o resultado de um contínuo contacto com a geografia e a cultura do ‘outro’, com base na viagem, na diáspora, na colonização, e na emigração, fenómenos determinantes da História de Portugal”.

D.R.

Acontece que este universalismo português, e tendo em conta todas aquelas variáveis, acaba por ser “um universalismo por defeito”, como afirma Eduardo Lourenço na entrevista que abre a exposição.

O catálogo contém, de resto, vários textos deste filósofo e pensador, cem como fotografias de Alfredo Cunha, caricaturas de João Abel Manta, o filme “Revolução”, de Ana Haterley e depoimentos críticos de Ana Tostões, Ana Vaz Milheiro, José António Bandeirinha, Jorge Figueira, Ricardo Carvalho, além dos franceses Jean-Louis Cohen, Dominique Machabert, Jacques Lucan e Francis Rambert.

A partir de um conjunto vasto de reflexões, a arquitetura portuguesa é posta em diálogo com a inevitável influência do internacionalismo moderno, mas também do nacionalismo, na última fase do chamado Estado Novo, no período entre 1960 e 1974. Num outro momento da exposição abordam-se as últimas décadas do colonialismo português, de 1961 a 1975. Vem depois a Revolução do 25 de abril de 1974, a que se segue o processo de integração na Comunidade Europeia, de 1980 a 2000. Por fim, o impacto da globalização, de 2001 a 2016.

A lista dos projetos é longa e inclui obras como a sede e museu da Fundação Calouste Gulbenkian (1959-1969), de Ruy Athouguia, Pedro Cid e Alberto Pessoa; piscina das Marés, em Leça da Palmeira, Matosinhos (1961-1966), de Álvaro Siza; igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa (1962-1973), de Nuno Portas e Nuno Teotónio Pereira; Edifício Franjinhas, em Lisboa, (1965-1973), de Nuno Teotónio Pereira; Bairro de S. Vítor, SAAL- Norte (1974-1976), de Àlvaro Siza; Pousada de Santa Marinha da Costa, Guimarães (1972-1985), de Fernando Távora; Câmara Municipal de Matosinhos, (1980-1987), de Alcino Soutinho; Casa das Artes, Porto (1981-1991), de Eduardo Souto Moura; Escola Superior de Comunicação, Lisboa (1988-1993), de Carrilho da Graça; Casa das Mudas, Madeira (2001-2004), de Paulo David; Museu Marítimo de Ílhavo (1999-2012), de ARX; Casa em Ovar (2011-2013), de Paula Santos; ou o Centro de arte contemporânea Arquipélago, S. Miguel, Açores (2010-2015), de João Mendes Ribeiro e gabinete Menos é Mais.

D.R.

Para o fim, um conjunto de questões suscitadas neste jornal aquando da inauguração em Paris e que, melhor ou pior respondidas, continuam a ser fonte de debate. O contacto com tamanha diversidade de proposta incita a questionar sobre a existência, ou não, de uma especificidade na arquitetura portuguesa. O desenho é uma marca distintiva do modo de fazer arquitetura em Portugal, ou trata-se antes da memória dos tempos áureos da chamada Escola de Arquitetura do Porto, onde pontificaram Carlos Ramos, Fernando Távora e Álvaro Siza?

Se é impossível ignorar o impacto tido pela urgência arquitetónica despoletada com o 25 de abril de 1974, torna-se cada vez mais relevante perguntar se a participação, o tema da habitação social e o direito à cidade foram características exclusivas do processo SAAL ou, com a crise social na Europa, assistimos a um renascimento de propostas capazes de marcarem a existência de uma arquitetura diferente?

Não haverá respostas definitivas, mas este percurso pelos “Universalistas” dá um contributo decisivo para uma maior aproximação ao que foram as preocupações, as propostas e as respostas dos arquitetos portugueses aos desafios colocados no último meio século pela situação política, pelas carências sociais, pelos culturais de um país em transição.

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