Albergue dos danados: 09.2004

11-07-2018
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Lodaçal. Disse o senhor ministro da Justiça, “há reformas que carecem de consenso e o Governo aposta de boa-fé nesse consenso, seria bom para credibilizar o sistema”. Bonita a conversa, mas, subsiste uma dúvida, o que é que raio de bom para credibilizar o sistema pode oferecer o lodo? Nicky Florentino. . Disse o senhor ministro da Justiça, “há reformas que carecem de consenso e o Governo aposta de boa-fé nesse consenso, seria bom para credibilizar o sistema”. Bonita a conversa, mas, subsiste uma dúvida, o que é que raio de bom para credibilizar o sistema pode oferecer o lodo?

Um rasto de vida. Veio carregada de luto, face congestionada pelo calor. Com a sua entrada percebeu-se o fim do mercado. Assomou ao balcão. Pousou o cesto saloio no chão, coberto por um pano bordado de cores garridas, vivas, sem qualquer ovo. Vendi-os todos, senhora, informou a velha. Ainda bem, responderam-lhe de trás do balcão. E o que vai ser?, o que deseja?, perguntaram à velha. Olhe, é uma cervejinha, se faz favor, um cervejnha preta - faz menos mal, diz o meu neto -, para matar a sede, disse a velha. A garrafa foi colocada sobre o balcão, junto um copo. A velha recusou o copo. Sorveu a cerveja em dois largos tragos. Pegou num lenço engelhado, limpou os lábios e, depois, humedeceu-os com a língua. Quanto é?, minha senhora, perguntou a velha. Pagou, pegou no cesto, tenho que ir apanhar a camioneta, disse, e saiu, deixando um rasto de vida que a idade e o luto não lhe deixavam suspeitar. Segismundo. . Veio carregada de luto, face congestionada pelo calor. Com a sua entrada percebeu-se o fim do mercado. Assomou ao balcão. Pousou o cesto saloio no chão, coberto por um pano bordado de cores garridas, vivas, sem qualquer ovo. Vendi-os todos, senhora, informou a velha. Ainda bem, responderam-lhe de trás do balcão. E o que vai ser?, o que deseja?, perguntaram à velha. Olhe, é uma cervejinha, se faz favor, um cervejnha preta - faz menos mal, diz o meu neto -, para matar a sede, disse a velha. A garrafa foi colocada sobre o balcão, junto um copo. A velha recusou o copo. Sorveu a cerveja em dois largos tragos. Pegou num lenço engelhado, limpou os lábios e, depois, humedeceu-os com a língua. Quanto é?, minha senhora, perguntou a velha. Pagou, pegou no cesto, tenho que ir apanhar a camioneta, disse, e saiu, deixando um rasto de vida que a idade e o luto não lhe deixavam suspeitar.

Diálogo sobre a pipa apocalíptica. Leste o IHT? Eu não leio o Herald Tribune, leio o Público. O teu mundo é muito pequeno, não é? Não, é muito paroquial. Segismundo. . Leste o IHT? Eu não leio o Herald Tribune, leio o Público. O teu mundo é muito pequeno, não é? Não, é muito paroquial.

O cronista exemplar. O Segismundo. . O Filipe já está em Madrid, a cronicar. Perto, alguém, retido na pátria, interroga-se por que é que a puta da vida - embora a vida escassa ou nenhuma responsabilidade tenha no caso - não lhe permitiu estar com ele, lá, em Madrid, seja a relativizar , seja a esplanar . A resposta não é bonita.

Manifesto. Segismundo. Rui , se suspeitasse por um instante que essa intenção fosse menos do que um enunciado de cinismo, sentir-me-ia impelido a dizer-te está mas é quieto. A bem da salubridade da ordem e do cosmos, é preferível que fales dos enganos

Não escrever. Estou a escrever para não escrever-te. Apenas para dizer a mim mesma que a porta do quarto ainda está aberta e o meu corpo permanece inodoro e indolente. Arde-me a espera, arde-me um fogo que me esgota as demais sensações. Mas espero livre, de vontade. É esse o bálsamo que consigo. Não digo o que quero. Quero dizer o teu nome, ouvir a tua voz e os teus silêncios. Mas não insisto. Vou. A vida não espera. Até logo. Escreveu-lhe ela. Segismundo. . Estou a escrever para não escrever-te. Apenas para dizer a mim mesma que a porta do quarto ainda está aberta e o meu corpo permanece inodoro e indolente. Arde-me a espera, arde-me um fogo que me esgota as demais sensações. Mas espero livre, de vontade. É esse o bálsamo que consigo. Não digo o que quero. Quero dizer o teu nome, ouvir a tua voz e os teus silêncios. Mas não insisto. Vou. A vida não espera. Até logo. Escreveu-lhe ela.

Sinais. Quase já esgotei o último do Tom Waits, sem o partilhar. É o meu segredo. Mas sofro a distância. A varanda está vazia. A varanda está fechada. Não consigo olhar o rio. Estou a ler Pavese. Cito-te a primeira frase de um poema:

Verrà il giorno che il giovane dio sarà un uomo

senza pena, col morto sorriso dell’uomo

che ha compresso.

Não traduzo. Estou cansada. Vou dormir. A porta do quarto fica aberta. Sei que não vens, mas é um sinal para ti. A porta do quarto fica aberta, repito. E vou tomar apenas uma almofada. A outra fica vaga. É outro sinal para ti. Agora vou apagar o candeiro. Boa noite. Escreveu-lhe ela. Segismundo. . Quase já esgotei o último do Tom Waits, sem o partilhar. É o meu segredo. Mas sofro a distância. A varanda está vazia. A varanda está fechada. Não consigo olhar o rio. Estou a ler Pavese. Cito-te a primeira frase de um poema:Verrà il giorno che il giovane dio sarà un uomosenza pena, col morto sorriso dell’uomoche ha compresso.Não traduzo. Estou cansada. Vou dormir. A porta do quarto fica aberta. Sei que não vens, mas é um sinal para ti. A porta do quarto fica aberta, repito. E vou tomar apenas uma almofada. A outra fica vaga. É outro sinal para ti. Agora vou apagar o candeiro. Boa noite. Escreveu-lhe ela.

Arbeit Macht Frei. Diferente do risco de vida, não havia qualquer propósito naquele trabalho. Não era por isso um trabalho. O complexo era composto por sete linhas, cada uma com onze enormes serras, com discos de dentes afiados e pastilhados. A distância entre as linhas era mínima. A distância entre as serras também. Os enormes discos tinham uma rotação extraordinária. Quem lá trabalhava limitava-se a alimentar as serras com a madeira providenciada por via de um extenso sistema de tapetes rolantes. Poderia dizer-se que o que se produzia ali, naquele complexo, era serradura. Mas a tal produto, o único que resultava do labor dos homens, não era dado qualquer escoamento para o mercado. Não obstante, o complexo não parava. Existiam quatro turnos de seis horas cada e durante cada um desses períodos os homens limitavam-se a transmutar a madeira em serradura. Mesmo quando ocorriam acidentes, o que quase sempre significava que alguém tinha sido tolhido e, parcial ou plenamente, destroçado pelos discos, o complexo continuava a operar com normalidade. Se alguma máquina, por qualquer motivo, deixava de ter o seu operador, imediatamente era accionado um esquema de segurança e, de modo pronto, era colocado um outro homem no lugar vago. Fazer sofrer, estropiar, matar, parecia ser o único objectivo daquele negócio. E, de facto, era. O Marquês. . Diferente do risco de vida, não havia qualquer propósito naquele trabalho. Não era por isso um trabalho. O complexo era composto por sete linhas, cada uma com onze enormes serras, com discos de dentes afiados e pastilhados. A distância entre as linhas era mínima. A distância entre as serras também. Os enormes discos tinham uma rotação extraordinária. Quem lá trabalhava limitava-se a alimentar as serras com a madeira providenciada por via de um extenso sistema de tapetes rolantes. Poderia dizer-se que o que se produzia ali, naquele complexo, era serradura. Mas a tal produto, o único que resultava do labor dos homens, não era dado qualquer escoamento para o mercado. Não obstante, o complexo não parava. Existiam quatro turnos de seis horas cada e durante cada um desses períodos os homens limitavam-se a transmutar a madeira em serradura. Mesmo quando ocorriam acidentes, o que quase sempre significava que alguém tinha sido tolhido e, parcial ou plenamente, destroçado pelos discos, o complexo continuava a operar com normalidade. Se alguma máquina, por qualquer motivo, deixava de ter o seu operador, imediatamente era accionado um esquema de segurança e, de modo pronto, era colocado um outro homem no lugar vago. Fazer sofrer, estropiar, matar, parecia ser o único objectivo daquele negócio. E, de facto, era.

Deputar. Um dos exercícios preferidos pelas criaturas com assento no parlamento é a revisão da Constituição da República Portuguesa. Preferem as revisões revisionistas, as grandes, mas não descuram as revisões cirúrgicas, as de pormenor. Na prática, tais revisões são percebidas como um forma de jogging para o juízo. Compreende-se por isso que o senhor dr. Guilherme Silva tenha dito, “a revisão extraordinária da Constituição para que seja possível referendar o tratado de Constituição da União Europeia é uma questão que está a ser ponderada dentro do PSD”. A revisão constitucional é um entretenimento como qualquer outro. Nicky Florentino. . Um dos exercícios preferidos pelas criaturas com assento no parlamento é a revisão da Constituição da República Portuguesa. Preferem as revisões revisionistas, as grandes, mas não descuram as revisões cirúrgicas, as de pormenor. Na prática, tais revisões são percebidas como um forma de jogging para o juízo. Compreende-se por isso que o senhor dr. Guilherme Silva tenha dito, “a revisão extraordinária da Constituição para que seja possível referendar o tratado de Constituição da União Europeia é uma questão que está a ser ponderada dentro do PSD”. A revisão constitucional é um entretenimento como qualquer outro.

Símios e galhos. Disse o senhor dr. Paulo Portas, “não tenho nenhuma intenção de ser sucedido e o dr. Pires de Lima suponho que não tenha nenhuma intenção de deixar de ser presidido”. Por outras palavras, o que disse o senhor presidente do CDS/PP é que ele não sai do galho e que o outro não deve ter veleidade de alcançar o dele. Ou espera. Ou fica quieto. O dr. Portas é uma espécie de macho dominante. Está para reinar. Em todos os sentidos. Nicky Florentino. . Disse o senhor dr. Paulo Portas, “não tenho nenhuma intenção de ser sucedido e o dr. Pires de Lima suponho que não tenha nenhuma intenção de deixar de ser presidido”. Por outras palavras, o que disse o senhor presidente do CDS/PP é que ele não sai do galho e que o outro não deve ter veleidade de alcançar o dele. Ou espera. Ou fica quieto. O dr. Portas é uma espécie de macho dominante. Está para reinar. Em todos os sentidos.

Lonjuras. A hipótese de candidatar a senhora Maria Alzira Lemos à presidência do PS implicava que tal candidatura tivesse o endosso de pelo menos setenta e cinco assinaturas de delegados ao congresso da congregação socialista no próximo fim-de-semana. Aparentemente tal cláusula a nada obstava. O senhor dr. Manuel Alegre, proponente da dita candidatura, lograra a eleição de aproximadamente cento e quarentas cabeças como delegados ao referido congresso. Acontece, porém, que as coisas se complicaram. Com muitos desses tais delegados se encontravam fora de Lisboa, não foi possível reunir o rol mínimo de assinaturas necessárias. É que, como se sabe, Lisboa fica muito, muito longe de Portugal. E, para além disso, a distância entre uma e outro não muda para menos apenas porque é necessário acrescentar uma assinatura numa lista de tristes. Nicky Florentino. . A hipótese de candidatar a senhora Maria Alzira Lemos à presidência do PS implicava que tal candidatura tivesse o endosso de pelo menos setenta e cinco assinaturas de delegados ao congresso da congregação socialista no próximo fim-de-semana. Aparentemente tal cláusula a nada obstava. O senhor dr. Manuel Alegre, proponente da dita candidatura, lograra a eleição de aproximadamente cento e quarentas cabeças como delegados ao referido congresso. Acontece, porém, que as coisas se complicaram. Com muitos desses tais delegados se encontravam fora de Lisboa, não foi possível reunir o rol mínimo de assinaturas necessárias. É que, como se sabe, Lisboa fica muito, muito longe de Portugal. E, para além disso, a distância entre uma e outro não muda para menos apenas porque é necessário acrescentar uma assinatura numa lista de tristes.

Semear a inveja. Arde-me a liberdade de esperar por ti. Arde-me por confiança, não por esperança. Mas arde-me. Arde-me nas mãos, no peito, nas coxas, arde-me em todo o corpo, na minha nudez. Sinto palpitações nos meus seios, um tumulto no meu ventre. Não finjo. Por isso prefiro não chamar desejo a esta liberdade de espera incendiada. Chamar-lhe desejo faria de mim cativa de uma ausência, de um fantasma. E cativa não quero ser. O que eu quero não digo. Quero a tua boca, os teus braços, as tuas mãos, os teus dedos a alagar-me o corpo. Quero muito. Mas não digo. Espero por ti, livre, solta, como gostas de dizer. Espero. Espero porque também sou possessiva. Espero porque quero. Espero porque te quero. Espero porque querer-te, como eu te quero, faz-me sentir livre, solta, capaz de me dar. E dou-me para ser querida. Como tu és, por não seres, querido. Agora, desculpa - sei que estás longe -, vou para o São Jorge, encontrar-me com o Thor Fridrikson. Não posso esperar mais. Escreveu-lhe ela. Segismundo. . Arde-me a liberdade de esperar por ti. Arde-me por confiança, não por esperança. Mas arde-me. Arde-me nas mãos, no peito, nas coxas, arde-me em todo o corpo, na minha nudez. Sinto palpitações nos meus seios, um tumulto no meu ventre. Não finjo. Por isso prefiro não chamar desejo a esta liberdade de espera incendiada. Chamar-lhe desejo faria de mim cativa de uma ausência, de um fantasma. E cativa não quero ser. O que eu quero não digo. Quero a tua boca, os teus braços, as tuas mãos, os teus dedos a alagar-me o corpo. Quero muito. Mas não digo. Espero por ti, livre, solta, como gostas de dizer. Espero. Espero porque também sou possessiva. Espero porque quero. Espero porque te quero. Espero porque querer-te, como eu te quero, faz-me sentir livre, solta, capaz de me dar. E dou-me para ser querida. Como tu és, por não seres, querido. Agora, desculpa - sei que estás longe -, vou para o São Jorge, encontrar-me com o Thor Fridrikson. Não posso esperar mais. Escreveu-lhe ela.

Estranho modo de dizer a ausência. A última coisa que nos acontece é o corpo, o corpo estranho. Sinto o meu a entardecer sem a tua promessa presença. Escreveu-lhe ela. Segismundo. . A última coisa que nos acontece é o corpo, o corpo estranho. Sinto o meu a entardecer sem a tuapresença. Escreveu-lhe ela.

Tom Waits antes do tempo. Ela, o que é que te diz Real Gone? Ele, diz-me que vou ter que esperar. Ela, não, não terás que esperar. Ouve. Ele, passado alguns instantes, já? Ela, já, é para ti, vem. Ele não foi, ficou com a inveja. Segismundo. . Ela, o que é que te diz Real Gone? Ele, diz-me que vou ter que esperar. Ela, não, não terás que esperar. Ouve. Ele, passado alguns instantes, já? Ela, já, é para ti, vem. Ele não foi, ficou com a inveja.

Resort de ausência. Não sei recuar no desejo, no desejo que sinto. Arde-me. E não consigo desaprender-te dos meus olhos. Sinto-me a cegar. Hoje, por exemplo, depois de ver o espelho da casa de banho embaciado, procurei-te, mas não te encontrei. Escreveu-lhe ela. Segismundo. . Não sei recuar no desejo, no desejo que sinto. Arde-me. E não consigo desaprender-te dos meus olhos. Sinto-me a cegar. Hoje, por exemplo, depois de ver o espelho da casa de banho embaciado, procurei-te, mas não te encontrei. Escreveu-lhe ela.

Amor de pai. Um pai concebeu um filho com um único propósito, que esse filho fosse supliciado e, por si - o pai -, através da lancinante dor sentida - pelo filho -, fossem redimidos os pecados, todos, do mundo. Não há prova de amor paternal maior do que esta. Fazer com - mais do que permitir - que um filho sofra por e para um pai e os outros. Aliás, chamar a salvação do mundo ao flagelo e aos padecimentos do filho é apenas uma forma de engrandecer o gesto do pai, não o sofrimento do filho. O Marquês. . Um pai concebeu um filho com um único propósito, que esse filho fosse supliciado e, por si - o pai -, através da lancinante dor sentida - pelo filho -, fossem redimidos os pecados, todos, do mundo. Não há prova de amor paternal maior do que esta. Fazer com - mais do que permitir - que um filho sofra por e para um pai e os outros. Aliás, chamar a salvação do mundo ao flagelo e aos padecimentos do filho é apenas uma forma de engrandecer o gesto do pai, não o sofrimento do filho.

A vontade como representação. É um mistério, mas não faz mal. O Governo fez as contas e estimou as necessidades da pátria para dois mil e quatro, oito mil e quinhentos trabalhadores estrangeiros. Nem mais um, nem menos um, ditou a vontade dos que se fiam nas tenebrosas engenharias políticas de controlo e higienização dos colectivos. Candidataram-se às ditas vagas sessenta imigrantes. Três obtiveram o pretendido visto de trabalho. Os outros, compreende-se, como não são cifras estatísticas, é como se não existissem. Ou isso ou têm vergonha. O que também é compreensível. Pois deve emigrar-se de Portugal, não imigrar-se para Portugual. Cá, na pátria, a desgraça monta a tal tamanho que até as distopias laboriosamente congeminadas acabam por colapsar. É por isso que, perante estes factos, o senhor dr. Paulo Portas há-de parecer um Calimero. Mas sem a meia casca de ovo na cabeça, o bisonho. Nicky Florentino. . É um mistério, mas não faz mal. O Governo fez as contas e estimou as necessidades da pátria para dois mil e quatro, oito mil e quinhentos trabalhadores estrangeiros. Nem mais um, nem menos um, ditou a vontade dos que se fiam nas tenebrosas engenharias políticas de controlo e higienização dos colectivos. Candidataram-se às ditas vagas sessenta imigrantes. Três obtiveram o pretendido visto de trabalho. Os outros, compreende-se, como não são cifras estatísticas, é como se não existissem. Ou isso ou têm vergonha. O que também é compreensível. Pois deve emigrar-se de Portugal, não imigrar-se para Portugual. Cá, na pátria, a desgraça monta a tal tamanho que até as distopias laboriosamente congeminadas acabam por colapsar. É por isso que, perante estes factos, o senhor dr. Paulo Portas há-de parecer um Calimero. Mas sem a meia casca de ovo na cabeça, o bisonho.

O senhor está no meio de nós. O senhor bispo do Funchal teceu loas e hossanas em honra do senhor presidente do Governo regional da Madeira. Este retribuiu. Tudo aconteceu no altar da igreja dos Álamos. Deus consentiu por um único e imediato motivo, não existe. Ou isso ou distraiu-se, como é usual. Nicky Florentino. . O senhor bispo do Funchal teceu loas e hossanas em honra do senhor presidente do Governo regional da Madeira. Este retribuiu. Tudo aconteceu no altar da igreja dos Álamos. Deus consentiu por um único e imediato motivo, não existe. Ou isso ou distraiu-se, como é usual.

Diálogo com assentimento. Adrenalina? Não, cocaína. Isso faz-te mal. É por isso. Segismundo. . Adrenalina? Não, cocaína. Isso faz-te mal. É por isso.

Maldita. Voltou ao veneno, como se fosse um velho hábito, um vício. Não viu ainda veados a comer coelhos. Viu apenas substituições disso. Viu assombrações, espectros, véus diáfanos agitados, como se fossem do vento. Viu o perfil distorcido dos carros, observados do nono andar. Viu os néons cintilantes, como se estivessem no bordo da retina, urgente e intensamente reflectidos. Viu a indolência nos seus gestos, a voz áspera e lenta, insubmissa. Viu a manhã a chegar e a fazer o rio novo. E viu o sangue, o seu sangue, sem se inquietar. A inquietude aproximou-se depois, tomou-o, depois de a consciência lhe ter regressado. Amanhã vai ser diferente, desejou ele. Mas não vai ser. Ele vai tornar a cair na tentação. Ele vai regressar ao erro a que voltou. Segismundo. . Voltou ao veneno, como se fosse um velho hábito, um vício. Não viu ainda veados a comer coelhos. Viu apenas substituições disso. Viu assombrações, espectros, véus diáfanos agitados, como se fossem do vento. Viu o perfil distorcido dos carros, observados do nono andar. Viu os néons cintilantes, como se estivessem no bordo da retina, urgente e intensamente reflectidos. Viu a indolência nos seus gestos, a voz áspera e lenta, insubmissa. Viu a manhã a chegar e a fazer o rio novo. E viu o sangue, o seu sangue, sem se inquietar. A inquietude aproximou-se depois, tomou-o, depois de a consciência lhe ter regressado. Amanhã vai ser diferente, desejou ele. Mas não vai ser. Ele vai tornar a cair na tentação. Ele vai regressar ao erro a que voltou.

À espera de Tom Waits. Ela, Elvis Costello? Ele, sim. Ela, os dois? Ele, sim. Ela, fica a faltar, agora, o Tom Waits, não é? Ele, é. Ela, e tu? Ele, também, tenho que ir. Segismundo. . Ela, Elvis Costello? Ele, sim. Ela, os dois? Ele, sim. Ela, fica a faltar, agora, o Tom Waits, não é? Ele, é. Ela, e tu? Ele, também, tenho que ir.

Princípios. Este amor começou com um silêncio teu, com um silêncio dos teus, sobre Yeats ou cummings, não sei, disse ela, mas a paixão, a paixão, essa, começou quando me deixaste sentar ao pé de ti no cinema, naquele dia em que na sala estávamos só tu e eu. Segismundo. . Este amor começou com um silêncio teu, com um silêncio dos teus, sobre Yeats ou cummings, não sei, disse ela, mas a paixão, a paixão, essa, começou quando me deixaste sentar ao pé de ti no cinema, naquele dia em que na sala estávamos só tu e eu.

Jogos florais. Flores?, são para mim? Não, são para a jarra. Mau! Eu sei. Segismundo. . Flores?, são para mim? Não, são para a jarra. Mau! Eu sei.

O pai mau. Deus é uma criatura incapaz de olhar os outros nos olhos. Por isso, um dia, colérico, por ser cego, decidiu inventar uma gramática para os comportamentos, dividindo-os em duas categorias, as virtudes e os pecados. Para os pecadores exigiu o opróbio e o castigo, a expiação da culpa e dos erros pela dor. Aos virtuosos enganou-os, fingindo que a vida lhes seria fácil e prazenteira. Desde o dia em que foi promulgado o decreto que distingue a virtude do pecado não mais as mulheres e os homens ousaram ser felizes. E do seu terraço sideral, mesmo sem ver, o deus cruel alimenta-se das dores, dos que sofrem. É esse o seu maná, o seu pão de cada dia, e nenhum outro. O Marquês. . Deus é uma criatura incapaz de olhar os outros nos olhos. Por isso, um dia, colérico, por ser cego, decidiu inventar uma gramática para os comportamentos, dividindo-os em duas categorias, as virtudes e os pecados. Para os pecadores exigiu o opróbio e o castigo, a expiação da culpa e dos erros pela dor. Aos virtuosos enganou-os, fingindo que a vida lhes seria fácil e prazenteira. Desde o dia em que foi promulgado o decreto que distingue a virtude do pecado não mais as mulheres e os homens ousaram ser felizes. E do seu terraço sideral, mesmo sem ver, o deus cruel alimenta-se das dores, dos que sofrem. É esse o seu maná, o seu pão de cada dia, e nenhum outro.

Peneira. O senhor primeiro-ministro ordenou a emissão de um comunicado a desmentir a existência de desarticulação no âmbito do Governo. Não era necessário induzir o engano. Em política, a evidência tende a dissolver-se. É uma questão de tempo. E, depois, o sol brilhará. Nicky Florentino. . O senhor primeiro-ministro ordenou a emissão de um comunicado a desmentir a existência de desarticulação no âmbito do Governo. Não era necessário induzir o engano. Em política, a evidência tende a dissolver-se. É uma questão de tempo. E, depois, o sol brilhará.

Más companhias. Disse o senhor Narciso Miranda, “a minha disponibilidade é total para que o PS seja o factor de esperança para os cidadãos que estão frustados com os resultados da política de direita liderada pelo PSD”. Se houver quem não esteja habituado, o melhor é fugir. Ou emigrar. Para longe. Para a sombra. Nicky Florentino. . Disse o senhor Narciso Miranda, “a minha disponibilidade é total para que o PS seja o factor de esperança para os cidadãos que estão frustados com os resultados da política de direita liderada pelo PSD”. Se houver quem não esteja habituado, o melhor é fugir. Ou emigrar. Para longe. Para a sombra.

Antídoto pior do que o veneno. O senhor dr. Manuel Alegre entende que, no concurso para senhor secretário-geral do PS, aconteceram “votações que não são normais”. E acrescentou, “isso deve-se a situações que é preciso alterar profundamente no PS: fidelizações, clientelismos”. É bonita a conversa. Mas alterar profundamente tais situações é liquidar o clube, é tornar o partido político numa seita sob escombros. Não pode ser. Nicky Florentino. . O senhor dr. Manuel Alegre entende que, no concurso para senhor secretário-geral do PS, aconteceram “votações que não são normais”. E acrescentou, “isso deve-se a situações que é preciso alterar profundamente no PS: fidelizações, clientelismos”. É bonita a conversa. Mas alterar profundamente tais situações é liquidar o clube, é tornar o partido político numa seita sob escombros. Não pode ser.

Passe-partout. No passado sábado, na primeira fila do friso que aplaudia o novo senhor secretário-geral do PS estavam o senhor dr. António Costa, o senhor Armando Vara, o senhor dr. Capoulas Santos, a senhora dr.ª Edite Estrela, o senhor dr. Jaime Gama, o senhor dr. Jorge Coelho, o senhor dr. Miranda Calha, o senhor dr. Sérgio Sousa Pinto, o senhor dr. Vitalino Canas. Às tantas, na homilia da circunstância, o senhor eng.º José Sócrates clamou, “o PS está pronto para liderar uma mudança política em Portugal e essa mudança começa hoje”. Vê-se. É por isso que não se acredita. Nicky Florentino. . No passado sábado, na primeira fila do friso que aplaudia o novo senhor secretário-geral do PS estavam o senhor dr. António Costa, o senhor Armando Vara, o senhor dr. Capoulas Santos, a senhora dr.ª Edite Estrela, o senhor dr. Jaime Gama, o senhor dr. Jorge Coelho, o senhor dr. Miranda Calha, o senhor dr. Sérgio Sousa Pinto, o senhor dr. Vitalino Canas. Às tantas, na homilia da circunstância, o senhor eng.º José Sócrates clamou, “o PS está pronto para liderar uma mudança política em Portugal e essa mudança começa hoje”. Vê-se. É por isso que não se acredita.

Mon amour. Cite-se o senhor Prof. Doutor Mário Pinto, “nós podemos nem sempre ser capazes de corresponder ao que é justo e digno. É a nossa desfalecência, que pede compreensão e remédio. Mas não é por isso que a fidelidade matrimonial merece desprezo e o dever de fidelidade conjugal é risível. É a própria dignidade pessoal de quem casa, e daquele com quem casa, que sobre a promessa não cumprida lhe pede vergonha, e não risos. Ninguém é obrigado a casar-se; mas, se o fizer, tem de o fazer digna e seriamente. É esta a lei e são estes os bons costumes”. Não, não são os bons costumes. Se bons, mesmo se bons, foram costumes. Apenas foram, se foram, os bons costumes. Hoje, os costumes, os bons e os maus, são outros. Não casar, por exemplo, é um deles. E casar como quem não casa também. Pois acontece que há o desamor, a traição, o engano, o desengano, a desilusão, a paixão, motivos justos para o divórcio, para a liberdade. Segismundo. . Cite-se o senhor Prof. Doutor Mário Pinto, “nós podemos nem sempre ser capazes de corresponder ao que é justo e digno. É a nossa desfalecência, que pede compreensão e remédio. Mas não é por isso que a fidelidade matrimonial merece desprezo e o dever de fidelidade conjugal é risível. É a própria dignidade pessoal de quem casa, e daquele com quem casa, que sobre a promessa não cumprida lhe pede vergonha, e não risos. Ninguém é obrigado a casar-se; mas, se o fizer, tem de o fazer digna e seriamente. É esta a lei e são estes os bons costumes”. Não, não são os bons costumes. Se bons, mesmo se bons, foram costumes. Apenas foram, se foram, os bons costumes. Hoje, os costumes, os bons e os maus, são outros. Não casar, por exemplo, é um deles. E casar como quem não casa também. Pois acontece que há o desamor, a traição, o engano, o desengano, a desilusão, a paixão, motivos justos para o divórcio, para a liberdade.

Pendular. Adeus, vou. Adeus, vai, iô-iô, e regressa. Não sei. Eu sei, espero por ti. Segismundo. . Adeus, vou. Adeus, vai, iô-iô, e regressa. Não sei. Eu sei, espero por ti.

Idílio sobre sms. Ele recebeu uma mensagem,

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Caixa de entrada

96... (número estranho, não registado no telefone dele)

Tua, aproxima-te.

Remetente:

+35196...

Transmitida:

27-Set-2004

05:02:47

leu-a, escreveu algo mais, pouco, no computador, não demorou, desligou-o, dirigiu-se para a sala, apagou algumas da velas distribuídas pelo chão, deixou acesas apenas cinco, deitou-se sobre os cobertores felpudos, olhou-a, chamaste-me?, perguntou-lhe em sussurro, sim, respondeu ela, fica comigo, agora, pediu-lhe, ele ficou, ela despiu-o, ela despiu-se, envolveram-se num dos cobertores, sem se abraçarem, cada um com a sua almofada, ficaram apenas a sentir os corpos próximos, o vão entre eles, até que ela se aproximou do ombro direito dele, depositou aí a sua cabeça, protege-me, disse, e ele recolheu o braço sobre as suas costas, abraçando-a e emprestando-a ao sono, sob o embalo de Baby Dee,

What was it I knew then

That I let myself forget?

Wasn’t my sunrise you then?

And isn’t this my sunset?

Shouldn’t you have a morning?

Shouldn’t you have a dawn?

Shouldn’t you have a sunrise?

Shouldn’t you have a song?

You can forget me

But forget your sorrow too.

How can my heart let me,

Let me let go of you?

enquanto o vento, autorizado pela janela aberta da varanda, entrava a rasar o chão, mas não encontrava os corpos, por estarem disponíveis apenas um para o outro e para o seu engano, o único, ali. Segismundo. . Ele recebeu uma mensagem,MenuMensagensCaixa de entrada96... (número estranho, não registado no telefone dele)Tua, aproxima-te.Remetente:+35196...Transmitida:27-Set-200405:02:47leu-a, escreveu algo mais, pouco, no computador, não demorou, desligou-o, dirigiu-se para a sala, apagou algumas da velas distribuídas pelo chão, deixou acesas apenas cinco, deitou-se sobre os cobertores felpudos, olhou-a, chamaste-me?, perguntou-lhe em sussurro, sim, respondeu ela, fica comigo, agora, pediu-lhe, ele ficou, ela despiu-o, ela despiu-se, envolveram-se num dos cobertores, sem se abraçarem, cada um com a sua almofada, ficaram apenas a sentir os corpos próximos, o vão entre eles, até que ela se aproximou do ombro direito dele, depositou aí a sua cabeça, protege-me, disse, e ele recolheu o braço sobre as suas costas, abraçando-a e emprestando-a ao sono, sob o embalo de Baby Dee,What was it I knew thenThat I let myself forget?Wasn’t my sunrise you then?And isn’t this my sunset?Shouldn’t you have a morning?Shouldn’t you have a dawn?Shouldn’t you have a sunrise?Shouldn’t you have a song?You can forget meBut forget your sorrow too.How can my heart let me,Let me let go of you?enquanto o vento, autorizado pela janela aberta da varanda, entrava a rasar o chão, mas não encontrava os corpos, por estarem disponíveis apenas um para o outro e para o seu engano, o único, ali.

Arrependimento. Ela, vem, descobre-me. Ele, mas já sei quem tu és. Ela, enganas-te. Ele, eu sei. Ela, sou outra. Ele, sim, eu sei. Ela, como é que sabes?, se admites o engano. Ele, porque estás nos meus braços e eu já te vi repetida nos meus olhos. Ela, és estranho. Ele, é por isso que eu estou aqui. Ela, que estás aqui para me descobrir? Ele, não, para ser estranho. Ela, vais arrepender-te. Ele, já me arrependi. Segismundo. . Ela, vem, descobre-me. Ele, mas já sei quem tu és. Ela, enganas-te. Ele, eu sei. Ela, sou outra. Ele, sim, eu sei. Ela, como é que sabes?, se admites o engano. Ele, porque estás nos meus braços e eu já te vi repetida nos meus olhos. Ela, és estranho. Ele, é por isso que eu estou aqui. Ela, que estás aqui para me descobrir? Ele, não, para ser estranho. Ela, vais arrepender-te. Ele, já me arrependi.

Antes da fuga. Voltaste? Sim, voltei. Para mim? Não, para fugir. Quando?, agora? Não, amanhã. Anda, então, é urgente. Eu sei, foi por isso que voltei antes da fuga, depois vou fugir-te. Foges, mas depois voltas. Volto para poder fugir novamente. Eu sei, mas voltas sempre antes da fuga. Segismundo. . Voltaste? Sim, voltei. Para mim? Não, para fugir. Quando?, agora? Não, amanhã. Anda, então, é urgente. Eu sei, foi por isso que voltei antes da fuga, depois vou fugir-te. Foges, mas depois voltas. Volto para poder fugir novamente. Eu sei, mas voltas sempre antes da fuga.

Kiss. Gosto de imaginar outros possíveis. Porquê?, porque é um caminho para o engano que me faz regressar às coisas simples e estúpidas. Disse ele. Segismundo. . Gosto de imaginar outros possíveis. Porquê?, porque é um caminho para o engano que me faz regressar às coisas simples e estúpidas. Disse ele.

Como Tomé. Ele, mostra-me a tua mão. Ela, para quê? Ele, para te dizer que sei, para te dizer que sabia. Segismundo. . Ele, mostra-me a tua mão. Ela, para quê? Ele, para te dizer que sei, para te dizer que sabia.

Continuação. E ao décimo quarto dia sobre a confissão e a confirmação – os factos, os indícios e os testemunhos são anteriores – nada mais há a dizer. Excepto o fim, declarar derradeiramente o fim. Pois cada gesto pode inaugurar uma nova sequência da vida. E o próximo princípio, esse, já começou. Começou antes daquele gesto, o último. O gesto que faltou. Segismundo. . E ao décimo quarto dia sobre a confissão e a confirmação – os factos, os indícios e os testemunhos são anteriores – nada mais há a dizer. Excepto o fim, declarar derradeiramente o fim. Pois cada gesto pode inaugurar uma nova sequência da vida. E o próximo princípio, esse, já começou. Começou antes daquele gesto, o último. O gesto que faltou.

Tatuagem noir. Sinto-te como se estivesses gravado em mim, marcado na minha carne, sabes?, disse ela, enquanto uma lágrima furtiva lhe desenhava o rosto. Sabes por que é que não digo que te amo?, porque poderia acreditar nisso e enganar-te como tu me enganaste, disse ele. Segismundo. . Sinto-te como se estivesses gravado em mim, marcado na minha carne, sabes?, disse ela, enquanto uma lágrima furtiva lhe desenhava o rosto. Sabes por que é que não digo que te amo?, porque poderia acreditar nisso e enganar-te como tu me enganaste, disse ele.

Leituras. Leste O Deus das Pequenas Coisas?, perguntou ele. Ela, com cinismo, respondeu não, li The God of Small Things. Ele perguntou depois e leste o Sete Mares e Treze Rios? Ela confirmou, não, li o Brick Lane. Segismundo. . Leste O Deus das Pequenas Coisas?, perguntou ele. Ela, com cinismo, respondeu não, li The God of Small Things. Ele perguntou depois e leste o Sete Mares e Treze Rios? Ela confirmou, não, li o Brick Lane.

Para além do fim. Acreditas que a amizade sobrevive ao desamor?, perguntou. Perguntas por dúvida? ou por descrença?, quis ela saber. Pergunto por ironia, respondeu ele. Acredito, disse ela, pois, se houver memória, o desamor é ainda um vestígio do amor que foi, é uma forma da sua presença. Mas também pode ser uma forma de iludir a culpa, explicou ela. A culpa?, nisto não há culpa, pretendeu ele. Às vezes há, disse ela. Segismundo. . Acreditas que a amizade sobrevive ao desamor?, perguntou. Perguntas por dúvida? ou por descrença?, quis ela saber. Pergunto por ironia, respondeu ele. Acredito, disse ela, pois, se houver memória, o desamor é ainda um vestígio do amor que foi, é uma forma da sua presença. Mas também pode ser uma forma de iludir a culpa, explicou ela. A culpa?, nisto não há culpa, pretendeu ele. Às vezes há, disse ela.

Eixo Norte-Sul. Fila de trânsito. Provavelmente um acidente, pensou ele. Depois da demora, confirmou ele nos pensamentos, foi acidente. A fila arrastava-se lentamente, um ritmo diferente do habitual. No horizonte, não havia vislumbre das forças de segurança. Não havia indício dos bombeiros. Nenhuma sinalização luminosa. Mais adiante a constatação. O aparato era evidente. Destroços espalhados sobre o asfalto. A sinistrofilia dos condutores vertida em voyeurismo. Alguns deles chegavam mesmo a estancar o veículo para, por regalo, mero regalo mórbido, poderem observar a cena, testemunharem o sangue, a desgraça, a morte na estrada. Neles, nos seus gestos, não se percebia a mínima intenção de socorro. Apenas a vertigem do espectáculo. De que eles queriam ser espectadores, ávidos espectadores. Segismundo. . Fila de trânsito. Provavelmente um acidente, pensou ele. Depois da demora, confirmou ele nos pensamentos, foi acidente. A fila arrastava-se lentamente, um ritmo diferente do habitual. No horizonte, não havia vislumbre das forças de segurança. Não havia indício dos bombeiros. Nenhuma sinalização luminosa. Mais adiante a constatação. O aparato era evidente. Destroços espalhados sobre o asfalto. A sinistrofilia dos condutores vertida em voyeurismo. Alguns deles chegavam mesmo a estancar o veículo para, por regalo, mero regalo mórbido, poderem observar a cena, testemunharem o sangue, a desgraça, a morte na estrada. Neles, nos seus gestos, não se percebia a mínima intenção de socorro. Apenas a vertigem do espectáculo. De que eles queriam ser espectadores, ávidos espectadores.

Luta de classes. Boa tarde, disse ele em empréstimo de simpatia ao lugar. O outro não se comoveu. Levantou-se e, sem nada dizer, cravou-lhe repetidamente no peito a chave para parafusos com cabeça fendada que, antes, imediatamente antes, utilizara na reparação da canalização do loft dele. O Marquês. . Boa tarde, disse ele em empréstimo de simpatia ao lugar. O outro não se comoveu. Levantou-se e, sem nada dizer, cravou-lhe repetidamente no peito a chave para parafusos com cabeça fendada que, antes, imediatamente antes, utilizara na reparação da canalização do loft dele.

Reflexo condicionado. Disse o senhor Miguel Relvas, “José Sócrates é um político da ficção que acredita mais no cenário do que no conteúdo”. Poderia dizer isto também do senhor presidente do PSD. Ou até de ele mesmo. Mas não disse. Por um motivo singelo. A devolução custar-lhe-ia. Nicky Florentino. . Disse o senhor Miguel Relvas, “José Sócrates é um político da ficção que acredita mais no cenário do que no conteúdo”. Poderia dizer isto também do senhor presidente do PSD. Ou até de ele mesmo. Mas não disse. Por um motivo singelo. A devolução custar-lhe-ia.

Razão e aproximação. Título da edição de hoje do Público, “José Sócrates ganha PS com mais de dois terços dos votos”. Primeira frase do lead ou coisa do género, “Novo secretário-geral do PS foi eleito com mais de setenta e cinco por cento dos votos”. Poderiam ter escrito no rubro título mais de três quartos ou quase quatro quintos. Em qualquer dos casos estariam mais próximos do resultado do escrutínio acontecido. Mas isso, como resulta evidente, são outras contas. Nicky Florentino. . Título da edição de hoje do Público, “José Sócrates ganha PS com mais de dois terços dos votos”. Primeira frase do lead ou coisa do género, “Novo secretário-geral do PS foi eleito com mais de setenta e cinco por cento dos votos”. Poderiam ter escrito no rubro título mais de três quartos ou quase quatro quintos. Em qualquer dos casos estariam mais próximos do resultado do escrutínio acontecido. Mas isso, como resulta evidente, são outras contas.

O gosto dos outros. Ela, gosto do calor. Também gosto do frio, se não for muito. Da chuva é que não gosto. Ele, talvez possa ensinar-te a gostar da chuva. Ela, não creio. Ele, é uma questão de paixão, aprende-se com outro. Ela, tu não gostas do calor, pois não? Ele, não. Ela, e de mim? Ele, gosto de chuva, mas não sei se vou conseguir ensinar-te esse gosto. Adeus, tenho que ir. Ela, adeus. Voltas? Ele não respondeu. Ela ainda, eu sei que voltas. Segismundo. . Ela, gosto do calor. Também gosto do frio, se não for muito. Da chuva é que não gosto. Ele, talvez possa ensinar-te a gostar da chuva. Ela, não creio. Ele, é uma questão de paixão, aprende-se com outro. Ela, tu não gostas do calor, pois não? Ele, não. Ela, e de mim? Ele, gosto de chuva, mas não sei se vou conseguir ensinar-te esse gosto. Adeus, tenho que ir. Ela, adeus. Voltas? Ele não respondeu. Ela ainda, eu sei que voltas.

Rumo. Sabes onde estás?, perguntou-lhe. Não, respondeu ele. Estás no meu território, disse ela, vem, ao mesmo tempo que lhe procurou a mão esquerda, para o conduzir ao número cinquenta e nove da rua da Barroca. Era ainda hora de jantar. Segismundo. . Sabes onde estás?, perguntou-lhe. Não, respondeu ele. Estás no meu território, disse ela, vem, ao mesmo tempo que lhe procurou a mão esquerda, para o conduzir ao número cinquenta e nove da rua da Barroca. Era ainda hora de jantar.

No Chiado. Ofereces-me um livro?, pediu ela. Não, disse-lhe ele. Escolhes-me um livro?, então, rogou-lhe ela. Ele afastou-se, sondou as prateleiras, literatura brasileira, éme. Moacyr Scliar, Exército de um Homem Só, foi o título escrutinado. Ele acabou por oferecer-lhe o livro. Pagou-o. Saíram. Por que é que me ofereceste este livro?, é sobre o quê?, perguntou ela, depois, com a aguda curiosidade de apaixonada. Porque, não sendo, é sobre mim, respondeu ele. E o Moacyr Scliar?, quem é o Moacyr Scliar?, quis ela saber. É um médico, judeu, brasileiro, que escreveu A Mulher que Escreveu a Bíblia. Não conheço, confessou ela. A mulher que escreveu a bíblia?, eu também não conheço, disse ele, apenas li o livro. Segismundo. . Ofereces-me um livro?, pediu ela. Não, disse-lhe ele. Escolhes-me um livro?, então, rogou-lhe ela. Ele afastou-se, sondou as prateleiras, literatura brasileira, éme. Moacyr Scliar, Exército de um Homem Só, foi o título escrutinado. Ele acabou por oferecer-lhe o livro. Pagou-o. Saíram. Por que é que me ofereceste este livro?, é sobre o quê?, perguntou ela, depois, com a aguda curiosidade de apaixonada. Porque, não sendo, é sobre mim, respondeu ele. E o Moacyr Scliar?, quem é o Moacyr Scliar?, quis ela saber. É um médico, judeu, brasileiro, que escreveu A Mulher que Escreveu a Bíblia. Não conheço, confessou ela. A mulher que escreveu a bíblia?, eu também não conheço, disse ele, apenas li o livro.

Desafio. Ela, queres testar-me? Ele, não. Ela, não faz mal, testa-me na mesma. Ele, é melhor não. Ela, insistente, vá lá. Ele, está bem, sabes fazer sopa de agrião? Ela, desisto. Vamos? Ele, vamos. Segismundo. . Ela, queres testar-me? Ele, não. Ela, não faz mal, testa-me na mesma. Ele, é melhor não. Ela, insistente, vá lá. Ele, está bem, sabes fazer sopa de agrião? Ela, desisto. Vamos? Ele, vamos.

Pélago. Ela, olha em frente, o que vês? Ele, vejo-te a ti. Ela, desejas-me? Ele, evasivo, não creio que essa seja a interrogação adequada. Ela, ao mesmo tempo de se virava para ele, julgas-me o teu precipício? Ele caminhou para ela, pretendia dar uma resposta mais próximo dela. Mas ela afastou-se, deu alguns passos atrás, e repetiu julgas-me o teu precipício? Ele, não, acho que não, respondeu sem convicção. Ela, então porque me evitas? Ele, porque não quero fazer-te sofrer, depois. Ela, eu perdoo-te. Ele, mas eu não quero ser perdoado, percebes? Ela, não, não percebo. Afinal, julgas-me o teu precipício? ou não? Ele, sinceramente não sei. E, como se fosse em busca da resposta, precipitou-se para ela. Segismundo. . Ela, olha em frente, o que vês? Ele, vejo-te a ti. Ela, desejas-me? Ele, evasivo, não creio que essa seja a interrogação adequada. Ela, ao mesmo tempo de se virava para ele, julgas-me o teu precipício? Ele caminhou para ela, pretendia dar uma resposta mais próximo dela. Mas ela afastou-se, deu alguns passos atrás, e repetiu julgas-me o teu precipício? Ele, não, acho que não, respondeu sem convicção. Ela, então porque me evitas? Ele, porque não quero fazer-te sofrer, depois. Ela, eu perdoo-te. Ele, mas eu não quero ser perdoado, percebes? Ela, não, não percebo. Afinal, julgas-me o teu precipício? ou não? Ele, sinceramente não sei. E, como se fosse em busca da resposta, precipitou-se para ela.

Plebe. O Nicky Florentino. . O José , danado, é dos que não se deixa enganar. Por isso vê o povo como ele é. Mais turba do que grei.

A outra peça do cartel. Depois de um breve interregno, o PS, agora sob o consulado do senhor eng.º José Sócrates, volta a ser o que é, um partido político, uma máquina de rateio do poder. É isso que inquieta. Nicky Florentino. . Depois de um breve interregno, o PS, agora sob o consulado do senhor eng.º José Sócrates, volta a ser o que é, um partido político, uma máquina de rateio do poder. É isso que inquieta.

Porque amanhã é sempre longe demais. Disse o senhor dr. João Soares, consciente da sua derrota no concurso a senhor secretário-geral do PS, “em democracia há batalhas que se ganham e batalhas que se perdem. O que tem de grande virtude o sistema democrático é que os resultados são sempre justos e podem sempre ser corrigidos no futuro”. Este é um dos piedosos enganos da cartilha democrática. A crença de que em democracia o futuro nunca acaba, não se esgota, tende a caucionar a irresponsabilidade e a negligência. É um facto que se aprende com os erros. Mas não é apenas com os erros que se aprende. Sequer é necessário repetir os erros para calibrar e sofisticar a aprendizagem. É por isso que a democracia, enquanto ordem, devia ser uma ordem de urgência, não a normalidade do engano frequente e repetido. Nicky Florentino. . Disse o senhor dr. João Soares, consciente da sua derrota no concurso a senhor secretário-geral do PS, “em democracia há batalhas que se ganham e batalhas que se perdem. O que tem de grande virtude o sistema democrático é que os resultados são sempre justos e podem sempre ser corrigidos no futuro”. Este é um dos piedosos enganos da cartilha democrática. A crença de que em democracia o futuro nunca acaba, não se esgota, tende a caucionar a irresponsabilidade e a negligência. É um facto que se aprende com os erros. Mas não é apenas com os erros que se aprende. Sequer é necessário repetir os erros para calibrar e sofisticar a aprendizagem. É por isso que a democracia, enquanto ordem, devia ser uma ordem de urgência, não a normalidade do engano frequente e repetido.

Gravidade(s). Em entrevista ao Expresso, disse o senhor Prof. Doutor David Justino, “mais grave que mudar de partido de Governo é mudar de Governo dentro do mesmo partido”. Não obstante a lucidez, é isto o despeito do fulano. Nicky Florentino. . Em entrevista ao Expresso, disse o senhor Prof. Doutor David Justino, “mais grave que mudar de partido de Governo é mudar de Governo dentro do mesmo partido”. Não obstante a lucidez, é isto o despeito do fulano.

Amor errante. Chega o desamor, o abandono. A sensação que a vida vai ser impossível sem ela, ela que partiu, ela que fugiu. É preciso rir do facto. Sabe-se que, pela erosão da memória, alguns anos depois quem foi abandonado também rirá. Quem consegue esquecer, quem esquece ri. Mas quem esquece também se engana. Volvidos anos, acontece que, efectivamente, foi impossível a vida sem aquela mulher. É a evidência, a nitidez desse facto que o tempo soterra. E é sobre esse aterro que o erro do amor se faz novamente. Segismundo. . Chega o desamor, o abandono. A sensação que a vida vai ser impossível sem ela, ela que partiu, ela que fugiu. É preciso rir do facto. Sabe-se que, pela erosão da memória, alguns anos depois quem foi abandonado também rirá. Quem consegue esquecer, quem esquece ri. Mas quem esquece também se engana. Volvidos anos, acontece que, efectivamente, foi impossível a vida sem aquela mulher. É a evidência, a nitidez desse facto que o tempo soterra. E é sobre esse aterro que o erro do amor se faz novamente.

Consideração contra mundo, ii. Porque é na solidão que se aprende quem se é, no plateau ecológico é-se o que se aprendeu meticulosamente a esconder e, com a máscara, a deixar de ser. Torna-se, assim, possível o engano. Segismundo. . Porque é na solidão que se aprende quem se é, no plateau ecológico é-se o que se aprendeu meticulosamente a esconder e, com a máscara, a deixar de ser. Torna-se, assim, possível o engano.

Consideração contra mundo, i. Se se é humano, nasce-se com um potencial de besta. E a grei não apenas conforma esse potencial como ainda, por uma superlativa necessidade funcional, o catalisa. Inventa-se, assim, a necessidade da puta da ordem. Segismundo. . Se se é humano, nasce-se com um potencial de besta. E a grei não apenas conforma esse potencial como ainda, por uma superlativa necessidade funcional, o catalisa. Inventa-se, assim, a necessidade da puta da ordem.

Documento. Está escrito numa folha Após o oitavo Black Label, o discernimento flui, se flui, com dificuldade, lento. Apelo, por isso, a deus. Deus, se existes, segura-me antes da loucura. Deus não me responde. Entrego-me, por isso, livre, à loucura. Leva-me. Que eu vou. um testemunho estranho, não assinado. Segismundo. . Está escrito numa folha Após o oitavo Black Label, o discernimento flui, se flui, com dificuldade, lento. Apelo, por isso, a deus. Deus, se existes, segura-me antes da loucura. Deus não me responde. Entrego-me, por isso, livre, à loucura. Leva-me. Que eu vou. um testemunho estranho, não assinado.

Separação. No desamor, sofre, perde quem tem mais memória, disse ele. Ela primiu o gatilho. Estourou-lhe o arquivo, rebentou a cabeça do desgraçado. Não para, por piedoso gesto, o resgatar à dor. Mas por mero gozo seu. Ela já o tinha esquecido. E não queria ter recordações dele. O Marquês. . No desamor, sofre, perde quem tem mais memória, disse ele. Ela primiu o gatilho. Estourou-lhe o arquivo, rebentou a cabeça do desgraçado. Não para, por piedoso gesto, o resgatar à dor. Mas por mero gozo seu. Ela já o tinha esquecido. E não queria ter recordações dele.

Todos à roleta. O PS que existiu nestes últimos tempos vai acabar. A notícia não é boa. Hoje e amanhã, a trupe socialista escrutina o futuro senhor secretário-geral da causa. O que dizer? Que fiquem, para jogar, ensaiar apostas. A época do casino vai recomeçar. Inevitavelmente. A batota, essa, apenas continua. Nicky Florentino. . O PS que existiu nestes últimos tempos vai acabar. A notícia não é boa. Hoje e amanhã, a trupe socialista escrutina o futuro senhor secretário-geral da causa. O que dizer? Que fiquem, para jogar, ensaiar apostas. A época do casino vai recomeçar. Inevitavelmente. A batota, essa, apenas continua.

Ida e volta. Ele, adeus, tenho que ir. Ela, tens que ir? Abraçou-o e encostou a cabeça ao ombro esquerdo dele, tentando cativá-lo nos seus braços. Ele, sim, tenho um quiz logo à noite. Ela, olhando-o nos olhos, surpreendida, um quiz? Ele, sim, um quiz. Ela, onde? Ele, longe. Ela, longe?, lá de onde vens? Ele, sim. Ela, mas amanhã não vamos à Zé dos Bois? Ele, eu vou. Ela, corrigiu-o, vamos. E depois? Ele, depois?, não sei se há depois. Segismundo. . Ele, adeus, tenho que ir. Ela, tens que ir? Abraçou-o e encostou a cabeça ao ombro esquerdo dele, tentando cativá-lo nos seus braços. Ele, sim, tenho um quiz logo à noite. Ela, olhando-o nos olhos, surpreendida, um quiz? Ele, sim, um quiz. Ela, onde? Ele, longe. Ela, longe?, lá de onde vens? Ele, sim. Ela, mas amanhã não vamos à Zé dos Bois? Ele, eu vou. Ela, corrigiu-o, vamos. E depois? Ele, depois?, não sei se há depois.

Carícias. Tens um cabelo macio, fofo, gosto de passar as mãos no teu cabelo, perder nele os meus dedos, sabias?, disse-lhe ela. Ele nada disse, descalçou-se e arranjou melhor posição no colo dela. Ficas?, perguntou ela, com se lhe pedisse para ficar. Não posso, respondeu ele, tenho que ir. E fechou os olhos, talvez por desejar, mas não poder, ficar. Segismundo. . Tens um cabelo macio, fofo, gosto de passar as mãos no teu cabelo, perder nele os meus dedos, sabias?, disse-lhe ela. Ele nada disse, descalçou-se e arranjou melhor posição no colo dela. Ficas?, perguntou ela, com se lhe pedisse para ficar. Não posso, respondeu ele, tenho que ir. E fechou os olhos, talvez por desejar, mas não poder, ficar.

Sequência íntima, tempo dois. Ele, tu?, saudades?, porquê?, sentes as minhas ausências? Ela, não, o que sinto são as tuas presenças, raras. E ele, que se julgava inocente, sentiu-se subitamente culpado. Mau augúrio. Segismundo. . Ele, tu?, saudades?, porquê?, sentes as minhas ausências? Ela, não, o que sinto são as tuas presenças, raras. E ele, que se julgava inocente, sentiu-se subitamente culpado. Mau augúrio.

Sequência íntima, tempo um. Ela perguntou-lhe saudades. Ele, saudades?, sim, senti saudades disto. Ela, disto?, de nós?, procurou a precisão. Ele, não, da Radar, a rádio – noventa e sete ponto oito, frequência modelada, stéreo –, que ele persistia em sintonizar no carro dela. Segismundo. . Ela perguntou-lhe saudades. Ele, saudades?, sim, senti saudades disto. Ela, disto?, de nós?, procurou a precisão. Ele, não, da Radar, a rádio – noventa e sete ponto oito, frequência modelada, stéreo –, que ele persistia em sintonizar no carro dela.

Açúcar de engano. O veneno a que ele regressou amarga-lhe e já lhe morre dentro. Talvez insistindo ele consiga rever o que procura, veados a comer coelhos. Insistiu. Ela está aí, veio buscar-te, ouviu ele. Levantou o braço direito, agitou-o com um gesto brusco de recusa e disse com voz grave não quero ir ainda. Ela que volte mais tarde. Ela, a ressaca?, ela, a lucidez da ressaca?, há-de voltar. Volta sempre. A alucinação certa é que não. Segismundo. . O veneno a que ele regressou amarga-lhe e já lhe morre dentro. Talvez insistindo ele consiga rever o que procura, veados a comer coelhos. Insistiu. Ela está aí, veio buscar-te, ouviu ele. Levantou o braço direito, agitou-o com um gesto brusco de recusa e disse com voz grave não quero ir ainda. Ela que volte mais tarde. Ela, a ressaca?, ela, a lucidez da ressaca?, há-de voltar. Volta sempre. A alucinação certa é que não.

Ofício de carrasco. Perante o silêncio do meliante, agarrou no revólver e, inclemente, com a coronha da arma, desferiu quatro fortes pancadas, uma contra o crânio dele, três contra as costelas. Supino gozo lhe proporcinou o facto, ver o corpo tombar, em agonia, e, caído no chão, a fechar-se, para protecção, na posição fetal. Seguiram-se os pontapés, cada um assestado com uma impressionante fúria, como se o algoz pretendesse prolongar o êxtase que sentia para além do limite. O Marquês. . Perante o silêncio do meliante, agarrou no revólver e, inclemente, com a coronha da arma, desferiu quatro fortes pancadas, uma contra o crânio dele, três contra as costelas. Supino gozo lhe proporcinou o facto, ver o corpo tombar, em agonia, e, caído no chão, a fechar-se, para protecção, na posição fetal. Seguiram-se os pontapés, cada um assestado com uma impressionante fúria, como se o algoz pretendesse prolongar o êxtase que sentia para além do limite.

Fartar vilanagem. A senhora dr.ª Celeste Cardona foi nomeada administradora da CaixaGeraldeDepósitos. Podia ter sido pior. Podia ter sido nomeada para qualquer outra missão que ela soubesse desempenhar cabalmente. Nicky Florentino. . A senhora dr.ª Celeste Cardona foi nomeada administradora da CaixaGeraldeDepósitos. Podia ter sido pior. Podia ter sido nomeada para qualquer outra missão que ela soubesse desempenhar cabalmente.

Tarantella. O Beasley, o Marco Beasley vai estar em Mafra, creio que no dia dez, informou ela. Queres ir?, perguntou, depois, desafiando a indiferença dele. A Mafra?, se eu quero ir a Mafra?, no dia dez?, reagiu ele. Sim, gostava que fosses comigo, vai ser bom, de certeza, disse ela. Vai ser bom?, o quê?, eu ir contigo? ou o Marco Beasley?, quis ele saber. Vai ser bom o Marco Beasley, claro, vás ou não vás comigo, sentenciou ela, a olhá-lo, clemente, nos olhos. Sendo assim, considero-me dispensado, esquivou-se ele. Devias, antes, considerar-te convidado, repreendeu-o ela. E, súbito, saiu da sala, sentindo-se arrombada no peito, dilacerada, por ele não ter percebido o seu rogo, a sua súplica. Ou isso ou fingiu, ele. Segismundo. . O Beasley, o Marco Beasley vai estar em Mafra, creio que no dia dez, informou ela. Queres ir?, perguntou, depois, desafiando a indiferença dele. A Mafra?, se eu quero ir a Mafra?, no dia dez?, reagiu ele. Sim, gostava que fosses comigo, vai ser bom, de certeza, disse ela. Vai ser bom?, o quê?, eu ir contigo? ou o Marco Beasley?, quis ele saber. Vai ser bom o Marco Beasley, claro, vás ou não vás comigo, sentenciou ela, a olhá-lo, clemente, nos olhos. Sendo assim, considero-me dispensado, esquivou-se ele. Devias, antes, considerar-te convidado, repreendeu-o ela. E, súbito, saiu da sala, sentindo-se arrombada no peito, dilacerada, por ele não ter percebido o seu rogo, a sua súplica. Ou isso ou fingiu, ele.

Agendamento. A propósito, amanhã vou ver o último do Kusturica, disse ele. Ela fingiu não ouvir. Ele estranhou, esperava outra reacção. A Vida é... qualquer coisa, experimentou ele a curiosidade dela. A Vida é Bela, não é?, ela trocista. Não, não é o A Vida é Bela, esse é do Benigni, pá, é o A Vida é... qualquer coisa que não recordo, tentou ele defender-se da provocação. A Vida é um Milagre, menino, é A Vida é um Milagre, surpreendeu-o ela. Exacto, disse ele, desarmado. Já vi, acusou ela. Já viste?, ele mostrou espanto. Sim, já vi, confirmou ela. Ensinaste-me que, quando vamos ao cinema, não devemos deixar os outros escolher os filmes que vamos ver, assim como não devemos esperar pelos outros para irmos juntos ver o filme que queremos ver. Percebendo o espanto dele, interpelou-o, pensei que estas regras também se aplicavam a ti. E aplicam, defendeu-se ele, aplicam-se a mim enquanto sujeito, não enquanto paciente. Não sabia, desculpa, tens que ter paciência, destilou ela o seu cinismo. Segismundo. . A propósito, amanhã vou ver o último do Kusturica, disse ele. Ela fingiu não ouvir. Ele estranhou, esperava outra reacção. A Vida é... qualquer coisa, experimentou ele a curiosidade dela. A Vida é Bela, não é?, ela trocista. Não, não é o A Vida é Bela, esse é do Benigni, pá, é o A Vida é... qualquer coisa que não recordo, tentou ele defender-se da provocação. A Vida é um Milagre, menino, é A Vida é um Milagre, surpreendeu-o ela. Exacto, disse ele, desarmado. Já vi, acusou ela. Já viste?, ele mostrou espanto. Sim, já vi, confirmou ela. Ensinaste-me que, quando vamos ao cinema, não devemos deixar os outros escolher os filmes que vamos ver, assim como não devemos esperar pelos outros para irmos juntos ver o filme que queremos ver. Percebendo o espanto dele, interpelou-o, pensei que estas regras também se aplicavam a ti. E aplicam, defendeu-se ele, aplicam-se a mim enquanto sujeito, não enquanto paciente. Não sabia, desculpa, tens que ter paciência, destilou ela o seu cinismo.

Preâmbulo a agendamento. Que música é essa?, perguntou curiosa. É música balcânica, Sandy Lopičić Orkestar, esclareceu ele. Faz lembrar os filmes do Kusturica, não é?, disse ela. Faz, confirmou ele. Segismundo. . Que música é essa?, perguntou curiosa. É música balcânica, Sandy Lopičić Orkestar, esclareceu ele. Faz lembrar os filmes do Kusturica, não é?, disse ela. Faz, confirmou ele.

Noite em motivo flush. Há um morno no ar e ela está sossegada, devolvida ao sono, quando ele ouve a canção. all my life, i worshipped her... Está suspensa num torpor que a ausenta, reservada para si mesma, entregue ao ritmo do corpo, cansada. her golden voice, her beauty's beat… Na voragem do olhar, olha-a. how she made us feel... E ela, ali, madrugada serena, demasiado serena. how she made me real... Vigia-lhe a inocência, acompanhando o modo como conserta o corpo nos lençóis. and the ground beneath her feet... Rende-se à vontade de se deitar ao lado dela. and the ground beneath her feet... Mas, antes, olha-a uma vez mais, sentindo-se a sentinela que a vigia. and now i can't be sure of anything... Amo-te, diz ele em silêncio. black is white, and cold is heat... Amo-te, repete em silêncio, para a poupar à perturbação de um despertar, mesmo sabendo que, quando acorda, ela sorri quase sempre. for what i worshipped stole my love away... Ao olhá-la, sente-se nas margens de uma distância a que chamam solidão. it was the ground beneath her feet... E é na reserva dessa distância que decifra mistérios. it was the ground beneath her feet... Ainda que os corpos dele e dela cavem uma ilusão. E na mesma elipse esbocem o rasgo suficiente por onde entrará a fúria de quem ama. go lightly down your darkened way... Primeiro como remorso sonolento, mas não indolente. go lightly underground... Depois como corrente suicida, que obriga ao choque da carne, ao contacto duro com a superfície da distância que se desvanece no encontro. i'll be down there in another day... Fragrância feminina, incêndio trôpego, vigília, silêncio. i won't rest untill you're found... Sensação que ninguém os separa, se assim, incertos, forem capazes de se consumirem. let me love you true, let me rescue you... Ele já não resiste à distância, embora pequena seja. let me lead you to where two roads meet... Rende-se, mas torna a hesitar. o come back above... Esta é a última oportunidade para se furtar à rendição. where there's only love... Cede quando percebe que a suave respiração dela é justa, terna e requisita um compasso cúmplice. and the ground beneath her feet... E, junto dela, já corpo rendido também, adormece, ainda antes da canção terminar, naquele quarto onde Lisboa acontece cerco, onde o som foi sufocado pelo sono. and the ground beneath her feet... Segismundo. . Há um morno no ar e ela está sossegada, devolvida ao sono, quando ele ouve a canção. all my life, i worshipped her... Está suspensa num torpor que a ausenta, reservada para si mesma, entregue ao ritmo do corpo, cansada. her golden voice, her beauty's beat… Na voragem do olhar, olha-a. how she made us feel... E ela, ali, madrugada serena, demasiado serena. how she made me real... Vigia-lhe a inocência, acompanhando o modo como conserta o corpo nos lençóis. and the ground beneath her feet... Rende-se à vontade de se deitar ao lado dela. and the ground beneath her feet... Mas, antes, olha-a uma vez mais, sentindo-se a sentinela que a vigia. and now i can't be sure of anything... Amo-te, diz ele em silêncio. black is white, and cold is heat... Amo-te, repete em silêncio, para a poupar à perturbação de um despertar, mesmo sabendo que, quando acorda, ela sorri quase sempre. for what i worshipped stole my love away... Ao olhá-la, sente-se nas margens de uma distância a que chamam solidão. it was the ground beneath her feet... E é na reserva dessa distância que decifra mistérios. it was the ground beneath her feet... Ainda que os corpos dele e dela cavem uma ilusão. E na mesma elipse esbocem o rasgo suficiente por onde entrará a fúria de quem ama. go lightly down your darkened way... Primeiro como remorso sonolento, mas não indolente. go lightly underground... Depois como corrente suicida, que obriga ao choque da carne, ao contacto duro com a superfície da distância que se desvanece no encontro. i'll be down there in another day... Fragrância feminina, incêndio trôpego, vigília, silêncio. i won't rest untill you're found... Sensação que ninguém os separa, se assim, incertos, forem capazes de se consumirem. let me love you true, let me rescue you... Ele já não resiste à distância, embora pequena seja. let me lead you to where two roads meet... Rende-se, mas torna a hesitar. o come back above... Esta é a última oportunidade para se furtar à rendição. where there's only love... Cede quando percebe que a suave respiração dela é justa, terna e requisita um compasso cúmplice. and the ground beneath her feet... E, junto dela, já corpo rendido também, adormece, ainda antes da canção terminar, naquele quarto onde Lisboa acontece cerco, onde o som foi sufocado pelo sono. and the ground beneath her feet...

Noites quentes. A noite está bonita, morna, disse ela, debruçada sobre a varanda, a olhar o rio. Ficas comigo?, perguntou, depois. Como ontem?, inquiriu ele. Não, como hoje, disse ela. Estendeu-se o silêncio, sem ele responder. Quero-te, sabias?, confessou ela, sem desespero, mas com intenção. Ele sabia, mas fingiu não saber. E prolongou o silêncio. Segismundo. . A noite está bonita, morna, disse ela, debruçada sobre a varanda, a olhar o rio. Ficas comigo?, perguntou, depois. Como ontem?, inquiriu ele. Não, como hoje, disse ela. Estendeu-se o silêncio, sem ele responder. Quero-te, sabias?, confessou ela, sem desespero, mas com intenção. Ele sabia, mas fingiu não saber. E prolongou o silêncio.

Canções, worldmaking e fuga. Ela, a ouvir, em correr lento, Leonard Cohen, gostas deste álbum? Ele, estou velho, eu sou mais pelo Songs of Love and Hate. Ela, mais pelas songs of hate do que pelas songs of love, presumo. Ele, não, mais por mil novecentos e setenta e um do que por dois mil e quatro. Ela, não percebi. Ele, mais pela inocência do que pela consciência, percebes? Ela, dói-te assim tanto viver? Ele, quando oiço música não, mas o mundo, comigo lá dentro, continua lá fora, à minha espera. Ela, então por que é que não ficas aqui?, comigo. Dito isto, inclinou a cabeça até a confortar no ombro dele, ao seu lado. Ele, porque aqui dentro, nesta casa, o mundo és tu. Segismundo. . Ela, a ouvir, em correr lento, Leonard Cohen, gostas deste álbum? Ele, estou velho, eu sou mais pelo Songs of Love and Hate. Ela, mais pelas songs of hate do que pelas songs of love, presumo. Ele, não, mais por mil novecentos e setenta e um do que por dois mil e quatro. Ela, não percebi. Ele, mais pela inocência do que pela consciência, percebes? Ela, dói-te assim tanto viver? Ele, quando oiço música não, mas o mundo, comigo lá dentro, continua lá fora, à minha espera. Ela, então por que é que não ficas aqui?, comigo. Dito isto, inclinou a cabeça até a confortar no ombro dele, ao seu lado. Ele, porque aqui dentro, nesta casa, o mundo és tu.

Agenda e quantos. Ele, sábado vou à Zé dos Bois. Ela, enfática, vamos! Ele, Lydia Lunch, é a Lydia Lunch, eu vou ver a Lydia Lunch. Ela, novamente enfática, vamos! A estranha forma do plural ameaça impor-se, sentiu ele. Segismundo. . Ele, sábado vou à Zé dos Bois. Ela, enfática, vamos! Ele, Lydia Lunch, é a Lydia Lunch, eu vou ver a Lydia Lunch. Ela, novamente enfática, vamos! A estranha forma do plural ameaça impor-se, sentiu ele.

O morto-vivo. Disse que tinhas morrido. Se te perguntarem, confirma, se fazes o obséquio. Rogou-lhe ela. O Marquês. . Disse que tinhas morrido. Se te perguntarem, confirma, se fazes o obséquio. Rogou-lhe ela.

Cidadãos de nós. Escreveu o senhor dr. Nobre Guedes no artigo estampado na edição de hoje do Público, “eu acredito que a transparência no poder é uma obrigação moral, e que a opacidade das decisões é uma violação do contrato de confiança que temos com os nossos eleitores, com os nossos cidadãos”. Com os nossos cidadãos... Quem raio é o agente possessivo dos cidadãos? Nicky Florentino. . Escreveu o senhor dr. Nobre Guedes no artigo estampado na edição de hoje do Público, “eu acredito que a transparência no poder é uma obrigação moral, e que a opacidade das decisões é uma violação do contrato de confiança que temos com os nossos eleitores, com os nossos cidadãos”. Com os nossos cidadãos... Quem raio é o agente possessivo dos cidadãos?

A virtude e a salvação. O senhor dr. Luís Nobre Guedes, consabido senhor ministro para a causa ecológica e da ordem dos chãos, escreveu um artigo, estampado na edição de hoje do Público, em que, a propósito do poder, revela alguns dos seus acreditares em relação ao deplorável estado da Pátria. Exemplo, “eu acredito que existem soluções contra este adormecimento moral e contra esta passividade política”. Não espanta, ai!, ui!, este acreditar tão ingénuo do fulano. Pois ele tanto acredita nisso quanto acredita no menino Jesus. O que, quanto a credos políticos na hodiernidade, convenhamos, não é grande credencial. Nicky Florentino. . O senhor dr. Luís Nobre Guedes, consabido senhor ministro para a causa ecológica e da ordem dos chãos, escreveu um artigo, estampado na edição de hoje do Público, em que, a propósito do poder, revela alguns dos seus acreditares em relação ao deplorável estado da Pátria. Exemplo, “eu acredito que existem soluções contra este adormecimento moral e contra esta passividade política”. Não espanta, ai!, ui!, este acreditar tão ingénuo do fulano. Pois ele tanto acredita nisso quanto acredita no menino Jesus. O que, quanto a credos políticos na hodiernidade, convenhamos, não é grande credencial.

O testemunho silente. Sobre a situação, o senhor Prof. Doutor David Justino, o anterior senhor ministro da Educação, remeteu-se ao silêncio. Em nome do interesse público. Dele. Nicky Florentino. . Sobre a situação, o senhor Prof. Doutor David Justino, o anterior senhor ministro da Educação, remeteu-se ao silêncio. Em nome do interesse público. Dele.

O Governo não sabe listar, iô! O contingente de fulanos do PSD e do CDS/PP abancados no hemiciclo de São Bento recusaram liminarmente a hipótese de um inquérito parlamentar, iniciativa do PCP, ao processo de colocação do professorado. Argumentam as criaturas que suportam, na Assembleia da República, o consórcio governamental que tal inquérito seria um modo político de apurar responsabilidades. Ou seja, não pode ser porque são o que são, os senhores deputados e os inquéritos parlamentares. Nenhuma novidade. Nicky Florentino. O contingente de fulanos do PSD e do CDS/PP abancados no hemiciclo de São Bento recusaram liminarmente a hipótese de um inquérito parlamentar, iniciativa do PCP, ao processo de colocação do professorado. Argumentam as criaturas que suportam, na Assembleia da República, o consórcio governamental que tal inquérito seria um modo político de apurar responsabilidades. Ou seja, não pode ser porque são o que são, os senhores deputados e os inquéritos parlamentares. Nenhuma novidade.

Equinócio. Ela, logo, voltas? Ele, para ti? Ela, não, para casa, esta casa. Ele, não, vou, solto, ver o Outono começar. Queres vir? Ela, contigo? Ele, sim, comigo. Ela, encontramo-nos onde? Ele, lá. Ela, e podemos ir à ananana? Ele, podemos. Ela, e podemos ir de mãos dadas? Ele, não, não podemos ir de mãos dadas. Ela, porquê? Ele, porque o princípio do Outono é o princípio do Outono, não se partilha. Ela, então por que é que me convidaste? Ele, porque, assim, eu e tu podemos não partilhá-lo juntos. Ela, está bem. Disse-o e sorriu. Com a esperança de conseguir comungar com ele o princípio do Outono. Ele sabe que ela conseguirá. Ele apenas não sabe se ele-mesmo conseguirá. Ou se o Outono, que começa, como eles também começam, o permitirá. Segismundo. . Ela, logo, voltas? Ele, para ti? Ela, não, para casa, esta casa. Ele, não, vou, solto, ver o Outono começar. Queres vir? Ela, contigo? Ele, sim, comigo. Ela, encontramo-nos onde? Ele, lá. Ela, e podemos ir à ananana? Ele, podemos. Ela, e podemos ir de mãos dadas? Ele, não, não podemos ir de mãos dadas. Ela, porquê? Ele, porque o princípio do Outono é o princípio do Outono, não se partilha. Ela, então por que é que me convidaste? Ele, porque, assim, eu e tu podemos não partilhá-lo juntos. Ela, está bem. Disse-o e sorriu. Com a esperança de conseguir comungar com ele o princípio do Outono. Ele sabe que ela conseguirá. Ele apenas não sabe se ele-mesmo conseguirá. Ou se o Outono, que começa, como eles também começam, o permitirá.

Manhã. Porque não acordei, não me recordo de te ter sonhado, disse ele. Ao lado, ela, estranha, percebeu a mensagem. Decidiu ficar. A casa, a cama não eram as dele. E quem és tu?, hoje?, perguntou ela. A reposta que ele lhe deu foi um beijo, nos lábios. Depois encontrou o peito dela com o seu. Para ficar também. Segismundo. . Porque não acordei, não me recordo de te ter sonhado, disse ele. Ao lado, ela, estranha, percebeu a mensagem. Decidiu ficar. A casa, a cama não eram as dele. E quem és tu?, hoje?, perguntou ela. A reposta que ele lhe deu foi um beijo, nos lábios. Depois encontrou o peito dela com o seu. Para ficar também.

Autofagia das paixões. Costumas regressar aos lugares onde foste feliz?, perguntou-lhe. Se forem mulheres, não. Passados há que não admitem futuro, disse. Segismundo. . Costumas regressar aos lugares onde foste feliz?, perguntou-lhe. Se forem mulheres, não. Passados há que não admitem futuro, disse.

Roupa lavada. O Zé Vitório comprou lixívia Neoblanc para tirar as nódoas das suas maculadas t-shirts. Ignaro na arte, pareceu-lhe adequado aplicar uma dose, uma tampa cheia, sobre cada nódoa. Por este generoso processo conseguiu destruir quatro t-shirts. Quatro t-shirts para o galheiro, como ele disse. Segismundo. . O Zé Vitório comprou lixívia Neoblanc para tirar as nódoas das suas maculadas t-shirts. Ignaro na arte, pareceu-lhe adequado aplicar uma dose, uma tampa cheia, sobre cada nódoa. Por este generoso processo conseguiu destruir quatro t-shirts. Quatro t-shirts para o galheiro, como ele disse.

Da (des)ilusão. O que leva alguém a crer mais na ficção do que na realidade? Provavelmente a vontade de ser feliz. Provavelmente o alívio. Seja como for, as coisas são como foram e são. Não diferentes. Segismundo. . O que leva alguém a crer mais na ficção do que na realidade? Provavelmente a vontade de ser feliz. Provavelmente o alívio. Seja como for, as coisas são como foram e são. Não diferentes.

Credo. Sei da vida, não sei do amor, disse-lhe ele. Ela, aconchegada no seu peito, recolhida no corpo dele – como se fosse um abrigo –, não quis acreditar. No momento, o coração, a paixão traiu-lhe a coragem. Por isso, o sofrimento dela encontra-se na oportunidade da confirmação. Provavelmente breve. O Marquês. . Sei da vida, não sei do amor, disse-lhe ele. Ela, aconchegada no seu peito, recolhida no corpo dele – como se fosse um abrigo –, não quis acreditar. No momento, o coração, a paixão traiu-lhe a coragem. Por isso, o sofrimento dela encontra-se na oportunidade da confirmação. Provavelmente breve.

Erro de casting. Provado, na pátria, e-government não Compta. Nicky Florentino. . Provado, na pátria, e-government não Compta.

Manufacturar. A senhora ministra da Educação informou que, falhado o processo informático de seriação dos professores, tudo irá ser feito à mão. Era mais aconselhado que fosse com a cabeça. Nicky Florentino. . A senhora ministra da Educação informou que, falhado o processo informático de seriação dos professores, tudo irá ser feito à mão. Era mais aconselhado que fosse com a cabeça.

Mudança de ramo de actividade na rua Viriato. Brevemente vou deixar de vender música e vou passar a vender suicídios, disse-lhe o Tomás. Segismundo. . Brevemente vou deixar de vender música e vou passar a vender suicídios, disse-lhe o Tomás.

Com cd quem ganha (não) é você. Foi apresentado um compact disc com canções que musicam textos do senhor dr. Manuel Alegre, cuja comercialização visa proporcionar receitas para a sua campanha para senhor secretário-geral da trupe socialista. Ora aí está um bom motivo para o não comprar. Segismundo. . Foi apresentado um compact disc com canções que musicam textos do senhor dr. Manuel Alegre, cuja comercialização visa proporcionar receitas para a sua campanha para senhor secretário-geral da trupe socialista. Ora aí está um bom motivo para o não comprar.

Seabra’s list. Quatro, hora da madrugada. A lista de colocação de professores foi finalmente divulgada. Mau prenúncio. Segismundo. . Quatro, hora da madrugada. A lista de colocação de professores foi finalmente divulgada. Mau prenúncio.

Feitiço. Com o(s) último(s) de Nick Cave & the Bad Seeds na mão, és mais pelo rosa? ou pelo verde?, perguntou-lhe. Começou ele a responder, não sei

entretanto fechou o livro por instantes, a mão esquerda a segurar a lombada e o indicador da mão direita a marcar as páginas, para acompanhar Spell, uma das canções d’The Lyre of Orpheus,

I have no abiding memory

No awakening, no flaming dart

No word of consolation

No arrow through my heart

Only a feeble notion

A glimmer from afar

That I cling to with my fingers

As we go spinning wildly through the stars…

e não sei se quero saber, continuou e rematou ele a resposta, regressando com os olhos a Erzébet Báthory. La Contesse Sanglante, escrito por Valentine Penrose. Segismundo. . Com o(s) último(s) de Nick Cave & the Bad Seeds na mão, és mais pelo rosa? ou pelo verde?, perguntou-lhe. Começou ele a responder, não seientretanto fechou o livro por instantes, a mão esquerda a segurar a lombada e o indicador da mão direita a marcar as páginas, para acompanhar Spell, uma das canções d’The Lyre of Orpheus,I have no abiding memoryNo awakening, no flaming dartNo word of consolationNo arrow through my heartOnly a feeble notionA glimmer from afarThat I cling to with my fingersAs we go spinning wildly through the stars…e não sei se quero saber, continuou e rematou ele a resposta, regressando com os olhos a Erzébet Báthory. La Contesse Sanglante, escrito por Valentine Penrose.

Friends forever. Enviou-lhe um ramo de flores. Túlipas. No cartão escreveu no fim como no princípio. Foi assim que decidiu selar a amizade que tinha que ser e nada mais. Segismundo. . Enviou-lhe um ramo de flores. Túlipas. No cartão escreveu no fim como no princípio. Foi assim que decidiu selar a amizade que tinha que ser e nada mais.

O estúpido. Apetece-me chamar-te estúpido. Estúpido! Sei que isso te magoa. Estúpido! Sim, tu. Estúpido! Disse ela. O Marquês. . Apetece-me chamar-te estúpido. Estúpido! Sei que isso te magoa. Estúpido! Sim, tu. Estúpido! Disse ela.

Um desejo secreto. Preenche-o, entre outros desideratos confessáveis, um desejo secreto, o de atropelar, numa madrugada, um peregrino de Fátima. Deseja-o não tanto por vontade de experimentar a vigilância e a disponibilidade do círio mariano que supostamente pairou sobre uma azinheira da Cova de Iria. Mas para poder gozar a agonia da eventual vítima. O Marquês. . Preenche-o, entre outros desideratos confessáveis, um desejo secreto, o de atropelar, numa madrugada, um peregrino de Fátima. Deseja-o não tanto por vontade de experimentar a vigilância e a disponibilidade do círio mariano que supostamente pairou sobre uma azinheira da Cova de Iria. Mas para poder gozar a agonia da eventual vítima.

A via do outro princípio. Jantar?, onde?, perguntou ele. No Páteo do Faustino, respondeu ela. Pela Áoito chegamos lá num instante, explicou. Pela Áoito?, então levas tu o carro, sentenciou ele. Não quero que a estória se repita, acrescentou. Estória?, qual estória?, expôs ela, assim, a sua curiosidade. Ele entregou-lhe a chave do carro e não lhe respondeu. Não lhe podia responder. Segismundo. . Jantar?, onde?, perguntou ele. No Páteo do Faustino, respondeu ela. Pela Áoito chegamos lá num instante, explicou. Pela Áoito?, então levas tu o carro, sentenciou ele. Não quero que a estória se repita, acrescentou. Estória?, qual estória?, expôs ela, assim, a sua curiosidade. Ele entregou-lhe a chave do carro e não lhe respondeu. Não lhe podia responder.

Na bilheteira. Ele comprou três bilhetes para o concerto d’The Magnetic Fields. Mais três bilhetes para o concerto dos Rammstein. Não são bilhetes a mais?, não há alguém a mais?, perguntou-lhe. Talvez não, respondeu ele. Segismundo. . Ele comprou três bilhetes para o concerto d’The Magnetic Fields. Mais três bilhetes para o concerto dos Rammstein. Não são bilhetes a mais?, não há alguém a mais?, perguntou-lhe. Talvez não, respondeu ele.

Regresso. Lisboa. Quase nada passava das seis horas, madrugada, quando ele tocou à campaínha. Ela pouco demorou. És tu, disse ela, sonolenta, sem aparentar surpresa ou estranheza. Entra, autorizou ela, abrindo mais a porta. Ele entrou. Há quantos meses não te via?, dois?, três?, perguntou ela. Desculpa, não devia ter vindo, disse ele. Não peças desculpa, és assim, surges quase sempre de madrugada e raramente avisas, sossegou-o ela. És louco, mas estou habituada a essa forma louca de seres, confessou-lhe. Ele percebeu alterações na casa, na decoração, mas não conseguiu precisar o que tinha mudado. Vejo que já trazes o jornal – o costume, não é? –, disse ela. Senta-te. Ele sentou-se. Então, o que vieste aqui fazer?, perguntou-lhe ela. Não sei, tentar falar de amor, disse ele. Isso não existe, o amor não existe, o que existe são os amores, provocou-o ela. Ele baixou os olhos. Fui eu que te disse isso, não fui?, inquiriu ele. Ela sorriu apenas. E foi directa a uma pergunta que ele não esperava, vens para me amar? Fez-se um breve silêncio antes da resposta. Não, venho para ver o Tejo a acordar. Sei que daquela janela, apontou-a, consigo fazê-lo. Ela apagou a luz da sala, correu os cortinados, abriu a janela e abraçou-o, aninhando-se nos seus braços, transmitindo-lhe o calor de mulher. Estava à tua espera, sabias? Ele não sabia. Beijou-lhe a face e tentou fingir as lágrimas. Então?, anda cá, disse ela. E ele foi. Já tinha ido. Segismundo. . Lisboa. Quase nada passava das seis horas, madrugada, quando ele tocou à campaínha. Ela pouco demorou. És tu, disse ela, sonolenta, sem aparentar surpresa ou estranheza. Entra, autorizou ela, abrindo mais a porta. Ele entrou. Há quantos meses não te via?, dois?, três?, perguntou ela. Desculpa, não devia ter vindo, disse ele. Não peças desculpa, és assim, surges quase sempre de madrugada e raramente avisas, sossegou-o ela. És louco, mas estou habituada a essa forma louca de seres, confessou-lhe. Ele percebeu alterações na casa, na decoração, mas não conseguiu precisar o que tinha mudado. Vejo que já trazes o jornal – o costume, não é? –, disse ela. Senta-te. Ele sentou-se. Então, o que vieste aqui fazer?, perguntou-lhe ela. Não sei, tentar falar de amor, disse ele. Isso não existe, o amor não existe, o que existe são os amores, provocou-o ela. Ele baixou os olhos. Fui eu que te disse isso, não fui?, inquiriu ele. Ela sorriu apenas. E foi directa a uma pergunta que ele não esperava, vens para me amar? Fez-se um breve silêncio antes da resposta. Não, venho para ver o Tejo a acordar. Sei que daquela janela, apontou-a, consigo fazê-lo. Ela apagou a luz da sala, correu os cortinados, abriu a janela e abraçou-o, aninhando-se nos seus braços, transmitindo-lhe o calor de mulher. Estava à tua espera, sabias? Ele não sabia. Beijou-lhe a face e tentou fingir as lágrimas. Então?, anda cá, disse ela. E ele foi. Já tinha ido.

Alegre com todos, contra. O senhor eng.º José Sócrates acusou o senhor dr. Manuel Alegre de, no assunto da co-inceneração em Souselas, ter votado com a direita, portanto contra o Governo socialista de então. O senhor dr. Alegre defendeu-se. Diz que não. Não votou apenas com a direita. Votou também com o BE, o PCP e PEV. Mais arco-íris não podia ser. Nicky Florentino. . O senhor eng.º José Sócrates acusou o senhor dr. Manuel Alegre de, no assunto da co-inceneração em Souselas, ter votado com a direita, portanto contra o Governo socialista de então. O senhor dr. Alegre defendeu-se. Diz que não. Não votou apenas com a direita. Votou também com o BE, o PCP e PEV. Mais arco-íris não podia ser.

O silêncio como precedente. Há motivos, há sempre motivos, para um senhor primeiro-ministro não falar de determinados tópicos. A propósito de uma intervenção do senhor dr. Santana Lopes, um desses motivos, segundo o senhor Prof. Doutor Rebelo de Sousa, é que “o dr. Cavaco nunca falou em refinarias!”. E do que ele não falou não deve, nunca, falar-se. Mas fazer eco do seu silêncio. Nicky Florentino. . Há motivos, há sempre motivos, para um senhor primeiro-ministro não falar de determinados tópicos. A propósito de uma intervenção do senhor dr. Santana Lopes, um desses motivos, segundo o senhor Prof. Doutor Rebelo de Sousa, é que “o dr. Cavaco nunca falou em refinarias!”. E do que ele não falou não deve, nunca, falar-se. Mas fazer eco do seu silêncio.

O senhor ministro motossera. Disse o senhor dr. Paulo Portas, “as pessoas vão perceber que têm um ministro do Ambiente que corta a direito”. Mas quem é que sugeriu ao fulano que os gentios gostam de quem corta a eito? A ecologia, seguro, não é isso. Que alguém lhe explique. Nicky Florentino. . Disse o senhor dr. Paulo Portas, “as pessoas vão perceber que têm um ministro do Ambiente que corta a direito”. Mas quem é que sugeriu ao fulano que os gentios gostam de quem corta a eito? A ecologia, seguro, não é isso. Que alguém lhe explique.

Privação relativa. Erik Olin Wright, um marxiano norte-americano, já disse o que o Nicky Florentino. . Erik Olin Wright, um marxiano norte-americano, já disse o que o João também disse sobre a(s) classe(s) média(s). Chamou-lhe(s) lugar(es) contraditório(s) de classe. Pretendendo com tal rótulo reportar as condições sob as quais uma mole de desgraçados e explorados, anestesiados por um sentimento de menor privação relativa em relação aos ainda mais desgraçados, concorre alacremente para a operação e a reprodução do processo de acumulação capitalista.

Redundância. Eu não vos disse?, disse o Nicky Florentino. . Eu não vos disse?, disse o José

Roleta de tudo e do(s) amor(es). Ela e ele estão apaixonados, perdidamente apaixonados, embriagados pela paixão. Como antes estiveram. Por outro e por outra, respectivamente. Tal e qual como ditado por Lavoisier para as massas. Nada se perde, nada se cria. Tudo se transforma. Com as inexoráveis dores pelo meio. O Marquês. . Ela e ele estão apaixonados, perdidamente apaixonados, embriagados pela paixão. Como antes estiveram. Por outro e por outra, respectivamente. Tal e qual como ditado por Lavoisier para as massas. Nada se perde, nada se cria. Tudo se transforma. Com as inexoráveis dores pelo meio.

Viagem. A coragem foi de comboio para Lisboa. Coragem? Segismundo. . A coragem foi de comboio para Lisboa. Coragem?

Um, dois, dealer, experiência. Começa ele, com o veneno já dentro de si, a ver mais exactas, nítidas as coisas. Amar, verbo intransitivo. Como escreveu Mário de Andrade. Segismundo. . Começa ele, com o veneno já dentro de si, a ver mais exactas, nítidas as coisas. Amar, verbo intransitivo. Como escreveu Mário de Andrade.

Lágrimas por um desconhecido. Ela, de onde é que te conheço? Ele, provavelmente daí, da vida, não sei. Ela, onde é que tens andado?, onde tens escondido esses olhos?, olhos lindos. Ele, por lugares que provavelmente não conheces. Ela, sabias?, sou capaz de me apaixonar por ti. Ele, agora?, aqui? Ela, sim, e amanhã também. Depois tentou o beijo. Ele esquivou-se. Mas sorriu-lhe. E, com a mão direita, tocou-a levemente na face. Ele, desculpa, mas não estou para ninguém, sequer para a tua paixão. Depois saiu. Eles, os outros, dizem que ela ficou a chorar. Segismundo. . Ela, de onde é que te conheço? Ele, provavelmente daí, da vida, não sei. Ela, onde é que tens andado?, onde tens escondido esses olhos?, olhos lindos. Ele, por lugares que provavelmente não conheces. Ela, sabias?, sou capaz de me apaixonar por ti. Ele, agora?, aqui? Ela, sim, e amanhã também. Depois tentou o beijo. Ele esquivou-se. Mas sorriu-lhe. E, com a mão direita, tocou-a levemente na face. Ele, desculpa, mas não estou para ninguém, sequer para a tua paixão. Depois saiu. Eles, os outros, dizem que ela ficou a chorar.

Alucinação. Há quanto tempo não vês veados a comer coelhos?, perguntou-lhe alguém de dentro, talvez a consciência. Não sei. Mas para a semana vou ver, respondeu ele. E vai. Segismundo. . Há quanto tempo não vês veados a comer coelhos?, perguntou-lhe alguém de dentro, talvez a consciência. Não sei. Mas para a semana vou ver, respondeu ele. E vai.

Vidægo. Ele anda a comer pouco e não se entregou a dieta. Ele anda também a aprender a não dormir. Será que é demasiado estranho, mais estranho do que habitualmente ele é, levar a almofada para um grupo de discussão, em congresso, sobre cidade, cidadão e cidadania? Talvez não. Ele continua a tomar banho todos os dias. Segismundo. . Ele anda a comer pouco e não se entregou a dieta. Ele anda também a aprender a não dormir. Será que é demasiado estranho, mais estranho do que habitualmente ele é, levar a almofada para um grupo de discussão, em congresso, sobre cidade, cidadão e cidadania? Talvez não. Ele continua a tomar banho todos os dias.

Fra(n)queza, ou Consideração sobre um cadáver esquisito. Às vezes pedem-nos para sermos francos. Ou exigem que sejamos francos. Por princípio irónico, devemos ser francos. Não porque nos pedem ou exigem. Sim porque merecemos a franqueza dos outros. A sinceridade implica reciprocidade, simetria. A simulação é um exercício de assimetria. Mas, ironia – a puta da vida é mesmo assim –, quem pede ou exige que sejamos francos momentos e ocasiões há em que não consegue ser sujeito de franqueza. Fosse este o maior problema... Porém não é. Tão pouco é problema. É simplesmente descortesia. Ou, talvez, então, dificuldade em mostrar as cartas seguras na mão. Com o temor de que, porque outros ficam a conhecer o jogo guardado, se fique desprotegido. Como se isso fosse um trunfo. Não, não é. É a confiança gasta. Melhor, é a desconfiança. Que foi sempre ou quase. Segismundo. . Às vezes pedem-nos para sermos francos. Ou exigem que sejamos francos. Por princípio irónico, devemos ser francos. Não porque nos pedem ou exigem. Sim porque merecemos a franqueza dos outros. A sinceridade implica reciprocidade, simetria. A simulação é um exercício de assimetria. Mas, ironia – a puta da vida é mesmo assim –, quem pede ou exige que sejamos francos momentos e ocasiões há em que não consegue ser sujeito de franqueza. Fosse este o maior problema... Porém não é. Tão pouco é problema. É simplesmente descortesia. Ou, talvez, então, dificuldade em mostrar as cartas seguras na mão. Com o temor de que, porque outros ficam a conhecer o jogo guardado, se fique desprotegido. Como se isso fosse um trunfo. Não, não é. É a confiança gasta. Melhor, é a desconfiança. Que foi sempre ou quase.

Noir. Esta é a última etapa inocente. Antes do ódio. Ódio que, por este desviado caminho das paixões, ele nunca mais alcança. O Marquês. Esta é a última etapa inocente. Antes do ódio. Ódio que, por este desviado caminho das paixões, ele nunca mais alcança.

Festa mórbida. As imagens relativas à cerimónia de transladação do que sobra de Manuel de Arriaga para o Panteão Nacional revelam um número extraordinário de participantes. Provavelmente, a maioria das criaturas o que sabe sobre o primeiro senhor presidente da República da pátria é nada. Mas o fascínio que as festas de Estado produzem sobre os leais servidores da pátria e sua nobre causa, esse, é xisxiséle. Pois todas e todos apreciam ficar estampados na polaroid da ocasião. O mais que houver é apenas simpatia. De Estado. Pois república é outra coisa. Nicky Florentino. . As imagens relativas à cerimónia de transladação do que sobra de Manuel de Arriaga para o Panteão Nacional revelam um número extraordinário de participantes. Provavelmente, a maioria das criaturas o que sabe sobre o primeiro senhor presidente da República da pátria é nada. Mas o fascínio que as festas de Estado produzem sobre os leais servidores da pátria e sua nobre causa, esse, é xisxiséle. Pois todas e todos apreciam ficar estampados na polaroid da ocasião. O mais que houver é apenas simpatia. De Estado. Pois república é outra coisa.

Sobressalto é bailinho. O PS madeirense apelou a um sobressalto cívico no arquipélago, pretendendo, com isso, arrecadar proveitos eleitorais. Mas existe lá maior sobressalto cívico do que votar nas listas patrocinadas pelo senhor dr. Jardim? Nicky Florentino. . O PS madeirense apelou a um sobressalto cívico no arquipélago, pretendendo, com isso, arrecadar proveitos eleitorais. Mas existe lá maior sobressalto cívico do que votar nas listas patrocinadas pelo senhor dr. Jardim?

Décimo sexto. Pacote de nódoas amestradas e com a faculdade de fala, é o que eles, no conjunto, parecem ser. Não sei se são. Nicky Florentino. . Pacote de nódoas amestradas e com a faculdade de fala, é o que eles, no conjunto, parecem ser. Não sei se são.

No Café Central. Ela entrou e estacionou junto ao balcão. Esperou a sua vez. Que queria ela?, tabaco?, totoloto?, uma revista?, um jornal? Quando a dona Natália lhe perguntou o que desejava, ela debruçou-se sobre o balcão e, sem palavras, apontou uma revista. Ficou nessa posição. Ele, entretanto, entrou também. Estancou à entrada. Nada queria da tabacaria. Ficou a olhar, a apreciar a rapariga, de costas, dobrada. Concentrou o olhar. Afinou-o, baixando a cabeça e olhando por cima dos óculos, convenientemente puxados no momento até à ponta do nariz. Deve ter imaginado o segredo que estava para além das calças justas dela. Deve ter desejado esse segredo - o sorriso traiu-o. Ela continuou dobrada sobre o balcão, sem perceber a cobiça do seu corpo. E ele, surpreendido com esgar de guloso, depois de ruborizar e, envergonhado, baixar a cabeça, olhar para o chão, dirigiu-se para uma mesa. A rodar a aliança do anelar da mão esquerda. Antes de a esconder no bolso. Segismundo. . Ela entrou e estacionou junto ao balcão. Esperou a sua vez. Que queria ela?, tabaco?, totoloto?, uma revista?, um jornal? Quando a dona Natália lhe perguntou o que desejava, ela debruçou-se sobre o balcão e, sem palavras, apontou uma revista. Ficou nessa posição. Ele, entretanto, entrou também. Estancou à entrada. Nada queria da tabacaria. Ficou a olhar, a apreciar a rapariga, de costas, dobrada. Concentrou o olhar. Afinou-o, baixando a cabeça e olhando por cima dos óculos, convenientemente puxados no momento até à ponta do nariz. Deve ter imaginado o segredo que estava para além das calças justas dela. Deve ter desejado esse segredo - o sorriso traiu-o. Ela continuou dobrada sobre o balcão, sem perceber a cobiça do seu corpo. E ele, surpreendido com esgar de guloso, depois de ruborizar e, envergonhado, baixar a cabeça, olhar para o chão, dirigiu-se para uma mesa. A rodar a aliança do anelar da mão esquerda. Antes de a esconder no bolso.

A cura. Ele recebeu um telegrama. Depois de o ler,

dizia assim: com este manto não escondo deus stop ele não existe stop e eu sou capaz de me enganar stop

segurou uma polaroid que trazia na carteira. Olhou-a demorada mas não excessivamente

eras tão bonita, pensou, e vieste como paixão...

e disse adeus a quem, já quase recordação, nela estava gravada.

mas, como diz a canção, boys don't cry. Segismundo. . Ele recebeu um telegrama. Depois de o ler,dizia assim: com este manto não escondo deus stop ele não existe stop e eu sou capaz de me enganar stopsegurou uma polaroid que trazia na carteira. Olhou-a demorada mas não excessivamenteeras tão bonita, pensou, e vieste como paixão...e disse adeus a quem, já quase recordação, nela estava gravada.mas, como diz a canção, boys don't cry.

Correcção. Reclamou O Marquês. Ameaçou exilar-se. Não suicidar-se. Disse ele. Qual é a diferença? Não explicou. Ele não quis explicar. Segismundo. . Reclamou O Marquês. Ameaçou exilar-se. Não suicidar-se. Disse ele. Qual é a diferença? Não explicou. Ele não quis explicar.

Quod erat demonstrandum. Prova, provada, elas não conseguem amar o rapaz-ostra. Ele não deixa. Fecha-se. Facto que o reprova. E lhe custa, como é de custar, dores, imensas dores. O Marquês. . Prova, provada, elas não conseguem amar o rapaz-ostra. Ele não deixa. Fecha-se. Facto que o reprova. E lhe custa, como é de custar, dores, imensas dores.

O desassossego democrático. Disse, enlevado, o senhor ministro da Justiça, “configura um dever indeclinável da nossa geração – um dever ético, cívico, político, diria mesmo constitucional – criar as condições para assegurar a plena e cabal afirmação do poder judicial como garante do Estado de direito”. É por estes depoimentos que, obrigados à lucidez, alguns gentios mais dispersos conseguem conceber a democracia como ela é. Difícil. E, porque não feita, jamais feita, coisa a fazer. Daí que a puta da sua ilusão, uma vez revelada, se torne insuportável. Dado que ninguém aprecia ser enganado, em devido tempo, ainda na oportunidade para a renúncia, alguém devia ter ensinado que a democracia subsiste apenas com democratas. Não com atávicos e sossegados. E que é difícil. Nicky Florentino. . Disse, enlevado, o senhor ministro da Justiça, “configura um dever indeclinável da nossa geração – um dever ético, cívico, político, diria mesmo constitucional – criar as condições para assegurar a plena e cabal afirmação do poder judicial como garante do Estado de direito”. É por estes depoimentos que, obrigados à lucidez, alguns gentios mais dispersos conseguem conceber a democracia como ela é. Difícil. E, porque não feita, jamais feita, coisa a fazer. Daí que a puta da sua ilusão, uma vez revelada, se torne insuportável. Dado que ninguém aprecia ser enganado, em devido tempo, ainda na oportunidade para a renúncia, alguém devia ter ensinado que a democracia subsiste apenas com democratas. Não com atávicos e sossegados. E que é difícil.

The right man. São compreensíveis muitos dos desmandos e o desatino do actual Governo. Ninguém pode dar mais do que, de facto, pode dar. Todavia, não se compreende por qual raio o senhor dr. Luís Delgado não foi nomeado como comissário maioral da CaixaGeraldeDepósitos. A questão não é de merecimento. A questão é de isso mesmo. Nada. Nicky Florentino. . São compreensíveis muitos dos desmandos e o desatino do actual Governo. Ninguém pode dar mais do que, de facto, pode dar. Todavia, não se compreende por qual raio o senhor dr. Luís Delgado não foi nomeado como comissário maioral da CaixaGeraldeDepósitos. A questão não é de merecimento. A questão é de isso mesmo. Nada.

Ele outro. O Segismundo. . O Vincent está no meio de nós. Danado.

Ele. Tenho inveja do Segismundo. . Tenho inveja do Rui , do que ele consegue. Mas não confesso. Os danados não confessam. Esplanam.

Luto ou talvez não. O Marquês anda a ameaçar suicidar-se. Se morrer, é festa. Se não morrer, é festa também. Aqui, neste tugúrio, ninguém é obrigado a viver. Segismundo. . O Marquês anda a ameaçar suicidar-se. Se morrer, é festa. Se não morrer, é festa também. Aqui, neste tugúrio, ninguém é obrigado a viver.

Releitura. Ele voltou a ler Voyage au Bout de la Nuit. Visceral é o seu estado. Os Chants de Maldoror não estavam a ser tónico suficiente, disse ele, justificando-se. Antes de alcançar e beber mais um cocktail de pólvora. Porque lhe amarga. E lhe dói. É para doer. A dor dissipa a memória e revolta horizontes, acredita ele. Enganado. O Marquês. . Ele voltou a ler Voyage au Bout de la Nuit. Visceral é o seu estado. Os Chants de Maldoror não estavam a ser tónico suficiente, disse ele, justificando-se. Antes de alcançar e beber mais um cocktail de pólvora. Porque lhe amarga. E lhe dói. É para doer. A dor dissipa a memória e revolta horizontes, acredita ele. Enganado.

O Estado-circo. Disse ele, o senhor ministro dos Assuntos Parlamentares, “serei eu próprio, com a minha disponibilidade total, a convicção e a boa disposição e a alegria com que procuro fazer tudo”. Um palhaço, a propósito do seu ofício, provavelmente não desdenharia utilizar as mesmíssimas palavras arrumadas na mesmíssima ordem. Revelam aquilo que é de revelar, a alegria no trabalho. Nicky Florentino. . Disse ele, o senhor ministro dos Assuntos Parlamentares, “serei eu próprio, com a minha disponibilidade total, a convicção e a boa disposição e a alegria com que procuro fazer tudo”. Um palhaço, a propósito do seu ofício, provavelmente não desdenharia utilizar as mesmíssimas palavras arrumadas na mesmíssima ordem. Revelam aquilo que é de revelar, a alegria no trabalho.

Luz. É luminosa a estória Segismundo. . É luminosa a estória dela . Pelo que não diz, onde?, dizendo.

Tráfego. A melodia traz embrulhadas as palavras. Ele perguntou-se se estas, as primeiras,

You have never been in love

until you've seen the stars

reflect in the reservoirs...

seriam as palavras exactas. Talvez fossem. Talvez não fossem. Aquele não era o tempo ou o lugar para meditações. A circunstância era apenas de espera. Continuou, por isso, retido, fechado, no trânsito, apenas a ouvir a canção

You have never been in love

until you've seen sunlight thrown

over smashed human bone...

e a pensar nos gestos que não devia ter poupado, nos gestos que devia ter confirmado conforme a sua vontade. Porque, agora, as palavras vêm já tarde, depois da oportunidade, parecendo fracas, mortas, sem impacto,

such a silly boy...

ao contrário do que acontece na pândega canção pop que exala da telefonia e preenche o automóvel. Segismundo. . A melodia traz embrulhadas as palavras. Ele perguntou-se se estas, as

Lodaçal. Disse o senhor ministro da Justiça, “há reformas que carecem de consenso e o Governo aposta de boa-fé nesse consenso, seria bom para credibilizar o sistema”. Bonita a conversa, mas, subsiste uma dúvida, o que é que raio de bom para credibilizar o sistema pode oferecer o lodo? Nicky Florentino. . Disse o senhor ministro da Justiça, “há reformas que carecem de consenso e o Governo aposta de boa-fé nesse consenso, seria bom para credibilizar o sistema”. Bonita a conversa, mas, subsiste uma dúvida, o que é que raio de bom para credibilizar o sistema pode oferecer o lodo?

Um rasto de vida. Veio carregada de luto, face congestionada pelo calor. Com a sua entrada percebeu-se o fim do mercado. Assomou ao balcão. Pousou o cesto saloio no chão, coberto por um pano bordado de cores garridas, vivas, sem qualquer ovo. Vendi-os todos, senhora, informou a velha. Ainda bem, responderam-lhe de trás do balcão. E o que vai ser?, o que deseja?, perguntaram à velha. Olhe, é uma cervejinha, se faz favor, um cervejnha preta - faz menos mal, diz o meu neto -, para matar a sede, disse a velha. A garrafa foi colocada sobre o balcão, junto um copo. A velha recusou o copo. Sorveu a cerveja em dois largos tragos. Pegou num lenço engelhado, limpou os lábios e, depois, humedeceu-os com a língua. Quanto é?, minha senhora, perguntou a velha. Pagou, pegou no cesto, tenho que ir apanhar a camioneta, disse, e saiu, deixando um rasto de vida que a idade e o luto não lhe deixavam suspeitar. Segismundo. . Veio carregada de luto, face congestionada pelo calor. Com a sua entrada percebeu-se o fim do mercado. Assomou ao balcão. Pousou o cesto saloio no chão, coberto por um pano bordado de cores garridas, vivas, sem qualquer ovo. Vendi-os todos, senhora, informou a velha. Ainda bem, responderam-lhe de trás do balcão. E o que vai ser?, o que deseja?, perguntaram à velha. Olhe, é uma cervejinha, se faz favor, um cervejnha preta - faz menos mal, diz o meu neto -, para matar a sede, disse a velha. A garrafa foi colocada sobre o balcão, junto um copo. A velha recusou o copo. Sorveu a cerveja em dois largos tragos. Pegou num lenço engelhado, limpou os lábios e, depois, humedeceu-os com a língua. Quanto é?, minha senhora, perguntou a velha. Pagou, pegou no cesto, tenho que ir apanhar a camioneta, disse, e saiu, deixando um rasto de vida que a idade e o luto não lhe deixavam suspeitar.

Diálogo sobre a pipa apocalíptica. Leste o IHT? Eu não leio o Herald Tribune, leio o Público. O teu mundo é muito pequeno, não é? Não, é muito paroquial. Segismundo. . Leste o IHT? Eu não leio o Herald Tribune, leio o Público. O teu mundo é muito pequeno, não é? Não, é muito paroquial.

O cronista exemplar. O Segismundo. . O Filipe já está em Madrid, a cronicar. Perto, alguém, retido na pátria, interroga-se por que é que a puta da vida - embora a vida escassa ou nenhuma responsabilidade tenha no caso - não lhe permitiu estar com ele, lá, em Madrid, seja a relativizar , seja a esplanar . A resposta não é bonita.

Manifesto. Segismundo. Rui , se suspeitasse por um instante que essa intenção fosse menos do que um enunciado de cinismo, sentir-me-ia impelido a dizer-te está mas é quieto. A bem da salubridade da ordem e do cosmos, é preferível que fales dos enganos

Não escrever. Estou a escrever para não escrever-te. Apenas para dizer a mim mesma que a porta do quarto ainda está aberta e o meu corpo permanece inodoro e indolente. Arde-me a espera, arde-me um fogo que me esgota as demais sensações. Mas espero livre, de vontade. É esse o bálsamo que consigo. Não digo o que quero. Quero dizer o teu nome, ouvir a tua voz e os teus silêncios. Mas não insisto. Vou. A vida não espera. Até logo. Escreveu-lhe ela. Segismundo. . Estou a escrever para não escrever-te. Apenas para dizer a mim mesma que a porta do quarto ainda está aberta e o meu corpo permanece inodoro e indolente. Arde-me a espera, arde-me um fogo que me esgota as demais sensações. Mas espero livre, de vontade. É esse o bálsamo que consigo. Não digo o que quero. Quero dizer o teu nome, ouvir a tua voz e os teus silêncios. Mas não insisto. Vou. A vida não espera. Até logo. Escreveu-lhe ela.

Sinais. Quase já esgotei o último do Tom Waits, sem o partilhar. É o meu segredo. Mas sofro a distância. A varanda está vazia. A varanda está fechada. Não consigo olhar o rio. Estou a ler Pavese. Cito-te a primeira frase de um poema:

Verrà il giorno che il giovane dio sarà un uomo

senza pena, col morto sorriso dell’uomo

che ha compresso.

Não traduzo. Estou cansada. Vou dormir. A porta do quarto fica aberta. Sei que não vens, mas é um sinal para ti. A porta do quarto fica aberta, repito. E vou tomar apenas uma almofada. A outra fica vaga. É outro sinal para ti. Agora vou apagar o candeiro. Boa noite. Escreveu-lhe ela. Segismundo. . Quase já esgotei o último do Tom Waits, sem o partilhar. É o meu segredo. Mas sofro a distância. A varanda está vazia. A varanda está fechada. Não consigo olhar o rio. Estou a ler Pavese. Cito-te a primeira frase de um poema:Verrà il giorno che il giovane dio sarà un uomosenza pena, col morto sorriso dell’uomoche ha compresso.Não traduzo. Estou cansada. Vou dormir. A porta do quarto fica aberta. Sei que não vens, mas é um sinal para ti. A porta do quarto fica aberta, repito. E vou tomar apenas uma almofada. A outra fica vaga. É outro sinal para ti. Agora vou apagar o candeiro. Boa noite. Escreveu-lhe ela.

Arbeit Macht Frei. Diferente do risco de vida, não havia qualquer propósito naquele trabalho. Não era por isso um trabalho. O complexo era composto por sete linhas, cada uma com onze enormes serras, com discos de dentes afiados e pastilhados. A distância entre as linhas era mínima. A distância entre as serras também. Os enormes discos tinham uma rotação extraordinária. Quem lá trabalhava limitava-se a alimentar as serras com a madeira providenciada por via de um extenso sistema de tapetes rolantes. Poderia dizer-se que o que se produzia ali, naquele complexo, era serradura. Mas a tal produto, o único que resultava do labor dos homens, não era dado qualquer escoamento para o mercado. Não obstante, o complexo não parava. Existiam quatro turnos de seis horas cada e durante cada um desses períodos os homens limitavam-se a transmutar a madeira em serradura. Mesmo quando ocorriam acidentes, o que quase sempre significava que alguém tinha sido tolhido e, parcial ou plenamente, destroçado pelos discos, o complexo continuava a operar com normalidade. Se alguma máquina, por qualquer motivo, deixava de ter o seu operador, imediatamente era accionado um esquema de segurança e, de modo pronto, era colocado um outro homem no lugar vago. Fazer sofrer, estropiar, matar, parecia ser o único objectivo daquele negócio. E, de facto, era. O Marquês. . Diferente do risco de vida, não havia qualquer propósito naquele trabalho. Não era por isso um trabalho. O complexo era composto por sete linhas, cada uma com onze enormes serras, com discos de dentes afiados e pastilhados. A distância entre as linhas era mínima. A distância entre as serras também. Os enormes discos tinham uma rotação extraordinária. Quem lá trabalhava limitava-se a alimentar as serras com a madeira providenciada por via de um extenso sistema de tapetes rolantes. Poderia dizer-se que o que se produzia ali, naquele complexo, era serradura. Mas a tal produto, o único que resultava do labor dos homens, não era dado qualquer escoamento para o mercado. Não obstante, o complexo não parava. Existiam quatro turnos de seis horas cada e durante cada um desses períodos os homens limitavam-se a transmutar a madeira em serradura. Mesmo quando ocorriam acidentes, o que quase sempre significava que alguém tinha sido tolhido e, parcial ou plenamente, destroçado pelos discos, o complexo continuava a operar com normalidade. Se alguma máquina, por qualquer motivo, deixava de ter o seu operador, imediatamente era accionado um esquema de segurança e, de modo pronto, era colocado um outro homem no lugar vago. Fazer sofrer, estropiar, matar, parecia ser o único objectivo daquele negócio. E, de facto, era.

Deputar. Um dos exercícios preferidos pelas criaturas com assento no parlamento é a revisão da Constituição da República Portuguesa. Preferem as revisões revisionistas, as grandes, mas não descuram as revisões cirúrgicas, as de pormenor. Na prática, tais revisões são percebidas como um forma de jogging para o juízo. Compreende-se por isso que o senhor dr. Guilherme Silva tenha dito, “a revisão extraordinária da Constituição para que seja possível referendar o tratado de Constituição da União Europeia é uma questão que está a ser ponderada dentro do PSD”. A revisão constitucional é um entretenimento como qualquer outro. Nicky Florentino. . Um dos exercícios preferidos pelas criaturas com assento no parlamento é a revisão da Constituição da República Portuguesa. Preferem as revisões revisionistas, as grandes, mas não descuram as revisões cirúrgicas, as de pormenor. Na prática, tais revisões são percebidas como um forma de jogging para o juízo. Compreende-se por isso que o senhor dr. Guilherme Silva tenha dito, “a revisão extraordinária da Constituição para que seja possível referendar o tratado de Constituição da União Europeia é uma questão que está a ser ponderada dentro do PSD”. A revisão constitucional é um entretenimento como qualquer outro.

Símios e galhos. Disse o senhor dr. Paulo Portas, “não tenho nenhuma intenção de ser sucedido e o dr. Pires de Lima suponho que não tenha nenhuma intenção de deixar de ser presidido”. Por outras palavras, o que disse o senhor presidente do CDS/PP é que ele não sai do galho e que o outro não deve ter veleidade de alcançar o dele. Ou espera. Ou fica quieto. O dr. Portas é uma espécie de macho dominante. Está para reinar. Em todos os sentidos. Nicky Florentino. . Disse o senhor dr. Paulo Portas, “não tenho nenhuma intenção de ser sucedido e o dr. Pires de Lima suponho que não tenha nenhuma intenção de deixar de ser presidido”. Por outras palavras, o que disse o senhor presidente do CDS/PP é que ele não sai do galho e que o outro não deve ter veleidade de alcançar o dele. Ou espera. Ou fica quieto. O dr. Portas é uma espécie de macho dominante. Está para reinar. Em todos os sentidos.

Lonjuras. A hipótese de candidatar a senhora Maria Alzira Lemos à presidência do PS implicava que tal candidatura tivesse o endosso de pelo menos setenta e cinco assinaturas de delegados ao congresso da congregação socialista no próximo fim-de-semana. Aparentemente tal cláusula a nada obstava. O senhor dr. Manuel Alegre, proponente da dita candidatura, lograra a eleição de aproximadamente cento e quarentas cabeças como delegados ao referido congresso. Acontece, porém, que as coisas se complicaram. Com muitos desses tais delegados se encontravam fora de Lisboa, não foi possível reunir o rol mínimo de assinaturas necessárias. É que, como se sabe, Lisboa fica muito, muito longe de Portugal. E, para além disso, a distância entre uma e outro não muda para menos apenas porque é necessário acrescentar uma assinatura numa lista de tristes. Nicky Florentino. . A hipótese de candidatar a senhora Maria Alzira Lemos à presidência do PS implicava que tal candidatura tivesse o endosso de pelo menos setenta e cinco assinaturas de delegados ao congresso da congregação socialista no próximo fim-de-semana. Aparentemente tal cláusula a nada obstava. O senhor dr. Manuel Alegre, proponente da dita candidatura, lograra a eleição de aproximadamente cento e quarentas cabeças como delegados ao referido congresso. Acontece, porém, que as coisas se complicaram. Com muitos desses tais delegados se encontravam fora de Lisboa, não foi possível reunir o rol mínimo de assinaturas necessárias. É que, como se sabe, Lisboa fica muito, muito longe de Portugal. E, para além disso, a distância entre uma e outro não muda para menos apenas porque é necessário acrescentar uma assinatura numa lista de tristes.

Semear a inveja. Arde-me a liberdade de esperar por ti. Arde-me por confiança, não por esperança. Mas arde-me. Arde-me nas mãos, no peito, nas coxas, arde-me em todo o corpo, na minha nudez. Sinto palpitações nos meus seios, um tumulto no meu ventre. Não finjo. Por isso prefiro não chamar desejo a esta liberdade de espera incendiada. Chamar-lhe desejo faria de mim cativa de uma ausência, de um fantasma. E cativa não quero ser. O que eu quero não digo. Quero a tua boca, os teus braços, as tuas mãos, os teus dedos a alagar-me o corpo. Quero muito. Mas não digo. Espero por ti, livre, solta, como gostas de dizer. Espero. Espero porque também sou possessiva. Espero porque quero. Espero porque te quero. Espero porque querer-te, como eu te quero, faz-me sentir livre, solta, capaz de me dar. E dou-me para ser querida. Como tu és, por não seres, querido. Agora, desculpa - sei que estás longe -, vou para o São Jorge, encontrar-me com o Thor Fridrikson. Não posso esperar mais. Escreveu-lhe ela. Segismundo. . Arde-me a liberdade de esperar por ti. Arde-me por confiança, não por esperança. Mas arde-me. Arde-me nas mãos, no peito, nas coxas, arde-me em todo o corpo, na minha nudez. Sinto palpitações nos meus seios, um tumulto no meu ventre. Não finjo. Por isso prefiro não chamar desejo a esta liberdade de espera incendiada. Chamar-lhe desejo faria de mim cativa de uma ausência, de um fantasma. E cativa não quero ser. O que eu quero não digo. Quero a tua boca, os teus braços, as tuas mãos, os teus dedos a alagar-me o corpo. Quero muito. Mas não digo. Espero por ti, livre, solta, como gostas de dizer. Espero. Espero porque também sou possessiva. Espero porque quero. Espero porque te quero. Espero porque querer-te, como eu te quero, faz-me sentir livre, solta, capaz de me dar. E dou-me para ser querida. Como tu és, por não seres, querido. Agora, desculpa - sei que estás longe -, vou para o São Jorge, encontrar-me com o Thor Fridrikson. Não posso esperar mais. Escreveu-lhe ela.

Estranho modo de dizer a ausência. A última coisa que nos acontece é o corpo, o corpo estranho. Sinto o meu a entardecer sem a tua promessa presença. Escreveu-lhe ela. Segismundo. . A última coisa que nos acontece é o corpo, o corpo estranho. Sinto o meu a entardecer sem a tuapresença. Escreveu-lhe ela.

Tom Waits antes do tempo. Ela, o que é que te diz Real Gone? Ele, diz-me que vou ter que esperar. Ela, não, não terás que esperar. Ouve. Ele, passado alguns instantes, já? Ela, já, é para ti, vem. Ele não foi, ficou com a inveja. Segismundo. . Ela, o que é que te diz Real Gone? Ele, diz-me que vou ter que esperar. Ela, não, não terás que esperar. Ouve. Ele, passado alguns instantes, já? Ela, já, é para ti, vem. Ele não foi, ficou com a inveja.

Resort de ausência. Não sei recuar no desejo, no desejo que sinto. Arde-me. E não consigo desaprender-te dos meus olhos. Sinto-me a cegar. Hoje, por exemplo, depois de ver o espelho da casa de banho embaciado, procurei-te, mas não te encontrei. Escreveu-lhe ela. Segismundo. . Não sei recuar no desejo, no desejo que sinto. Arde-me. E não consigo desaprender-te dos meus olhos. Sinto-me a cegar. Hoje, por exemplo, depois de ver o espelho da casa de banho embaciado, procurei-te, mas não te encontrei. Escreveu-lhe ela.

Amor de pai. Um pai concebeu um filho com um único propósito, que esse filho fosse supliciado e, por si - o pai -, através da lancinante dor sentida - pelo filho -, fossem redimidos os pecados, todos, do mundo. Não há prova de amor paternal maior do que esta. Fazer com - mais do que permitir - que um filho sofra por e para um pai e os outros. Aliás, chamar a salvação do mundo ao flagelo e aos padecimentos do filho é apenas uma forma de engrandecer o gesto do pai, não o sofrimento do filho. O Marquês. . Um pai concebeu um filho com um único propósito, que esse filho fosse supliciado e, por si - o pai -, através da lancinante dor sentida - pelo filho -, fossem redimidos os pecados, todos, do mundo. Não há prova de amor paternal maior do que esta. Fazer com - mais do que permitir - que um filho sofra por e para um pai e os outros. Aliás, chamar a salvação do mundo ao flagelo e aos padecimentos do filho é apenas uma forma de engrandecer o gesto do pai, não o sofrimento do filho.

A vontade como representação. É um mistério, mas não faz mal. O Governo fez as contas e estimou as necessidades da pátria para dois mil e quatro, oito mil e quinhentos trabalhadores estrangeiros. Nem mais um, nem menos um, ditou a vontade dos que se fiam nas tenebrosas engenharias políticas de controlo e higienização dos colectivos. Candidataram-se às ditas vagas sessenta imigrantes. Três obtiveram o pretendido visto de trabalho. Os outros, compreende-se, como não são cifras estatísticas, é como se não existissem. Ou isso ou têm vergonha. O que também é compreensível. Pois deve emigrar-se de Portugal, não imigrar-se para Portugual. Cá, na pátria, a desgraça monta a tal tamanho que até as distopias laboriosamente congeminadas acabam por colapsar. É por isso que, perante estes factos, o senhor dr. Paulo Portas há-de parecer um Calimero. Mas sem a meia casca de ovo na cabeça, o bisonho. Nicky Florentino. . É um mistério, mas não faz mal. O Governo fez as contas e estimou as necessidades da pátria para dois mil e quatro, oito mil e quinhentos trabalhadores estrangeiros. Nem mais um, nem menos um, ditou a vontade dos que se fiam nas tenebrosas engenharias políticas de controlo e higienização dos colectivos. Candidataram-se às ditas vagas sessenta imigrantes. Três obtiveram o pretendido visto de trabalho. Os outros, compreende-se, como não são cifras estatísticas, é como se não existissem. Ou isso ou têm vergonha. O que também é compreensível. Pois deve emigrar-se de Portugal, não imigrar-se para Portugual. Cá, na pátria, a desgraça monta a tal tamanho que até as distopias laboriosamente congeminadas acabam por colapsar. É por isso que, perante estes factos, o senhor dr. Paulo Portas há-de parecer um Calimero. Mas sem a meia casca de ovo na cabeça, o bisonho.

O senhor está no meio de nós. O senhor bispo do Funchal teceu loas e hossanas em honra do senhor presidente do Governo regional da Madeira. Este retribuiu. Tudo aconteceu no altar da igreja dos Álamos. Deus consentiu por um único e imediato motivo, não existe. Ou isso ou distraiu-se, como é usual. Nicky Florentino. . O senhor bispo do Funchal teceu loas e hossanas em honra do senhor presidente do Governo regional da Madeira. Este retribuiu. Tudo aconteceu no altar da igreja dos Álamos. Deus consentiu por um único e imediato motivo, não existe. Ou isso ou distraiu-se, como é usual.

Diálogo com assentimento. Adrenalina? Não, cocaína. Isso faz-te mal. É por isso. Segismundo. . Adrenalina? Não, cocaína. Isso faz-te mal. É por isso.

Maldita. Voltou ao veneno, como se fosse um velho hábito, um vício. Não viu ainda veados a comer coelhos. Viu apenas substituições disso. Viu assombrações, espectros, véus diáfanos agitados, como se fossem do vento. Viu o perfil distorcido dos carros, observados do nono andar. Viu os néons cintilantes, como se estivessem no bordo da retina, urgente e intensamente reflectidos. Viu a indolência nos seus gestos, a voz áspera e lenta, insubmissa. Viu a manhã a chegar e a fazer o rio novo. E viu o sangue, o seu sangue, sem se inquietar. A inquietude aproximou-se depois, tomou-o, depois de a consciência lhe ter regressado. Amanhã vai ser diferente, desejou ele. Mas não vai ser. Ele vai tornar a cair na tentação. Ele vai regressar ao erro a que voltou. Segismundo. . Voltou ao veneno, como se fosse um velho hábito, um vício. Não viu ainda veados a comer coelhos. Viu apenas substituições disso. Viu assombrações, espectros, véus diáfanos agitados, como se fossem do vento. Viu o perfil distorcido dos carros, observados do nono andar. Viu os néons cintilantes, como se estivessem no bordo da retina, urgente e intensamente reflectidos. Viu a indolência nos seus gestos, a voz áspera e lenta, insubmissa. Viu a manhã a chegar e a fazer o rio novo. E viu o sangue, o seu sangue, sem se inquietar. A inquietude aproximou-se depois, tomou-o, depois de a consciência lhe ter regressado. Amanhã vai ser diferente, desejou ele. Mas não vai ser. Ele vai tornar a cair na tentação. Ele vai regressar ao erro a que voltou.

À espera de Tom Waits. Ela, Elvis Costello? Ele, sim. Ela, os dois? Ele, sim. Ela, fica a faltar, agora, o Tom Waits, não é? Ele, é. Ela, e tu? Ele, também, tenho que ir. Segismundo. . Ela, Elvis Costello? Ele, sim. Ela, os dois? Ele, sim. Ela, fica a faltar, agora, o Tom Waits, não é? Ele, é. Ela, e tu? Ele, também, tenho que ir.

Princípios. Este amor começou com um silêncio teu, com um silêncio dos teus, sobre Yeats ou cummings, não sei, disse ela, mas a paixão, a paixão, essa, começou quando me deixaste sentar ao pé de ti no cinema, naquele dia em que na sala estávamos só tu e eu. Segismundo. . Este amor começou com um silêncio teu, com um silêncio dos teus, sobre Yeats ou cummings, não sei, disse ela, mas a paixão, a paixão, essa, começou quando me deixaste sentar ao pé de ti no cinema, naquele dia em que na sala estávamos só tu e eu.

Jogos florais. Flores?, são para mim? Não, são para a jarra. Mau! Eu sei. Segismundo. . Flores?, são para mim? Não, são para a jarra. Mau! Eu sei.

O pai mau. Deus é uma criatura incapaz de olhar os outros nos olhos. Por isso, um dia, colérico, por ser cego, decidiu inventar uma gramática para os comportamentos, dividindo-os em duas categorias, as virtudes e os pecados. Para os pecadores exigiu o opróbio e o castigo, a expiação da culpa e dos erros pela dor. Aos virtuosos enganou-os, fingindo que a vida lhes seria fácil e prazenteira. Desde o dia em que foi promulgado o decreto que distingue a virtude do pecado não mais as mulheres e os homens ousaram ser felizes. E do seu terraço sideral, mesmo sem ver, o deus cruel alimenta-se das dores, dos que sofrem. É esse o seu maná, o seu pão de cada dia, e nenhum outro. O Marquês. . Deus é uma criatura incapaz de olhar os outros nos olhos. Por isso, um dia, colérico, por ser cego, decidiu inventar uma gramática para os comportamentos, dividindo-os em duas categorias, as virtudes e os pecados. Para os pecadores exigiu o opróbio e o castigo, a expiação da culpa e dos erros pela dor. Aos virtuosos enganou-os, fingindo que a vida lhes seria fácil e prazenteira. Desde o dia em que foi promulgado o decreto que distingue a virtude do pecado não mais as mulheres e os homens ousaram ser felizes. E do seu terraço sideral, mesmo sem ver, o deus cruel alimenta-se das dores, dos que sofrem. É esse o seu maná, o seu pão de cada dia, e nenhum outro.

Peneira. O senhor primeiro-ministro ordenou a emissão de um comunicado a desmentir a existência de desarticulação no âmbito do Governo. Não era necessário induzir o engano. Em política, a evidência tende a dissolver-se. É uma questão de tempo. E, depois, o sol brilhará. Nicky Florentino. . O senhor primeiro-ministro ordenou a emissão de um comunicado a desmentir a existência de desarticulação no âmbito do Governo. Não era necessário induzir o engano. Em política, a evidência tende a dissolver-se. É uma questão de tempo. E, depois, o sol brilhará.

Más companhias. Disse o senhor Narciso Miranda, “a minha disponibilidade é total para que o PS seja o factor de esperança para os cidadãos que estão frustados com os resultados da política de direita liderada pelo PSD”. Se houver quem não esteja habituado, o melhor é fugir. Ou emigrar. Para longe. Para a sombra. Nicky Florentino. . Disse o senhor Narciso Miranda, “a minha disponibilidade é total para que o PS seja o factor de esperança para os cidadãos que estão frustados com os resultados da política de direita liderada pelo PSD”. Se houver quem não esteja habituado, o melhor é fugir. Ou emigrar. Para longe. Para a sombra.

Antídoto pior do que o veneno. O senhor dr. Manuel Alegre entende que, no concurso para senhor secretário-geral do PS, aconteceram “votações que não são normais”. E acrescentou, “isso deve-se a situações que é preciso alterar profundamente no PS: fidelizações, clientelismos”. É bonita a conversa. Mas alterar profundamente tais situações é liquidar o clube, é tornar o partido político numa seita sob escombros. Não pode ser. Nicky Florentino. . O senhor dr. Manuel Alegre entende que, no concurso para senhor secretário-geral do PS, aconteceram “votações que não são normais”. E acrescentou, “isso deve-se a situações que é preciso alterar profundamente no PS: fidelizações, clientelismos”. É bonita a conversa. Mas alterar profundamente tais situações é liquidar o clube, é tornar o partido político numa seita sob escombros. Não pode ser.

Passe-partout. No passado sábado, na primeira fila do friso que aplaudia o novo senhor secretário-geral do PS estavam o senhor dr. António Costa, o senhor Armando Vara, o senhor dr. Capoulas Santos, a senhora dr.ª Edite Estrela, o senhor dr. Jaime Gama, o senhor dr. Jorge Coelho, o senhor dr. Miranda Calha, o senhor dr. Sérgio Sousa Pinto, o senhor dr. Vitalino Canas. Às tantas, na homilia da circunstância, o senhor eng.º José Sócrates clamou, “o PS está pronto para liderar uma mudança política em Portugal e essa mudança começa hoje”. Vê-se. É por isso que não se acredita. Nicky Florentino. . No passado sábado, na primeira fila do friso que aplaudia o novo senhor secretário-geral do PS estavam o senhor dr. António Costa, o senhor Armando Vara, o senhor dr. Capoulas Santos, a senhora dr.ª Edite Estrela, o senhor dr. Jaime Gama, o senhor dr. Jorge Coelho, o senhor dr. Miranda Calha, o senhor dr. Sérgio Sousa Pinto, o senhor dr. Vitalino Canas. Às tantas, na homilia da circunstância, o senhor eng.º José Sócrates clamou, “o PS está pronto para liderar uma mudança política em Portugal e essa mudança começa hoje”. Vê-se. É por isso que não se acredita.

Mon amour. Cite-se o senhor Prof. Doutor Mário Pinto, “nós podemos nem sempre ser capazes de corresponder ao que é justo e digno. É a nossa desfalecência, que pede compreensão e remédio. Mas não é por isso que a fidelidade matrimonial merece desprezo e o dever de fidelidade conjugal é risível. É a própria dignidade pessoal de quem casa, e daquele com quem casa, que sobre a promessa não cumprida lhe pede vergonha, e não risos. Ninguém é obrigado a casar-se; mas, se o fizer, tem de o fazer digna e seriamente. É esta a lei e são estes os bons costumes”. Não, não são os bons costumes. Se bons, mesmo se bons, foram costumes. Apenas foram, se foram, os bons costumes. Hoje, os costumes, os bons e os maus, são outros. Não casar, por exemplo, é um deles. E casar como quem não casa também. Pois acontece que há o desamor, a traição, o engano, o desengano, a desilusão, a paixão, motivos justos para o divórcio, para a liberdade. Segismundo. . Cite-se o senhor Prof. Doutor Mário Pinto, “nós podemos nem sempre ser capazes de corresponder ao que é justo e digno. É a nossa desfalecência, que pede compreensão e remédio. Mas não é por isso que a fidelidade matrimonial merece desprezo e o dever de fidelidade conjugal é risível. É a própria dignidade pessoal de quem casa, e daquele com quem casa, que sobre a promessa não cumprida lhe pede vergonha, e não risos. Ninguém é obrigado a casar-se; mas, se o fizer, tem de o fazer digna e seriamente. É esta a lei e são estes os bons costumes”. Não, não são os bons costumes. Se bons, mesmo se bons, foram costumes. Apenas foram, se foram, os bons costumes. Hoje, os costumes, os bons e os maus, são outros. Não casar, por exemplo, é um deles. E casar como quem não casa também. Pois acontece que há o desamor, a traição, o engano, o desengano, a desilusão, a paixão, motivos justos para o divórcio, para a liberdade.

Pendular. Adeus, vou. Adeus, vai, iô-iô, e regressa. Não sei. Eu sei, espero por ti. Segismundo. . Adeus, vou. Adeus, vai, iô-iô, e regressa. Não sei. Eu sei, espero por ti.

Idílio sobre sms. Ele recebeu uma mensagem,

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96... (número estranho, não registado no telefone dele)

Tua, aproxima-te.

Remetente:

+35196...

Transmitida:

27-Set-2004

05:02:47

leu-a, escreveu algo mais, pouco, no computador, não demorou, desligou-o, dirigiu-se para a sala, apagou algumas da velas distribuídas pelo chão, deixou acesas apenas cinco, deitou-se sobre os cobertores felpudos, olhou-a, chamaste-me?, perguntou-lhe em sussurro, sim, respondeu ela, fica comigo, agora, pediu-lhe, ele ficou, ela despiu-o, ela despiu-se, envolveram-se num dos cobertores, sem se abraçarem, cada um com a sua almofada, ficaram apenas a sentir os corpos próximos, o vão entre eles, até que ela se aproximou do ombro direito dele, depositou aí a sua cabeça, protege-me, disse, e ele recolheu o braço sobre as suas costas, abraçando-a e emprestando-a ao sono, sob o embalo de Baby Dee,

What was it I knew then

That I let myself forget?

Wasn’t my sunrise you then?

And isn’t this my sunset?

Shouldn’t you have a morning?

Shouldn’t you have a dawn?

Shouldn’t you have a sunrise?

Shouldn’t you have a song?

You can forget me

But forget your sorrow too.

How can my heart let me,

Let me let go of you?

enquanto o vento, autorizado pela janela aberta da varanda, entrava a rasar o chão, mas não encontrava os corpos, por estarem disponíveis apenas um para o outro e para o seu engano, o único, ali. Segismundo. . Ele recebeu uma mensagem,MenuMensagensCaixa de entrada96... (número estranho, não registado no telefone dele)Tua, aproxima-te.Remetente:+35196...Transmitida:27-Set-200405:02:47leu-a, escreveu algo mais, pouco, no computador, não demorou, desligou-o, dirigiu-se para a sala, apagou algumas da velas distribuídas pelo chão, deixou acesas apenas cinco, deitou-se sobre os cobertores felpudos, olhou-a, chamaste-me?, perguntou-lhe em sussurro, sim, respondeu ela, fica comigo, agora, pediu-lhe, ele ficou, ela despiu-o, ela despiu-se, envolveram-se num dos cobertores, sem se abraçarem, cada um com a sua almofada, ficaram apenas a sentir os corpos próximos, o vão entre eles, até que ela se aproximou do ombro direito dele, depositou aí a sua cabeça, protege-me, disse, e ele recolheu o braço sobre as suas costas, abraçando-a e emprestando-a ao sono, sob o embalo de Baby Dee,What was it I knew thenThat I let myself forget?Wasn’t my sunrise you then?And isn’t this my sunset?Shouldn’t you have a morning?Shouldn’t you have a dawn?Shouldn’t you have a sunrise?Shouldn’t you have a song?You can forget meBut forget your sorrow too.How can my heart let me,Let me let go of you?enquanto o vento, autorizado pela janela aberta da varanda, entrava a rasar o chão, mas não encontrava os corpos, por estarem disponíveis apenas um para o outro e para o seu engano, o único, ali.

Arrependimento. Ela, vem, descobre-me. Ele, mas já sei quem tu és. Ela, enganas-te. Ele, eu sei. Ela, sou outra. Ele, sim, eu sei. Ela, como é que sabes?, se admites o engano. Ele, porque estás nos meus braços e eu já te vi repetida nos meus olhos. Ela, és estranho. Ele, é por isso que eu estou aqui. Ela, que estás aqui para me descobrir? Ele, não, para ser estranho. Ela, vais arrepender-te. Ele, já me arrependi. Segismundo. . Ela, vem, descobre-me. Ele, mas já sei quem tu és. Ela, enganas-te. Ele, eu sei. Ela, sou outra. Ele, sim, eu sei. Ela, como é que sabes?, se admites o engano. Ele, porque estás nos meus braços e eu já te vi repetida nos meus olhos. Ela, és estranho. Ele, é por isso que eu estou aqui. Ela, que estás aqui para me descobrir? Ele, não, para ser estranho. Ela, vais arrepender-te. Ele, já me arrependi.

Antes da fuga. Voltaste? Sim, voltei. Para mim? Não, para fugir. Quando?, agora? Não, amanhã. Anda, então, é urgente. Eu sei, foi por isso que voltei antes da fuga, depois vou fugir-te. Foges, mas depois voltas. Volto para poder fugir novamente. Eu sei, mas voltas sempre antes da fuga. Segismundo. . Voltaste? Sim, voltei. Para mim? Não, para fugir. Quando?, agora? Não, amanhã. Anda, então, é urgente. Eu sei, foi por isso que voltei antes da fuga, depois vou fugir-te. Foges, mas depois voltas. Volto para poder fugir novamente. Eu sei, mas voltas sempre antes da fuga.

Kiss. Gosto de imaginar outros possíveis. Porquê?, porque é um caminho para o engano que me faz regressar às coisas simples e estúpidas. Disse ele. Segismundo. . Gosto de imaginar outros possíveis. Porquê?, porque é um caminho para o engano que me faz regressar às coisas simples e estúpidas. Disse ele.

Como Tomé. Ele, mostra-me a tua mão. Ela, para quê? Ele, para te dizer que sei, para te dizer que sabia. Segismundo. . Ele, mostra-me a tua mão. Ela, para quê? Ele, para te dizer que sei, para te dizer que sabia.

Continuação. E ao décimo quarto dia sobre a confissão e a confirmação – os factos, os indícios e os testemunhos são anteriores – nada mais há a dizer. Excepto o fim, declarar derradeiramente o fim. Pois cada gesto pode inaugurar uma nova sequência da vida. E o próximo princípio, esse, já começou. Começou antes daquele gesto, o último. O gesto que faltou. Segismundo. . E ao décimo quarto dia sobre a confissão e a confirmação – os factos, os indícios e os testemunhos são anteriores – nada mais há a dizer. Excepto o fim, declarar derradeiramente o fim. Pois cada gesto pode inaugurar uma nova sequência da vida. E o próximo princípio, esse, já começou. Começou antes daquele gesto, o último. O gesto que faltou.

Tatuagem noir. Sinto-te como se estivesses gravado em mim, marcado na minha carne, sabes?, disse ela, enquanto uma lágrima furtiva lhe desenhava o rosto. Sabes por que é que não digo que te amo?, porque poderia acreditar nisso e enganar-te como tu me enganaste, disse ele. Segismundo. . Sinto-te como se estivesses gravado em mim, marcado na minha carne, sabes?, disse ela, enquanto uma lágrima furtiva lhe desenhava o rosto. Sabes por que é que não digo que te amo?, porque poderia acreditar nisso e enganar-te como tu me enganaste, disse ele.

Leituras. Leste O Deus das Pequenas Coisas?, perguntou ele. Ela, com cinismo, respondeu não, li The God of Small Things. Ele perguntou depois e leste o Sete Mares e Treze Rios? Ela confirmou, não, li o Brick Lane. Segismundo. . Leste O Deus das Pequenas Coisas?, perguntou ele. Ela, com cinismo, respondeu não, li The God of Small Things. Ele perguntou depois e leste o Sete Mares e Treze Rios? Ela confirmou, não, li o Brick Lane.

Para além do fim. Acreditas que a amizade sobrevive ao desamor?, perguntou. Perguntas por dúvida? ou por descrença?, quis ela saber. Pergunto por ironia, respondeu ele. Acredito, disse ela, pois, se houver memória, o desamor é ainda um vestígio do amor que foi, é uma forma da sua presença. Mas também pode ser uma forma de iludir a culpa, explicou ela. A culpa?, nisto não há culpa, pretendeu ele. Às vezes há, disse ela. Segismundo. . Acreditas que a amizade sobrevive ao desamor?, perguntou. Perguntas por dúvida? ou por descrença?, quis ela saber. Pergunto por ironia, respondeu ele. Acredito, disse ela, pois, se houver memória, o desamor é ainda um vestígio do amor que foi, é uma forma da sua presença. Mas também pode ser uma forma de iludir a culpa, explicou ela. A culpa?, nisto não há culpa, pretendeu ele. Às vezes há, disse ela.

Eixo Norte-Sul. Fila de trânsito. Provavelmente um acidente, pensou ele. Depois da demora, confirmou ele nos pensamentos, foi acidente. A fila arrastava-se lentamente, um ritmo diferente do habitual. No horizonte, não havia vislumbre das forças de segurança. Não havia indício dos bombeiros. Nenhuma sinalização luminosa. Mais adiante a constatação. O aparato era evidente. Destroços espalhados sobre o asfalto. A sinistrofilia dos condutores vertida em voyeurismo. Alguns deles chegavam mesmo a estancar o veículo para, por regalo, mero regalo mórbido, poderem observar a cena, testemunharem o sangue, a desgraça, a morte na estrada. Neles, nos seus gestos, não se percebia a mínima intenção de socorro. Apenas a vertigem do espectáculo. De que eles queriam ser espectadores, ávidos espectadores. Segismundo. . Fila de trânsito. Provavelmente um acidente, pensou ele. Depois da demora, confirmou ele nos pensamentos, foi acidente. A fila arrastava-se lentamente, um ritmo diferente do habitual. No horizonte, não havia vislumbre das forças de segurança. Não havia indício dos bombeiros. Nenhuma sinalização luminosa. Mais adiante a constatação. O aparato era evidente. Destroços espalhados sobre o asfalto. A sinistrofilia dos condutores vertida em voyeurismo. Alguns deles chegavam mesmo a estancar o veículo para, por regalo, mero regalo mórbido, poderem observar a cena, testemunharem o sangue, a desgraça, a morte na estrada. Neles, nos seus gestos, não se percebia a mínima intenção de socorro. Apenas a vertigem do espectáculo. De que eles queriam ser espectadores, ávidos espectadores.

Luta de classes. Boa tarde, disse ele em empréstimo de simpatia ao lugar. O outro não se comoveu. Levantou-se e, sem nada dizer, cravou-lhe repetidamente no peito a chave para parafusos com cabeça fendada que, antes, imediatamente antes, utilizara na reparação da canalização do loft dele. O Marquês. . Boa tarde, disse ele em empréstimo de simpatia ao lugar. O outro não se comoveu. Levantou-se e, sem nada dizer, cravou-lhe repetidamente no peito a chave para parafusos com cabeça fendada que, antes, imediatamente antes, utilizara na reparação da canalização do loft dele.

Reflexo condicionado. Disse o senhor Miguel Relvas, “José Sócrates é um político da ficção que acredita mais no cenário do que no conteúdo”. Poderia dizer isto também do senhor presidente do PSD. Ou até de ele mesmo. Mas não disse. Por um motivo singelo. A devolução custar-lhe-ia. Nicky Florentino. . Disse o senhor Miguel Relvas, “José Sócrates é um político da ficção que acredita mais no cenário do que no conteúdo”. Poderia dizer isto também do senhor presidente do PSD. Ou até de ele mesmo. Mas não disse. Por um motivo singelo. A devolução custar-lhe-ia.

Razão e aproximação. Título da edição de hoje do Público, “José Sócrates ganha PS com mais de dois terços dos votos”. Primeira frase do lead ou coisa do género, “Novo secretário-geral do PS foi eleito com mais de setenta e cinco por cento dos votos”. Poderiam ter escrito no rubro título mais de três quartos ou quase quatro quintos. Em qualquer dos casos estariam mais próximos do resultado do escrutínio acontecido. Mas isso, como resulta evidente, são outras contas. Nicky Florentino. . Título da edição de hoje do Público, “José Sócrates ganha PS com mais de dois terços dos votos”. Primeira frase do lead ou coisa do género, “Novo secretário-geral do PS foi eleito com mais de setenta e cinco por cento dos votos”. Poderiam ter escrito no rubro título mais de três quartos ou quase quatro quintos. Em qualquer dos casos estariam mais próximos do resultado do escrutínio acontecido. Mas isso, como resulta evidente, são outras contas.

O gosto dos outros. Ela, gosto do calor. Também gosto do frio, se não for muito. Da chuva é que não gosto. Ele, talvez possa ensinar-te a gostar da chuva. Ela, não creio. Ele, é uma questão de paixão, aprende-se com outro. Ela, tu não gostas do calor, pois não? Ele, não. Ela, e de mim? Ele, gosto de chuva, mas não sei se vou conseguir ensinar-te esse gosto. Adeus, tenho que ir. Ela, adeus. Voltas? Ele não respondeu. Ela ainda, eu sei que voltas. Segismundo. . Ela, gosto do calor. Também gosto do frio, se não for muito. Da chuva é que não gosto. Ele, talvez possa ensinar-te a gostar da chuva. Ela, não creio. Ele, é uma questão de paixão, aprende-se com outro. Ela, tu não gostas do calor, pois não? Ele, não. Ela, e de mim? Ele, gosto de chuva, mas não sei se vou conseguir ensinar-te esse gosto. Adeus, tenho que ir. Ela, adeus. Voltas? Ele não respondeu. Ela ainda, eu sei que voltas.

Rumo. Sabes onde estás?, perguntou-lhe. Não, respondeu ele. Estás no meu território, disse ela, vem, ao mesmo tempo que lhe procurou a mão esquerda, para o conduzir ao número cinquenta e nove da rua da Barroca. Era ainda hora de jantar. Segismundo. . Sabes onde estás?, perguntou-lhe. Não, respondeu ele. Estás no meu território, disse ela, vem, ao mesmo tempo que lhe procurou a mão esquerda, para o conduzir ao número cinquenta e nove da rua da Barroca. Era ainda hora de jantar.

No Chiado. Ofereces-me um livro?, pediu ela. Não, disse-lhe ele. Escolhes-me um livro?, então, rogou-lhe ela. Ele afastou-se, sondou as prateleiras, literatura brasileira, éme. Moacyr Scliar, Exército de um Homem Só, foi o título escrutinado. Ele acabou por oferecer-lhe o livro. Pagou-o. Saíram. Por que é que me ofereceste este livro?, é sobre o quê?, perguntou ela, depois, com a aguda curiosidade de apaixonada. Porque, não sendo, é sobre mim, respondeu ele. E o Moacyr Scliar?, quem é o Moacyr Scliar?, quis ela saber. É um médico, judeu, brasileiro, que escreveu A Mulher que Escreveu a Bíblia. Não conheço, confessou ela. A mulher que escreveu a bíblia?, eu também não conheço, disse ele, apenas li o livro. Segismundo. . Ofereces-me um livro?, pediu ela. Não, disse-lhe ele. Escolhes-me um livro?, então, rogou-lhe ela. Ele afastou-se, sondou as prateleiras, literatura brasileira, éme. Moacyr Scliar, Exército de um Homem Só, foi o título escrutinado. Ele acabou por oferecer-lhe o livro. Pagou-o. Saíram. Por que é que me ofereceste este livro?, é sobre o quê?, perguntou ela, depois, com a aguda curiosidade de apaixonada. Porque, não sendo, é sobre mim, respondeu ele. E o Moacyr Scliar?, quem é o Moacyr Scliar?, quis ela saber. É um médico, judeu, brasileiro, que escreveu A Mulher que Escreveu a Bíblia. Não conheço, confessou ela. A mulher que escreveu a bíblia?, eu também não conheço, disse ele, apenas li o livro.

Desafio. Ela, queres testar-me? Ele, não. Ela, não faz mal, testa-me na mesma. Ele, é melhor não. Ela, insistente, vá lá. Ele, está bem, sabes fazer sopa de agrião? Ela, desisto. Vamos? Ele, vamos. Segismundo. . Ela, queres testar-me? Ele, não. Ela, não faz mal, testa-me na mesma. Ele, é melhor não. Ela, insistente, vá lá. Ele, está bem, sabes fazer sopa de agrião? Ela, desisto. Vamos? Ele, vamos.

Pélago. Ela, olha em frente, o que vês? Ele, vejo-te a ti. Ela, desejas-me? Ele, evasivo, não creio que essa seja a interrogação adequada. Ela, ao mesmo tempo de se virava para ele, julgas-me o teu precipício? Ele caminhou para ela, pretendia dar uma resposta mais próximo dela. Mas ela afastou-se, deu alguns passos atrás, e repetiu julgas-me o teu precipício? Ele, não, acho que não, respondeu sem convicção. Ela, então porque me evitas? Ele, porque não quero fazer-te sofrer, depois. Ela, eu perdoo-te. Ele, mas eu não quero ser perdoado, percebes? Ela, não, não percebo. Afinal, julgas-me o teu precipício? ou não? Ele, sinceramente não sei. E, como se fosse em busca da resposta, precipitou-se para ela. Segismundo. . Ela, olha em frente, o que vês? Ele, vejo-te a ti. Ela, desejas-me? Ele, evasivo, não creio que essa seja a interrogação adequada. Ela, ao mesmo tempo de se virava para ele, julgas-me o teu precipício? Ele caminhou para ela, pretendia dar uma resposta mais próximo dela. Mas ela afastou-se, deu alguns passos atrás, e repetiu julgas-me o teu precipício? Ele, não, acho que não, respondeu sem convicção. Ela, então porque me evitas? Ele, porque não quero fazer-te sofrer, depois. Ela, eu perdoo-te. Ele, mas eu não quero ser perdoado, percebes? Ela, não, não percebo. Afinal, julgas-me o teu precipício? ou não? Ele, sinceramente não sei. E, como se fosse em busca da resposta, precipitou-se para ela.

Plebe. O Nicky Florentino. . O José , danado, é dos que não se deixa enganar. Por isso vê o povo como ele é. Mais turba do que grei.

A outra peça do cartel. Depois de um breve interregno, o PS, agora sob o consulado do senhor eng.º José Sócrates, volta a ser o que é, um partido político, uma máquina de rateio do poder. É isso que inquieta. Nicky Florentino. . Depois de um breve interregno, o PS, agora sob o consulado do senhor eng.º José Sócrates, volta a ser o que é, um partido político, uma máquina de rateio do poder. É isso que inquieta.

Porque amanhã é sempre longe demais. Disse o senhor dr. João Soares, consciente da sua derrota no concurso a senhor secretário-geral do PS, “em democracia há batalhas que se ganham e batalhas que se perdem. O que tem de grande virtude o sistema democrático é que os resultados são sempre justos e podem sempre ser corrigidos no futuro”. Este é um dos piedosos enganos da cartilha democrática. A crença de que em democracia o futuro nunca acaba, não se esgota, tende a caucionar a irresponsabilidade e a negligência. É um facto que se aprende com os erros. Mas não é apenas com os erros que se aprende. Sequer é necessário repetir os erros para calibrar e sofisticar a aprendizagem. É por isso que a democracia, enquanto ordem, devia ser uma ordem de urgência, não a normalidade do engano frequente e repetido. Nicky Florentino. . Disse o senhor dr. João Soares, consciente da sua derrota no concurso a senhor secretário-geral do PS, “em democracia há batalhas que se ganham e batalhas que se perdem. O que tem de grande virtude o sistema democrático é que os resultados são sempre justos e podem sempre ser corrigidos no futuro”. Este é um dos piedosos enganos da cartilha democrática. A crença de que em democracia o futuro nunca acaba, não se esgota, tende a caucionar a irresponsabilidade e a negligência. É um facto que se aprende com os erros. Mas não é apenas com os erros que se aprende. Sequer é necessário repetir os erros para calibrar e sofisticar a aprendizagem. É por isso que a democracia, enquanto ordem, devia ser uma ordem de urgência, não a normalidade do engano frequente e repetido.

Gravidade(s). Em entrevista ao Expresso, disse o senhor Prof. Doutor David Justino, “mais grave que mudar de partido de Governo é mudar de Governo dentro do mesmo partido”. Não obstante a lucidez, é isto o despeito do fulano. Nicky Florentino. . Em entrevista ao Expresso, disse o senhor Prof. Doutor David Justino, “mais grave que mudar de partido de Governo é mudar de Governo dentro do mesmo partido”. Não obstante a lucidez, é isto o despeito do fulano.

Amor errante. Chega o desamor, o abandono. A sensação que a vida vai ser impossível sem ela, ela que partiu, ela que fugiu. É preciso rir do facto. Sabe-se que, pela erosão da memória, alguns anos depois quem foi abandonado também rirá. Quem consegue esquecer, quem esquece ri. Mas quem esquece também se engana. Volvidos anos, acontece que, efectivamente, foi impossível a vida sem aquela mulher. É a evidência, a nitidez desse facto que o tempo soterra. E é sobre esse aterro que o erro do amor se faz novamente. Segismundo. . Chega o desamor, o abandono. A sensação que a vida vai ser impossível sem ela, ela que partiu, ela que fugiu. É preciso rir do facto. Sabe-se que, pela erosão da memória, alguns anos depois quem foi abandonado também rirá. Quem consegue esquecer, quem esquece ri. Mas quem esquece também se engana. Volvidos anos, acontece que, efectivamente, foi impossível a vida sem aquela mulher. É a evidência, a nitidez desse facto que o tempo soterra. E é sobre esse aterro que o erro do amor se faz novamente.

Consideração contra mundo, ii. Porque é na solidão que se aprende quem se é, no plateau ecológico é-se o que se aprendeu meticulosamente a esconder e, com a máscara, a deixar de ser. Torna-se, assim, possível o engano. Segismundo. . Porque é na solidão que se aprende quem se é, no plateau ecológico é-se o que se aprendeu meticulosamente a esconder e, com a máscara, a deixar de ser. Torna-se, assim, possível o engano.

Consideração contra mundo, i. Se se é humano, nasce-se com um potencial de besta. E a grei não apenas conforma esse potencial como ainda, por uma superlativa necessidade funcional, o catalisa. Inventa-se, assim, a necessidade da puta da ordem. Segismundo. . Se se é humano, nasce-se com um potencial de besta. E a grei não apenas conforma esse potencial como ainda, por uma superlativa necessidade funcional, o catalisa. Inventa-se, assim, a necessidade da puta da ordem.

Documento. Está escrito numa folha Após o oitavo Black Label, o discernimento flui, se flui, com dificuldade, lento. Apelo, por isso, a deus. Deus, se existes, segura-me antes da loucura. Deus não me responde. Entrego-me, por isso, livre, à loucura. Leva-me. Que eu vou. um testemunho estranho, não assinado. Segismundo. . Está escrito numa folha Após o oitavo Black Label, o discernimento flui, se flui, com dificuldade, lento. Apelo, por isso, a deus. Deus, se existes, segura-me antes da loucura. Deus não me responde. Entrego-me, por isso, livre, à loucura. Leva-me. Que eu vou. um testemunho estranho, não assinado.

Separação. No desamor, sofre, perde quem tem mais memória, disse ele. Ela primiu o gatilho. Estourou-lhe o arquivo, rebentou a cabeça do desgraçado. Não para, por piedoso gesto, o resgatar à dor. Mas por mero gozo seu. Ela já o tinha esquecido. E não queria ter recordações dele. O Marquês. . No desamor, sofre, perde quem tem mais memória, disse ele. Ela primiu o gatilho. Estourou-lhe o arquivo, rebentou a cabeça do desgraçado. Não para, por piedoso gesto, o resgatar à dor. Mas por mero gozo seu. Ela já o tinha esquecido. E não queria ter recordações dele.

Todos à roleta. O PS que existiu nestes últimos tempos vai acabar. A notícia não é boa. Hoje e amanhã, a trupe socialista escrutina o futuro senhor secretário-geral da causa. O que dizer? Que fiquem, para jogar, ensaiar apostas. A época do casino vai recomeçar. Inevitavelmente. A batota, essa, apenas continua. Nicky Florentino. . O PS que existiu nestes últimos tempos vai acabar. A notícia não é boa. Hoje e amanhã, a trupe socialista escrutina o futuro senhor secretário-geral da causa. O que dizer? Que fiquem, para jogar, ensaiar apostas. A época do casino vai recomeçar. Inevitavelmente. A batota, essa, apenas continua.

Ida e volta. Ele, adeus, tenho que ir. Ela, tens que ir? Abraçou-o e encostou a cabeça ao ombro esquerdo dele, tentando cativá-lo nos seus braços. Ele, sim, tenho um quiz logo à noite. Ela, olhando-o nos olhos, surpreendida, um quiz? Ele, sim, um quiz. Ela, onde? Ele, longe. Ela, longe?, lá de onde vens? Ele, sim. Ela, mas amanhã não vamos à Zé dos Bois? Ele, eu vou. Ela, corrigiu-o, vamos. E depois? Ele, depois?, não sei se há depois. Segismundo. . Ele, adeus, tenho que ir. Ela, tens que ir? Abraçou-o e encostou a cabeça ao ombro esquerdo dele, tentando cativá-lo nos seus braços. Ele, sim, tenho um quiz logo à noite. Ela, olhando-o nos olhos, surpreendida, um quiz? Ele, sim, um quiz. Ela, onde? Ele, longe. Ela, longe?, lá de onde vens? Ele, sim. Ela, mas amanhã não vamos à Zé dos Bois? Ele, eu vou. Ela, corrigiu-o, vamos. E depois? Ele, depois?, não sei se há depois.

Carícias. Tens um cabelo macio, fofo, gosto de passar as mãos no teu cabelo, perder nele os meus dedos, sabias?, disse-lhe ela. Ele nada disse, descalçou-se e arranjou melhor posição no colo dela. Ficas?, perguntou ela, com se lhe pedisse para ficar. Não posso, respondeu ele, tenho que ir. E fechou os olhos, talvez por desejar, mas não poder, ficar. Segismundo. . Tens um cabelo macio, fofo, gosto de passar as mãos no teu cabelo, perder nele os meus dedos, sabias?, disse-lhe ela. Ele nada disse, descalçou-se e arranjou melhor posição no colo dela. Ficas?, perguntou ela, com se lhe pedisse para ficar. Não posso, respondeu ele, tenho que ir. E fechou os olhos, talvez por desejar, mas não poder, ficar.

Sequência íntima, tempo dois. Ele, tu?, saudades?, porquê?, sentes as minhas ausências? Ela, não, o que sinto são as tuas presenças, raras. E ele, que se julgava inocente, sentiu-se subitamente culpado. Mau augúrio. Segismundo. . Ele, tu?, saudades?, porquê?, sentes as minhas ausências? Ela, não, o que sinto são as tuas presenças, raras. E ele, que se julgava inocente, sentiu-se subitamente culpado. Mau augúrio.

Sequência íntima, tempo um. Ela perguntou-lhe saudades. Ele, saudades?, sim, senti saudades disto. Ela, disto?, de nós?, procurou a precisão. Ele, não, da Radar, a rádio – noventa e sete ponto oito, frequência modelada, stéreo –, que ele persistia em sintonizar no carro dela. Segismundo. . Ela perguntou-lhe saudades. Ele, saudades?, sim, senti saudades disto. Ela, disto?, de nós?, procurou a precisão. Ele, não, da Radar, a rádio – noventa e sete ponto oito, frequência modelada, stéreo –, que ele persistia em sintonizar no carro dela.

Açúcar de engano. O veneno a que ele regressou amarga-lhe e já lhe morre dentro. Talvez insistindo ele consiga rever o que procura, veados a comer coelhos. Insistiu. Ela está aí, veio buscar-te, ouviu ele. Levantou o braço direito, agitou-o com um gesto brusco de recusa e disse com voz grave não quero ir ainda. Ela que volte mais tarde. Ela, a ressaca?, ela, a lucidez da ressaca?, há-de voltar. Volta sempre. A alucinação certa é que não. Segismundo. . O veneno a que ele regressou amarga-lhe e já lhe morre dentro. Talvez insistindo ele consiga rever o que procura, veados a comer coelhos. Insistiu. Ela está aí, veio buscar-te, ouviu ele. Levantou o braço direito, agitou-o com um gesto brusco de recusa e disse com voz grave não quero ir ainda. Ela que volte mais tarde. Ela, a ressaca?, ela, a lucidez da ressaca?, há-de voltar. Volta sempre. A alucinação certa é que não.

Ofício de carrasco. Perante o silêncio do meliante, agarrou no revólver e, inclemente, com a coronha da arma, desferiu quatro fortes pancadas, uma contra o crânio dele, três contra as costelas. Supino gozo lhe proporcinou o facto, ver o corpo tombar, em agonia, e, caído no chão, a fechar-se, para protecção, na posição fetal. Seguiram-se os pontapés, cada um assestado com uma impressionante fúria, como se o algoz pretendesse prolongar o êxtase que sentia para além do limite. O Marquês. . Perante o silêncio do meliante, agarrou no revólver e, inclemente, com a coronha da arma, desferiu quatro fortes pancadas, uma contra o crânio dele, três contra as costelas. Supino gozo lhe proporcinou o facto, ver o corpo tombar, em agonia, e, caído no chão, a fechar-se, para protecção, na posição fetal. Seguiram-se os pontapés, cada um assestado com uma impressionante fúria, como se o algoz pretendesse prolongar o êxtase que sentia para além do limite.

Fartar vilanagem. A senhora dr.ª Celeste Cardona foi nomeada administradora da CaixaGeraldeDepósitos. Podia ter sido pior. Podia ter sido nomeada para qualquer outra missão que ela soubesse desempenhar cabalmente. Nicky Florentino. . A senhora dr.ª Celeste Cardona foi nomeada administradora da CaixaGeraldeDepósitos. Podia ter sido pior. Podia ter sido nomeada para qualquer outra missão que ela soubesse desempenhar cabalmente.

Tarantella. O Beasley, o Marco Beasley vai estar em Mafra, creio que no dia dez, informou ela. Queres ir?, perguntou, depois, desafiando a indiferença dele. A Mafra?, se eu quero ir a Mafra?, no dia dez?, reagiu ele. Sim, gostava que fosses comigo, vai ser bom, de certeza, disse ela. Vai ser bom?, o quê?, eu ir contigo? ou o Marco Beasley?, quis ele saber. Vai ser bom o Marco Beasley, claro, vás ou não vás comigo, sentenciou ela, a olhá-lo, clemente, nos olhos. Sendo assim, considero-me dispensado, esquivou-se ele. Devias, antes, considerar-te convidado, repreendeu-o ela. E, súbito, saiu da sala, sentindo-se arrombada no peito, dilacerada, por ele não ter percebido o seu rogo, a sua súplica. Ou isso ou fingiu, ele. Segismundo. . O Beasley, o Marco Beasley vai estar em Mafra, creio que no dia dez, informou ela. Queres ir?, perguntou, depois, desafiando a indiferença dele. A Mafra?, se eu quero ir a Mafra?, no dia dez?, reagiu ele. Sim, gostava que fosses comigo, vai ser bom, de certeza, disse ela. Vai ser bom?, o quê?, eu ir contigo? ou o Marco Beasley?, quis ele saber. Vai ser bom o Marco Beasley, claro, vás ou não vás comigo, sentenciou ela, a olhá-lo, clemente, nos olhos. Sendo assim, considero-me dispensado, esquivou-se ele. Devias, antes, considerar-te convidado, repreendeu-o ela. E, súbito, saiu da sala, sentindo-se arrombada no peito, dilacerada, por ele não ter percebido o seu rogo, a sua súplica. Ou isso ou fingiu, ele.

Agendamento. A propósito, amanhã vou ver o último do Kusturica, disse ele. Ela fingiu não ouvir. Ele estranhou, esperava outra reacção. A Vida é... qualquer coisa, experimentou ele a curiosidade dela. A Vida é Bela, não é?, ela trocista. Não, não é o A Vida é Bela, esse é do Benigni, pá, é o A Vida é... qualquer coisa que não recordo, tentou ele defender-se da provocação. A Vida é um Milagre, menino, é A Vida é um Milagre, surpreendeu-o ela. Exacto, disse ele, desarmado. Já vi, acusou ela. Já viste?, ele mostrou espanto. Sim, já vi, confirmou ela. Ensinaste-me que, quando vamos ao cinema, não devemos deixar os outros escolher os filmes que vamos ver, assim como não devemos esperar pelos outros para irmos juntos ver o filme que queremos ver. Percebendo o espanto dele, interpelou-o, pensei que estas regras também se aplicavam a ti. E aplicam, defendeu-se ele, aplicam-se a mim enquanto sujeito, não enquanto paciente. Não sabia, desculpa, tens que ter paciência, destilou ela o seu cinismo. Segismundo. . A propósito, amanhã vou ver o último do Kusturica, disse ele. Ela fingiu não ouvir. Ele estranhou, esperava outra reacção. A Vida é... qualquer coisa, experimentou ele a curiosidade dela. A Vida é Bela, não é?, ela trocista. Não, não é o A Vida é Bela, esse é do Benigni, pá, é o A Vida é... qualquer coisa que não recordo, tentou ele defender-se da provocação. A Vida é um Milagre, menino, é A Vida é um Milagre, surpreendeu-o ela. Exacto, disse ele, desarmado. Já vi, acusou ela. Já viste?, ele mostrou espanto. Sim, já vi, confirmou ela. Ensinaste-me que, quando vamos ao cinema, não devemos deixar os outros escolher os filmes que vamos ver, assim como não devemos esperar pelos outros para irmos juntos ver o filme que queremos ver. Percebendo o espanto dele, interpelou-o, pensei que estas regras também se aplicavam a ti. E aplicam, defendeu-se ele, aplicam-se a mim enquanto sujeito, não enquanto paciente. Não sabia, desculpa, tens que ter paciência, destilou ela o seu cinismo.

Preâmbulo a agendamento. Que música é essa?, perguntou curiosa. É música balcânica, Sandy Lopičić Orkestar, esclareceu ele. Faz lembrar os filmes do Kusturica, não é?, disse ela. Faz, confirmou ele. Segismundo. . Que música é essa?, perguntou curiosa. É música balcânica, Sandy Lopičić Orkestar, esclareceu ele. Faz lembrar os filmes do Kusturica, não é?, disse ela. Faz, confirmou ele.

Noite em motivo flush. Há um morno no ar e ela está sossegada, devolvida ao sono, quando ele ouve a canção. all my life, i worshipped her... Está suspensa num torpor que a ausenta, reservada para si mesma, entregue ao ritmo do corpo, cansada. her golden voice, her beauty's beat… Na voragem do olhar, olha-a. how she made us feel... E ela, ali, madrugada serena, demasiado serena. how she made me real... Vigia-lhe a inocência, acompanhando o modo como conserta o corpo nos lençóis. and the ground beneath her feet... Rende-se à vontade de se deitar ao lado dela. and the ground beneath her feet... Mas, antes, olha-a uma vez mais, sentindo-se a sentinela que a vigia. and now i can't be sure of anything... Amo-te, diz ele em silêncio. black is white, and cold is heat... Amo-te, repete em silêncio, para a poupar à perturbação de um despertar, mesmo sabendo que, quando acorda, ela sorri quase sempre. for what i worshipped stole my love away... Ao olhá-la, sente-se nas margens de uma distância a que chamam solidão. it was the ground beneath her feet... E é na reserva dessa distância que decifra mistérios. it was the ground beneath her feet... Ainda que os corpos dele e dela cavem uma ilusão. E na mesma elipse esbocem o rasgo suficiente por onde entrará a fúria de quem ama. go lightly down your darkened way... Primeiro como remorso sonolento, mas não indolente. go lightly underground... Depois como corrente suicida, que obriga ao choque da carne, ao contacto duro com a superfície da distância que se desvanece no encontro. i'll be down there in another day... Fragrância feminina, incêndio trôpego, vigília, silêncio. i won't rest untill you're found... Sensação que ninguém os separa, se assim, incertos, forem capazes de se consumirem. let me love you true, let me rescue you... Ele já não resiste à distância, embora pequena seja. let me lead you to where two roads meet... Rende-se, mas torna a hesitar. o come back above... Esta é a última oportunidade para se furtar à rendição. where there's only love... Cede quando percebe que a suave respiração dela é justa, terna e requisita um compasso cúmplice. and the ground beneath her feet... E, junto dela, já corpo rendido também, adormece, ainda antes da canção terminar, naquele quarto onde Lisboa acontece cerco, onde o som foi sufocado pelo sono. and the ground beneath her feet... Segismundo. . Há um morno no ar e ela está sossegada, devolvida ao sono, quando ele ouve a canção. all my life, i worshipped her... Está suspensa num torpor que a ausenta, reservada para si mesma, entregue ao ritmo do corpo, cansada. her golden voice, her beauty's beat… Na voragem do olhar, olha-a. how she made us feel... E ela, ali, madrugada serena, demasiado serena. how she made me real... Vigia-lhe a inocência, acompanhando o modo como conserta o corpo nos lençóis. and the ground beneath her feet... Rende-se à vontade de se deitar ao lado dela. and the ground beneath her feet... Mas, antes, olha-a uma vez mais, sentindo-se a sentinela que a vigia. and now i can't be sure of anything... Amo-te, diz ele em silêncio. black is white, and cold is heat... Amo-te, repete em silêncio, para a poupar à perturbação de um despertar, mesmo sabendo que, quando acorda, ela sorri quase sempre. for what i worshipped stole my love away... Ao olhá-la, sente-se nas margens de uma distância a que chamam solidão. it was the ground beneath her feet... E é na reserva dessa distância que decifra mistérios. it was the ground beneath her feet... Ainda que os corpos dele e dela cavem uma ilusão. E na mesma elipse esbocem o rasgo suficiente por onde entrará a fúria de quem ama. go lightly down your darkened way... Primeiro como remorso sonolento, mas não indolente. go lightly underground... Depois como corrente suicida, que obriga ao choque da carne, ao contacto duro com a superfície da distância que se desvanece no encontro. i'll be down there in another day... Fragrância feminina, incêndio trôpego, vigília, silêncio. i won't rest untill you're found... Sensação que ninguém os separa, se assim, incertos, forem capazes de se consumirem. let me love you true, let me rescue you... Ele já não resiste à distância, embora pequena seja. let me lead you to where two roads meet... Rende-se, mas torna a hesitar. o come back above... Esta é a última oportunidade para se furtar à rendição. where there's only love... Cede quando percebe que a suave respiração dela é justa, terna e requisita um compasso cúmplice. and the ground beneath her feet... E, junto dela, já corpo rendido também, adormece, ainda antes da canção terminar, naquele quarto onde Lisboa acontece cerco, onde o som foi sufocado pelo sono. and the ground beneath her feet...

Noites quentes. A noite está bonita, morna, disse ela, debruçada sobre a varanda, a olhar o rio. Ficas comigo?, perguntou, depois. Como ontem?, inquiriu ele. Não, como hoje, disse ela. Estendeu-se o silêncio, sem ele responder. Quero-te, sabias?, confessou ela, sem desespero, mas com intenção. Ele sabia, mas fingiu não saber. E prolongou o silêncio. Segismundo. . A noite está bonita, morna, disse ela, debruçada sobre a varanda, a olhar o rio. Ficas comigo?, perguntou, depois. Como ontem?, inquiriu ele. Não, como hoje, disse ela. Estendeu-se o silêncio, sem ele responder. Quero-te, sabias?, confessou ela, sem desespero, mas com intenção. Ele sabia, mas fingiu não saber. E prolongou o silêncio.

Canções, worldmaking e fuga. Ela, a ouvir, em correr lento, Leonard Cohen, gostas deste álbum? Ele, estou velho, eu sou mais pelo Songs of Love and Hate. Ela, mais pelas songs of hate do que pelas songs of love, presumo. Ele, não, mais por mil novecentos e setenta e um do que por dois mil e quatro. Ela, não percebi. Ele, mais pela inocência do que pela consciência, percebes? Ela, dói-te assim tanto viver? Ele, quando oiço música não, mas o mundo, comigo lá dentro, continua lá fora, à minha espera. Ela, então por que é que não ficas aqui?, comigo. Dito isto, inclinou a cabeça até a confortar no ombro dele, ao seu lado. Ele, porque aqui dentro, nesta casa, o mundo és tu. Segismundo. . Ela, a ouvir, em correr lento, Leonard Cohen, gostas deste álbum? Ele, estou velho, eu sou mais pelo Songs of Love and Hate. Ela, mais pelas songs of hate do que pelas songs of love, presumo. Ele, não, mais por mil novecentos e setenta e um do que por dois mil e quatro. Ela, não percebi. Ele, mais pela inocência do que pela consciência, percebes? Ela, dói-te assim tanto viver? Ele, quando oiço música não, mas o mundo, comigo lá dentro, continua lá fora, à minha espera. Ela, então por que é que não ficas aqui?, comigo. Dito isto, inclinou a cabeça até a confortar no ombro dele, ao seu lado. Ele, porque aqui dentro, nesta casa, o mundo és tu.

Agenda e quantos. Ele, sábado vou à Zé dos Bois. Ela, enfática, vamos! Ele, Lydia Lunch, é a Lydia Lunch, eu vou ver a Lydia Lunch. Ela, novamente enfática, vamos! A estranha forma do plural ameaça impor-se, sentiu ele. Segismundo. . Ele, sábado vou à Zé dos Bois. Ela, enfática, vamos! Ele, Lydia Lunch, é a Lydia Lunch, eu vou ver a Lydia Lunch. Ela, novamente enfática, vamos! A estranha forma do plural ameaça impor-se, sentiu ele.

O morto-vivo. Disse que tinhas morrido. Se te perguntarem, confirma, se fazes o obséquio. Rogou-lhe ela. O Marquês. . Disse que tinhas morrido. Se te perguntarem, confirma, se fazes o obséquio. Rogou-lhe ela.

Cidadãos de nós. Escreveu o senhor dr. Nobre Guedes no artigo estampado na edição de hoje do Público, “eu acredito que a transparência no poder é uma obrigação moral, e que a opacidade das decisões é uma violação do contrato de confiança que temos com os nossos eleitores, com os nossos cidadãos”. Com os nossos cidadãos... Quem raio é o agente possessivo dos cidadãos? Nicky Florentino. . Escreveu o senhor dr. Nobre Guedes no artigo estampado na edição de hoje do Público, “eu acredito que a transparência no poder é uma obrigação moral, e que a opacidade das decisões é uma violação do contrato de confiança que temos com os nossos eleitores, com os nossos cidadãos”. Com os nossos cidadãos... Quem raio é o agente possessivo dos cidadãos?

A virtude e a salvação. O senhor dr. Luís Nobre Guedes, consabido senhor ministro para a causa ecológica e da ordem dos chãos, escreveu um artigo, estampado na edição de hoje do Público, em que, a propósito do poder, revela alguns dos seus acreditares em relação ao deplorável estado da Pátria. Exemplo, “eu acredito que existem soluções contra este adormecimento moral e contra esta passividade política”. Não espanta, ai!, ui!, este acreditar tão ingénuo do fulano. Pois ele tanto acredita nisso quanto acredita no menino Jesus. O que, quanto a credos políticos na hodiernidade, convenhamos, não é grande credencial. Nicky Florentino. . O senhor dr. Luís Nobre Guedes, consabido senhor ministro para a causa ecológica e da ordem dos chãos, escreveu um artigo, estampado na edição de hoje do Público, em que, a propósito do poder, revela alguns dos seus acreditares em relação ao deplorável estado da Pátria. Exemplo, “eu acredito que existem soluções contra este adormecimento moral e contra esta passividade política”. Não espanta, ai!, ui!, este acreditar tão ingénuo do fulano. Pois ele tanto acredita nisso quanto acredita no menino Jesus. O que, quanto a credos políticos na hodiernidade, convenhamos, não é grande credencial.

O testemunho silente. Sobre a situação, o senhor Prof. Doutor David Justino, o anterior senhor ministro da Educação, remeteu-se ao silêncio. Em nome do interesse público. Dele. Nicky Florentino. . Sobre a situação, o senhor Prof. Doutor David Justino, o anterior senhor ministro da Educação, remeteu-se ao silêncio. Em nome do interesse público. Dele.

O Governo não sabe listar, iô! O contingente de fulanos do PSD e do CDS/PP abancados no hemiciclo de São Bento recusaram liminarmente a hipótese de um inquérito parlamentar, iniciativa do PCP, ao processo de colocação do professorado. Argumentam as criaturas que suportam, na Assembleia da República, o consórcio governamental que tal inquérito seria um modo político de apurar responsabilidades. Ou seja, não pode ser porque são o que são, os senhores deputados e os inquéritos parlamentares. Nenhuma novidade. Nicky Florentino. O contingente de fulanos do PSD e do CDS/PP abancados no hemiciclo de São Bento recusaram liminarmente a hipótese de um inquérito parlamentar, iniciativa do PCP, ao processo de colocação do professorado. Argumentam as criaturas que suportam, na Assembleia da República, o consórcio governamental que tal inquérito seria um modo político de apurar responsabilidades. Ou seja, não pode ser porque são o que são, os senhores deputados e os inquéritos parlamentares. Nenhuma novidade.

Equinócio. Ela, logo, voltas? Ele, para ti? Ela, não, para casa, esta casa. Ele, não, vou, solto, ver o Outono começar. Queres vir? Ela, contigo? Ele, sim, comigo. Ela, encontramo-nos onde? Ele, lá. Ela, e podemos ir à ananana? Ele, podemos. Ela, e podemos ir de mãos dadas? Ele, não, não podemos ir de mãos dadas. Ela, porquê? Ele, porque o princípio do Outono é o princípio do Outono, não se partilha. Ela, então por que é que me convidaste? Ele, porque, assim, eu e tu podemos não partilhá-lo juntos. Ela, está bem. Disse-o e sorriu. Com a esperança de conseguir comungar com ele o princípio do Outono. Ele sabe que ela conseguirá. Ele apenas não sabe se ele-mesmo conseguirá. Ou se o Outono, que começa, como eles também começam, o permitirá. Segismundo. . Ela, logo, voltas? Ele, para ti? Ela, não, para casa, esta casa. Ele, não, vou, solto, ver o Outono começar. Queres vir? Ela, contigo? Ele, sim, comigo. Ela, encontramo-nos onde? Ele, lá. Ela, e podemos ir à ananana? Ele, podemos. Ela, e podemos ir de mãos dadas? Ele, não, não podemos ir de mãos dadas. Ela, porquê? Ele, porque o princípio do Outono é o princípio do Outono, não se partilha. Ela, então por que é que me convidaste? Ele, porque, assim, eu e tu podemos não partilhá-lo juntos. Ela, está bem. Disse-o e sorriu. Com a esperança de conseguir comungar com ele o princípio do Outono. Ele sabe que ela conseguirá. Ele apenas não sabe se ele-mesmo conseguirá. Ou se o Outono, que começa, como eles também começam, o permitirá.

Manhã. Porque não acordei, não me recordo de te ter sonhado, disse ele. Ao lado, ela, estranha, percebeu a mensagem. Decidiu ficar. A casa, a cama não eram as dele. E quem és tu?, hoje?, perguntou ela. A reposta que ele lhe deu foi um beijo, nos lábios. Depois encontrou o peito dela com o seu. Para ficar também. Segismundo. . Porque não acordei, não me recordo de te ter sonhado, disse ele. Ao lado, ela, estranha, percebeu a mensagem. Decidiu ficar. A casa, a cama não eram as dele. E quem és tu?, hoje?, perguntou ela. A reposta que ele lhe deu foi um beijo, nos lábios. Depois encontrou o peito dela com o seu. Para ficar também.

Autofagia das paixões. Costumas regressar aos lugares onde foste feliz?, perguntou-lhe. Se forem mulheres, não. Passados há que não admitem futuro, disse. Segismundo. . Costumas regressar aos lugares onde foste feliz?, perguntou-lhe. Se forem mulheres, não. Passados há que não admitem futuro, disse.

Roupa lavada. O Zé Vitório comprou lixívia Neoblanc para tirar as nódoas das suas maculadas t-shirts. Ignaro na arte, pareceu-lhe adequado aplicar uma dose, uma tampa cheia, sobre cada nódoa. Por este generoso processo conseguiu destruir quatro t-shirts. Quatro t-shirts para o galheiro, como ele disse. Segismundo. . O Zé Vitório comprou lixívia Neoblanc para tirar as nódoas das suas maculadas t-shirts. Ignaro na arte, pareceu-lhe adequado aplicar uma dose, uma tampa cheia, sobre cada nódoa. Por este generoso processo conseguiu destruir quatro t-shirts. Quatro t-shirts para o galheiro, como ele disse.

Da (des)ilusão. O que leva alguém a crer mais na ficção do que na realidade? Provavelmente a vontade de ser feliz. Provavelmente o alívio. Seja como for, as coisas são como foram e são. Não diferentes. Segismundo. . O que leva alguém a crer mais na ficção do que na realidade? Provavelmente a vontade de ser feliz. Provavelmente o alívio. Seja como for, as coisas são como foram e são. Não diferentes.

Credo. Sei da vida, não sei do amor, disse-lhe ele. Ela, aconchegada no seu peito, recolhida no corpo dele – como se fosse um abrigo –, não quis acreditar. No momento, o coração, a paixão traiu-lhe a coragem. Por isso, o sofrimento dela encontra-se na oportunidade da confirmação. Provavelmente breve. O Marquês. . Sei da vida, não sei do amor, disse-lhe ele. Ela, aconchegada no seu peito, recolhida no corpo dele – como se fosse um abrigo –, não quis acreditar. No momento, o coração, a paixão traiu-lhe a coragem. Por isso, o sofrimento dela encontra-se na oportunidade da confirmação. Provavelmente breve.

Erro de casting. Provado, na pátria, e-government não Compta. Nicky Florentino. . Provado, na pátria, e-government não Compta.

Manufacturar. A senhora ministra da Educação informou que, falhado o processo informático de seriação dos professores, tudo irá ser feito à mão. Era mais aconselhado que fosse com a cabeça. Nicky Florentino. . A senhora ministra da Educação informou que, falhado o processo informático de seriação dos professores, tudo irá ser feito à mão. Era mais aconselhado que fosse com a cabeça.

Mudança de ramo de actividade na rua Viriato. Brevemente vou deixar de vender música e vou passar a vender suicídios, disse-lhe o Tomás. Segismundo. . Brevemente vou deixar de vender música e vou passar a vender suicídios, disse-lhe o Tomás.

Com cd quem ganha (não) é você. Foi apresentado um compact disc com canções que musicam textos do senhor dr. Manuel Alegre, cuja comercialização visa proporcionar receitas para a sua campanha para senhor secretário-geral da trupe socialista. Ora aí está um bom motivo para o não comprar. Segismundo. . Foi apresentado um compact disc com canções que musicam textos do senhor dr. Manuel Alegre, cuja comercialização visa proporcionar receitas para a sua campanha para senhor secretário-geral da trupe socialista. Ora aí está um bom motivo para o não comprar.

Seabra’s list. Quatro, hora da madrugada. A lista de colocação de professores foi finalmente divulgada. Mau prenúncio. Segismundo. . Quatro, hora da madrugada. A lista de colocação de professores foi finalmente divulgada. Mau prenúncio.

Feitiço. Com o(s) último(s) de Nick Cave & the Bad Seeds na mão, és mais pelo rosa? ou pelo verde?, perguntou-lhe. Começou ele a responder, não sei

entretanto fechou o livro por instantes, a mão esquerda a segurar a lombada e o indicador da mão direita a marcar as páginas, para acompanhar Spell, uma das canções d’The Lyre of Orpheus,

I have no abiding memory

No awakening, no flaming dart

No word of consolation

No arrow through my heart

Only a feeble notion

A glimmer from afar

That I cling to with my fingers

As we go spinning wildly through the stars…

e não sei se quero saber, continuou e rematou ele a resposta, regressando com os olhos a Erzébet Báthory. La Contesse Sanglante, escrito por Valentine Penrose. Segismundo. . Com o(s) último(s) de Nick Cave & the Bad Seeds na mão, és mais pelo rosa? ou pelo verde?, perguntou-lhe. Começou ele a responder, não seientretanto fechou o livro por instantes, a mão esquerda a segurar a lombada e o indicador da mão direita a marcar as páginas, para acompanhar Spell, uma das canções d’The Lyre of Orpheus,I have no abiding memoryNo awakening, no flaming dartNo word of consolationNo arrow through my heartOnly a feeble notionA glimmer from afarThat I cling to with my fingersAs we go spinning wildly through the stars…e não sei se quero saber, continuou e rematou ele a resposta, regressando com os olhos a Erzébet Báthory. La Contesse Sanglante, escrito por Valentine Penrose.

Friends forever. Enviou-lhe um ramo de flores. Túlipas. No cartão escreveu no fim como no princípio. Foi assim que decidiu selar a amizade que tinha que ser e nada mais. Segismundo. . Enviou-lhe um ramo de flores. Túlipas. No cartão escreveu no fim como no princípio. Foi assim que decidiu selar a amizade que tinha que ser e nada mais.

O estúpido. Apetece-me chamar-te estúpido. Estúpido! Sei que isso te magoa. Estúpido! Sim, tu. Estúpido! Disse ela. O Marquês. . Apetece-me chamar-te estúpido. Estúpido! Sei que isso te magoa. Estúpido! Sim, tu. Estúpido! Disse ela.

Um desejo secreto. Preenche-o, entre outros desideratos confessáveis, um desejo secreto, o de atropelar, numa madrugada, um peregrino de Fátima. Deseja-o não tanto por vontade de experimentar a vigilância e a disponibilidade do círio mariano que supostamente pairou sobre uma azinheira da Cova de Iria. Mas para poder gozar a agonia da eventual vítima. O Marquês. . Preenche-o, entre outros desideratos confessáveis, um desejo secreto, o de atropelar, numa madrugada, um peregrino de Fátima. Deseja-o não tanto por vontade de experimentar a vigilância e a disponibilidade do círio mariano que supostamente pairou sobre uma azinheira da Cova de Iria. Mas para poder gozar a agonia da eventual vítima.

A via do outro princípio. Jantar?, onde?, perguntou ele. No Páteo do Faustino, respondeu ela. Pela Áoito chegamos lá num instante, explicou. Pela Áoito?, então levas tu o carro, sentenciou ele. Não quero que a estória se repita, acrescentou. Estória?, qual estória?, expôs ela, assim, a sua curiosidade. Ele entregou-lhe a chave do carro e não lhe respondeu. Não lhe podia responder. Segismundo. . Jantar?, onde?, perguntou ele. No Páteo do Faustino, respondeu ela. Pela Áoito chegamos lá num instante, explicou. Pela Áoito?, então levas tu o carro, sentenciou ele. Não quero que a estória se repita, acrescentou. Estória?, qual estória?, expôs ela, assim, a sua curiosidade. Ele entregou-lhe a chave do carro e não lhe respondeu. Não lhe podia responder.

Na bilheteira. Ele comprou três bilhetes para o concerto d’The Magnetic Fields. Mais três bilhetes para o concerto dos Rammstein. Não são bilhetes a mais?, não há alguém a mais?, perguntou-lhe. Talvez não, respondeu ele. Segismundo. . Ele comprou três bilhetes para o concerto d’The Magnetic Fields. Mais três bilhetes para o concerto dos Rammstein. Não são bilhetes a mais?, não há alguém a mais?, perguntou-lhe. Talvez não, respondeu ele.

Regresso. Lisboa. Quase nada passava das seis horas, madrugada, quando ele tocou à campaínha. Ela pouco demorou. És tu, disse ela, sonolenta, sem aparentar surpresa ou estranheza. Entra, autorizou ela, abrindo mais a porta. Ele entrou. Há quantos meses não te via?, dois?, três?, perguntou ela. Desculpa, não devia ter vindo, disse ele. Não peças desculpa, és assim, surges quase sempre de madrugada e raramente avisas, sossegou-o ela. És louco, mas estou habituada a essa forma louca de seres, confessou-lhe. Ele percebeu alterações na casa, na decoração, mas não conseguiu precisar o que tinha mudado. Vejo que já trazes o jornal – o costume, não é? –, disse ela. Senta-te. Ele sentou-se. Então, o que vieste aqui fazer?, perguntou-lhe ela. Não sei, tentar falar de amor, disse ele. Isso não existe, o amor não existe, o que existe são os amores, provocou-o ela. Ele baixou os olhos. Fui eu que te disse isso, não fui?, inquiriu ele. Ela sorriu apenas. E foi directa a uma pergunta que ele não esperava, vens para me amar? Fez-se um breve silêncio antes da resposta. Não, venho para ver o Tejo a acordar. Sei que daquela janela, apontou-a, consigo fazê-lo. Ela apagou a luz da sala, correu os cortinados, abriu a janela e abraçou-o, aninhando-se nos seus braços, transmitindo-lhe o calor de mulher. Estava à tua espera, sabias? Ele não sabia. Beijou-lhe a face e tentou fingir as lágrimas. Então?, anda cá, disse ela. E ele foi. Já tinha ido. Segismundo. . Lisboa. Quase nada passava das seis horas, madrugada, quando ele tocou à campaínha. Ela pouco demorou. És tu, disse ela, sonolenta, sem aparentar surpresa ou estranheza. Entra, autorizou ela, abrindo mais a porta. Ele entrou. Há quantos meses não te via?, dois?, três?, perguntou ela. Desculpa, não devia ter vindo, disse ele. Não peças desculpa, és assim, surges quase sempre de madrugada e raramente avisas, sossegou-o ela. És louco, mas estou habituada a essa forma louca de seres, confessou-lhe. Ele percebeu alterações na casa, na decoração, mas não conseguiu precisar o que tinha mudado. Vejo que já trazes o jornal – o costume, não é? –, disse ela. Senta-te. Ele sentou-se. Então, o que vieste aqui fazer?, perguntou-lhe ela. Não sei, tentar falar de amor, disse ele. Isso não existe, o amor não existe, o que existe são os amores, provocou-o ela. Ele baixou os olhos. Fui eu que te disse isso, não fui?, inquiriu ele. Ela sorriu apenas. E foi directa a uma pergunta que ele não esperava, vens para me amar? Fez-se um breve silêncio antes da resposta. Não, venho para ver o Tejo a acordar. Sei que daquela janela, apontou-a, consigo fazê-lo. Ela apagou a luz da sala, correu os cortinados, abriu a janela e abraçou-o, aninhando-se nos seus braços, transmitindo-lhe o calor de mulher. Estava à tua espera, sabias? Ele não sabia. Beijou-lhe a face e tentou fingir as lágrimas. Então?, anda cá, disse ela. E ele foi. Já tinha ido.

Alegre com todos, contra. O senhor eng.º José Sócrates acusou o senhor dr. Manuel Alegre de, no assunto da co-inceneração em Souselas, ter votado com a direita, portanto contra o Governo socialista de então. O senhor dr. Alegre defendeu-se. Diz que não. Não votou apenas com a direita. Votou também com o BE, o PCP e PEV. Mais arco-íris não podia ser. Nicky Florentino. . O senhor eng.º José Sócrates acusou o senhor dr. Manuel Alegre de, no assunto da co-inceneração em Souselas, ter votado com a direita, portanto contra o Governo socialista de então. O senhor dr. Alegre defendeu-se. Diz que não. Não votou apenas com a direita. Votou também com o BE, o PCP e PEV. Mais arco-íris não podia ser.

O silêncio como precedente. Há motivos, há sempre motivos, para um senhor primeiro-ministro não falar de determinados tópicos. A propósito de uma intervenção do senhor dr. Santana Lopes, um desses motivos, segundo o senhor Prof. Doutor Rebelo de Sousa, é que “o dr. Cavaco nunca falou em refinarias!”. E do que ele não falou não deve, nunca, falar-se. Mas fazer eco do seu silêncio. Nicky Florentino. . Há motivos, há sempre motivos, para um senhor primeiro-ministro não falar de determinados tópicos. A propósito de uma intervenção do senhor dr. Santana Lopes, um desses motivos, segundo o senhor Prof. Doutor Rebelo de Sousa, é que “o dr. Cavaco nunca falou em refinarias!”. E do que ele não falou não deve, nunca, falar-se. Mas fazer eco do seu silêncio.

O senhor ministro motossera. Disse o senhor dr. Paulo Portas, “as pessoas vão perceber que têm um ministro do Ambiente que corta a direito”. Mas quem é que sugeriu ao fulano que os gentios gostam de quem corta a eito? A ecologia, seguro, não é isso. Que alguém lhe explique. Nicky Florentino. . Disse o senhor dr. Paulo Portas, “as pessoas vão perceber que têm um ministro do Ambiente que corta a direito”. Mas quem é que sugeriu ao fulano que os gentios gostam de quem corta a eito? A ecologia, seguro, não é isso. Que alguém lhe explique.

Privação relativa. Erik Olin Wright, um marxiano norte-americano, já disse o que o Nicky Florentino. . Erik Olin Wright, um marxiano norte-americano, já disse o que o João também disse sobre a(s) classe(s) média(s). Chamou-lhe(s) lugar(es) contraditório(s) de classe. Pretendendo com tal rótulo reportar as condições sob as quais uma mole de desgraçados e explorados, anestesiados por um sentimento de menor privação relativa em relação aos ainda mais desgraçados, concorre alacremente para a operação e a reprodução do processo de acumulação capitalista.

Redundância. Eu não vos disse?, disse o Nicky Florentino. . Eu não vos disse?, disse o José

Roleta de tudo e do(s) amor(es). Ela e ele estão apaixonados, perdidamente apaixonados, embriagados pela paixão. Como antes estiveram. Por outro e por outra, respectivamente. Tal e qual como ditado por Lavoisier para as massas. Nada se perde, nada se cria. Tudo se transforma. Com as inexoráveis dores pelo meio. O Marquês. . Ela e ele estão apaixonados, perdidamente apaixonados, embriagados pela paixão. Como antes estiveram. Por outro e por outra, respectivamente. Tal e qual como ditado por Lavoisier para as massas. Nada se perde, nada se cria. Tudo se transforma. Com as inexoráveis dores pelo meio.

Viagem. A coragem foi de comboio para Lisboa. Coragem? Segismundo. . A coragem foi de comboio para Lisboa. Coragem?

Um, dois, dealer, experiência. Começa ele, com o veneno já dentro de si, a ver mais exactas, nítidas as coisas. Amar, verbo intransitivo. Como escreveu Mário de Andrade. Segismundo. . Começa ele, com o veneno já dentro de si, a ver mais exactas, nítidas as coisas. Amar, verbo intransitivo. Como escreveu Mário de Andrade.

Lágrimas por um desconhecido. Ela, de onde é que te conheço? Ele, provavelmente daí, da vida, não sei. Ela, onde é que tens andado?, onde tens escondido esses olhos?, olhos lindos. Ele, por lugares que provavelmente não conheces. Ela, sabias?, sou capaz de me apaixonar por ti. Ele, agora?, aqui? Ela, sim, e amanhã também. Depois tentou o beijo. Ele esquivou-se. Mas sorriu-lhe. E, com a mão direita, tocou-a levemente na face. Ele, desculpa, mas não estou para ninguém, sequer para a tua paixão. Depois saiu. Eles, os outros, dizem que ela ficou a chorar. Segismundo. . Ela, de onde é que te conheço? Ele, provavelmente daí, da vida, não sei. Ela, onde é que tens andado?, onde tens escondido esses olhos?, olhos lindos. Ele, por lugares que provavelmente não conheces. Ela, sabias?, sou capaz de me apaixonar por ti. Ele, agora?, aqui? Ela, sim, e amanhã também. Depois tentou o beijo. Ele esquivou-se. Mas sorriu-lhe. E, com a mão direita, tocou-a levemente na face. Ele, desculpa, mas não estou para ninguém, sequer para a tua paixão. Depois saiu. Eles, os outros, dizem que ela ficou a chorar.

Alucinação. Há quanto tempo não vês veados a comer coelhos?, perguntou-lhe alguém de dentro, talvez a consciência. Não sei. Mas para a semana vou ver, respondeu ele. E vai. Segismundo. . Há quanto tempo não vês veados a comer coelhos?, perguntou-lhe alguém de dentro, talvez a consciência. Não sei. Mas para a semana vou ver, respondeu ele. E vai.

Vidægo. Ele anda a comer pouco e não se entregou a dieta. Ele anda também a aprender a não dormir. Será que é demasiado estranho, mais estranho do que habitualmente ele é, levar a almofada para um grupo de discussão, em congresso, sobre cidade, cidadão e cidadania? Talvez não. Ele continua a tomar banho todos os dias. Segismundo. . Ele anda a comer pouco e não se entregou a dieta. Ele anda também a aprender a não dormir. Será que é demasiado estranho, mais estranho do que habitualmente ele é, levar a almofada para um grupo de discussão, em congresso, sobre cidade, cidadão e cidadania? Talvez não. Ele continua a tomar banho todos os dias.

Fra(n)queza, ou Consideração sobre um cadáver esquisito. Às vezes pedem-nos para sermos francos. Ou exigem que sejamos francos. Por princípio irónico, devemos ser francos. Não porque nos pedem ou exigem. Sim porque merecemos a franqueza dos outros. A sinceridade implica reciprocidade, simetria. A simulação é um exercício de assimetria. Mas, ironia – a puta da vida é mesmo assim –, quem pede ou exige que sejamos francos momentos e ocasiões há em que não consegue ser sujeito de franqueza. Fosse este o maior problema... Porém não é. Tão pouco é problema. É simplesmente descortesia. Ou, talvez, então, dificuldade em mostrar as cartas seguras na mão. Com o temor de que, porque outros ficam a conhecer o jogo guardado, se fique desprotegido. Como se isso fosse um trunfo. Não, não é. É a confiança gasta. Melhor, é a desconfiança. Que foi sempre ou quase. Segismundo. . Às vezes pedem-nos para sermos francos. Ou exigem que sejamos francos. Por princípio irónico, devemos ser francos. Não porque nos pedem ou exigem. Sim porque merecemos a franqueza dos outros. A sinceridade implica reciprocidade, simetria. A simulação é um exercício de assimetria. Mas, ironia – a puta da vida é mesmo assim –, quem pede ou exige que sejamos francos momentos e ocasiões há em que não consegue ser sujeito de franqueza. Fosse este o maior problema... Porém não é. Tão pouco é problema. É simplesmente descortesia. Ou, talvez, então, dificuldade em mostrar as cartas seguras na mão. Com o temor de que, porque outros ficam a conhecer o jogo guardado, se fique desprotegido. Como se isso fosse um trunfo. Não, não é. É a confiança gasta. Melhor, é a desconfiança. Que foi sempre ou quase.

Noir. Esta é a última etapa inocente. Antes do ódio. Ódio que, por este desviado caminho das paixões, ele nunca mais alcança. O Marquês. Esta é a última etapa inocente. Antes do ódio. Ódio que, por este desviado caminho das paixões, ele nunca mais alcança.

Festa mórbida. As imagens relativas à cerimónia de transladação do que sobra de Manuel de Arriaga para o Panteão Nacional revelam um número extraordinário de participantes. Provavelmente, a maioria das criaturas o que sabe sobre o primeiro senhor presidente da República da pátria é nada. Mas o fascínio que as festas de Estado produzem sobre os leais servidores da pátria e sua nobre causa, esse, é xisxiséle. Pois todas e todos apreciam ficar estampados na polaroid da ocasião. O mais que houver é apenas simpatia. De Estado. Pois república é outra coisa. Nicky Florentino. . As imagens relativas à cerimónia de transladação do que sobra de Manuel de Arriaga para o Panteão Nacional revelam um número extraordinário de participantes. Provavelmente, a maioria das criaturas o que sabe sobre o primeiro senhor presidente da República da pátria é nada. Mas o fascínio que as festas de Estado produzem sobre os leais servidores da pátria e sua nobre causa, esse, é xisxiséle. Pois todas e todos apreciam ficar estampados na polaroid da ocasião. O mais que houver é apenas simpatia. De Estado. Pois república é outra coisa.

Sobressalto é bailinho. O PS madeirense apelou a um sobressalto cívico no arquipélago, pretendendo, com isso, arrecadar proveitos eleitorais. Mas existe lá maior sobressalto cívico do que votar nas listas patrocinadas pelo senhor dr. Jardim? Nicky Florentino. . O PS madeirense apelou a um sobressalto cívico no arquipélago, pretendendo, com isso, arrecadar proveitos eleitorais. Mas existe lá maior sobressalto cívico do que votar nas listas patrocinadas pelo senhor dr. Jardim?

Décimo sexto. Pacote de nódoas amestradas e com a faculdade de fala, é o que eles, no conjunto, parecem ser. Não sei se são. Nicky Florentino. . Pacote de nódoas amestradas e com a faculdade de fala, é o que eles, no conjunto, parecem ser. Não sei se são.

No Café Central. Ela entrou e estacionou junto ao balcão. Esperou a sua vez. Que queria ela?, tabaco?, totoloto?, uma revista?, um jornal? Quando a dona Natália lhe perguntou o que desejava, ela debruçou-se sobre o balcão e, sem palavras, apontou uma revista. Ficou nessa posição. Ele, entretanto, entrou também. Estancou à entrada. Nada queria da tabacaria. Ficou a olhar, a apreciar a rapariga, de costas, dobrada. Concentrou o olhar. Afinou-o, baixando a cabeça e olhando por cima dos óculos, convenientemente puxados no momento até à ponta do nariz. Deve ter imaginado o segredo que estava para além das calças justas dela. Deve ter desejado esse segredo - o sorriso traiu-o. Ela continuou dobrada sobre o balcão, sem perceber a cobiça do seu corpo. E ele, surpreendido com esgar de guloso, depois de ruborizar e, envergonhado, baixar a cabeça, olhar para o chão, dirigiu-se para uma mesa. A rodar a aliança do anelar da mão esquerda. Antes de a esconder no bolso. Segismundo. . Ela entrou e estacionou junto ao balcão. Esperou a sua vez. Que queria ela?, tabaco?, totoloto?, uma revista?, um jornal? Quando a dona Natália lhe perguntou o que desejava, ela debruçou-se sobre o balcão e, sem palavras, apontou uma revista. Ficou nessa posição. Ele, entretanto, entrou também. Estancou à entrada. Nada queria da tabacaria. Ficou a olhar, a apreciar a rapariga, de costas, dobrada. Concentrou o olhar. Afinou-o, baixando a cabeça e olhando por cima dos óculos, convenientemente puxados no momento até à ponta do nariz. Deve ter imaginado o segredo que estava para além das calças justas dela. Deve ter desejado esse segredo - o sorriso traiu-o. Ela continuou dobrada sobre o balcão, sem perceber a cobiça do seu corpo. E ele, surpreendido com esgar de guloso, depois de ruborizar e, envergonhado, baixar a cabeça, olhar para o chão, dirigiu-se para uma mesa. A rodar a aliança do anelar da mão esquerda. Antes de a esconder no bolso.

A cura. Ele recebeu um telegrama. Depois de o ler,

dizia assim: com este manto não escondo deus stop ele não existe stop e eu sou capaz de me enganar stop

segurou uma polaroid que trazia na carteira. Olhou-a demorada mas não excessivamente

eras tão bonita, pensou, e vieste como paixão...

e disse adeus a quem, já quase recordação, nela estava gravada.

mas, como diz a canção, boys don't cry. Segismundo. . Ele recebeu um telegrama. Depois de o ler,dizia assim: com este manto não escondo deus stop ele não existe stop e eu sou capaz de me enganar stopsegurou uma polaroid que trazia na carteira. Olhou-a demorada mas não excessivamenteeras tão bonita, pensou, e vieste como paixão...e disse adeus a quem, já quase recordação, nela estava gravada.mas, como diz a canção, boys don't cry.

Correcção. Reclamou O Marquês. Ameaçou exilar-se. Não suicidar-se. Disse ele. Qual é a diferença? Não explicou. Ele não quis explicar. Segismundo. . Reclamou O Marquês. Ameaçou exilar-se. Não suicidar-se. Disse ele. Qual é a diferença? Não explicou. Ele não quis explicar.

Quod erat demonstrandum. Prova, provada, elas não conseguem amar o rapaz-ostra. Ele não deixa. Fecha-se. Facto que o reprova. E lhe custa, como é de custar, dores, imensas dores. O Marquês. . Prova, provada, elas não conseguem amar o rapaz-ostra. Ele não deixa. Fecha-se. Facto que o reprova. E lhe custa, como é de custar, dores, imensas dores.

O desassossego democrático. Disse, enlevado, o senhor ministro da Justiça, “configura um dever indeclinável da nossa geração – um dever ético, cívico, político, diria mesmo constitucional – criar as condições para assegurar a plena e cabal afirmação do poder judicial como garante do Estado de direito”. É por estes depoimentos que, obrigados à lucidez, alguns gentios mais dispersos conseguem conceber a democracia como ela é. Difícil. E, porque não feita, jamais feita, coisa a fazer. Daí que a puta da sua ilusão, uma vez revelada, se torne insuportável. Dado que ninguém aprecia ser enganado, em devido tempo, ainda na oportunidade para a renúncia, alguém devia ter ensinado que a democracia subsiste apenas com democratas. Não com atávicos e sossegados. E que é difícil. Nicky Florentino. . Disse, enlevado, o senhor ministro da Justiça, “configura um dever indeclinável da nossa geração – um dever ético, cívico, político, diria mesmo constitucional – criar as condições para assegurar a plena e cabal afirmação do poder judicial como garante do Estado de direito”. É por estes depoimentos que, obrigados à lucidez, alguns gentios mais dispersos conseguem conceber a democracia como ela é. Difícil. E, porque não feita, jamais feita, coisa a fazer. Daí que a puta da sua ilusão, uma vez revelada, se torne insuportável. Dado que ninguém aprecia ser enganado, em devido tempo, ainda na oportunidade para a renúncia, alguém devia ter ensinado que a democracia subsiste apenas com democratas. Não com atávicos e sossegados. E que é difícil.

The right man. São compreensíveis muitos dos desmandos e o desatino do actual Governo. Ninguém pode dar mais do que, de facto, pode dar. Todavia, não se compreende por qual raio o senhor dr. Luís Delgado não foi nomeado como comissário maioral da CaixaGeraldeDepósitos. A questão não é de merecimento. A questão é de isso mesmo. Nada. Nicky Florentino. . São compreensíveis muitos dos desmandos e o desatino do actual Governo. Ninguém pode dar mais do que, de facto, pode dar. Todavia, não se compreende por qual raio o senhor dr. Luís Delgado não foi nomeado como comissário maioral da CaixaGeraldeDepósitos. A questão não é de merecimento. A questão é de isso mesmo. Nada.

Ele outro. O Segismundo. . O Vincent está no meio de nós. Danado.

Ele. Tenho inveja do Segismundo. . Tenho inveja do Rui , do que ele consegue. Mas não confesso. Os danados não confessam. Esplanam.

Luto ou talvez não. O Marquês anda a ameaçar suicidar-se. Se morrer, é festa. Se não morrer, é festa também. Aqui, neste tugúrio, ninguém é obrigado a viver. Segismundo. . O Marquês anda a ameaçar suicidar-se. Se morrer, é festa. Se não morrer, é festa também. Aqui, neste tugúrio, ninguém é obrigado a viver.

Releitura. Ele voltou a ler Voyage au Bout de la Nuit. Visceral é o seu estado. Os Chants de Maldoror não estavam a ser tónico suficiente, disse ele, justificando-se. Antes de alcançar e beber mais um cocktail de pólvora. Porque lhe amarga. E lhe dói. É para doer. A dor dissipa a memória e revolta horizontes, acredita ele. Enganado. O Marquês. . Ele voltou a ler Voyage au Bout de la Nuit. Visceral é o seu estado. Os Chants de Maldoror não estavam a ser tónico suficiente, disse ele, justificando-se. Antes de alcançar e beber mais um cocktail de pólvora. Porque lhe amarga. E lhe dói. É para doer. A dor dissipa a memória e revolta horizontes, acredita ele. Enganado.

O Estado-circo. Disse ele, o senhor ministro dos Assuntos Parlamentares, “serei eu próprio, com a minha disponibilidade total, a convicção e a boa disposição e a alegria com que procuro fazer tudo”. Um palhaço, a propósito do seu ofício, provavelmente não desdenharia utilizar as mesmíssimas palavras arrumadas na mesmíssima ordem. Revelam aquilo que é de revelar, a alegria no trabalho. Nicky Florentino. . Disse ele, o senhor ministro dos Assuntos Parlamentares, “serei eu próprio, com a minha disponibilidade total, a convicção e a boa disposição e a alegria com que procuro fazer tudo”. Um palhaço, a propósito do seu ofício, provavelmente não desdenharia utilizar as mesmíssimas palavras arrumadas na mesmíssima ordem. Revelam aquilo que é de revelar, a alegria no trabalho.

Luz. É luminosa a estória Segismundo. . É luminosa a estória dela . Pelo que não diz, onde?, dizendo.

Tráfego. A melodia traz embrulhadas as palavras. Ele perguntou-se se estas, as primeiras,

You have never been in love

until you've seen the stars

reflect in the reservoirs...

seriam as palavras exactas. Talvez fossem. Talvez não fossem. Aquele não era o tempo ou o lugar para meditações. A circunstância era apenas de espera. Continuou, por isso, retido, fechado, no trânsito, apenas a ouvir a canção

You have never been in love

until you've seen sunlight thrown

over smashed human bone...

e a pensar nos gestos que não devia ter poupado, nos gestos que devia ter confirmado conforme a sua vontade. Porque, agora, as palavras vêm já tarde, depois da oportunidade, parecendo fracas, mortas, sem impacto,

such a silly boy...

ao contrário do que acontece na pândega canção pop que exala da telefonia e preenche o automóvel. Segismundo. . A melodia traz embrulhadas as palavras. Ele perguntou-se se estas, as

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