O que é que aprendemos com Macron e por que motivo nos lembramos da TSU?

20-12-2018
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Internacional O que é que aprendemos com Macron e por que motivo nos lembramos da TSU? 15.12.2018 às 18h00 Facebook Twitter Email Whatsapp Mais Google+ Linkedin Pinterest Link: EPA Durante semanas não falou e quando falou foi para pedir desculpa, prometer ouvir e acabar com o imposto sobre o combustível que levou violentamente os franceses à rua. Macron cedeu. Em Portugal, a manifestação que faz cair a Taxa Social Única é vista com a maior prova da “força da rua” desde o 25 de Abril. Em que convergem os dois movimentos e quais os perigos dos protestos espontâneos? Dois homens próximos das negociações da TSU falam ao Expresso. A ativista que trouxe aquela gente toda à rua em 2012 também Ana França texto Jornalista Uma das últimas cenas do documentário “Emmanuel Macron: Nos Bastidores da Vitória”, de Yann L'Hénoret, é passado na cidade que o viu crescer, Amiens. Faltam poucos dias para as eleições. É entre ele e Marine Le Pen. Os trabalhadores da Whirlpool estão em greve e Macron é recebido pela intersindical. Um homem sentado à sua frente, com roupa de trabalho, robusto e assertivo, pergunta-lhe porque é que não os foi visitar. É um pergunta simples que deixa Macron entre o surpreendido e o comovido, com olhos muito abertos a olhar para quem lhe coloca esta pergunta tão cândida. Rabisca qualquer coisa no seu bloco e continua a olhar para o homem, de barba cerrada, que dispara mais perguntas e repete a mais importante: - O senhor vai remover a lei que obriga as empresas a justificar os despedimentos económicos? Porque não se encontrou com os trabalhadores? Não digo hoje mas há um mês, dois meses? Se puder encontre-se com eles amanhã, acho que seria importante, o senhor pode ser presidente da República em breve. Vá cumprimentá-los, se puder, se puder. Enquanto Macron se encontrava com os representantes dos trabalhadores, Le Pen entrara pelo parque de estacionamento da mesma fábrica, reunindo-se diretamente com quem se manifestava. Macron apercebe-se do que se passou e zanga-se com a sua equipa por dar prioridade ao protocolo. “Não pode parecer que me ando a esconder, pessoal, por favor!” O ódio a Macron e ao resto da classe política francesa parece ser a única coisa que une os coletes amarelos: não estão associados a um sindicato, não vêm de um único grupo profissional ou social, não querem entregar ao governo um caderno de encargos comum. Encontrar um interlocutor foi por isso uma das dificuldades que o primeiro-ministro de França, Édouard Phillippe, encontrou quando se tentou reunir com este grupo amorfo de manifestantes que durante quatro semanas espalhou o caos no país. Uma “comitiva” moderada, ainda assim, aceitou ser recebida por ele. E recebeu ameaças de morte por isso. “Eu sinto a vossa ira. Deem-me uma segunda oportunidade.” Foi assim que Emmanuel Macron, presidente com a popularidade amolgada pelos protestos, respondeu a quem lhe pedia mais atenção aos problemas da classe média. Mas estas palavras, para muitos, chegaram tarde e, antes de chegarem, o silêncio do Eliseu foi lido com arrogância de Macron. epa Pela segunda oportunidade que pediu aos franceses, o presidente ofereceu algo em troca: mais cem euros no salário mínimo, pagamento de bónus e horas extraordinárias livres de impostos e o fim da taxa sobre o gasóleo, a qual era suposto ajudar o país a chegar mais perto das metas ambientais estabelecidas no Acordo de Paris mas que apenas serviu para que o etiquetassem de “elitista desligado das necessidades reais das pessoas”. “O próprio Macron teve de se inteirar daquilo que eram os movimentos sindicais e a história da luta social no seu país porque não é a realidade dele, da sua vida até aqui. E mesmo depois de ter cedido aos ‘coletes amarelos’, continua sem ir ao centro dos problemas e as pessoas já não confiam nele. É o presidente menos popular da História recente de França”, diz ao Expresso o ex-secretário-geral da UGT João Proença. Um pouco antes, no mesmo documentário, vê-se Macron reunido com Daniel Cohn-Bendit, a grande figura do Maio de 68. Em mais um momento de perplexidade, Macron ouve Cohn-Bendit a explicar a necessidade de redução da idade da reforma e a defender as 35 horas semanais de trabalho. Toma notas, como para não se esquecer. “Os sindicatos perderam muita força. Os coletes amarelos são pessoas que nunca se manifestaram, que chegaram a um ponto limite e que decidiram entrar neste movimento. Há um medo que existe, que este protesto, este sentimento de raiva, não seja de todo enquadrado em qualquer estrutura”, explica ao Expresso Vítor Pereira, historiador social, professor universitário em França e descendente de portugueses. “Grande parte das primeiras medidas do Macron foi de apoio aos mais ricos e as pessoas não entenderam”, acrescenta. E há uma explicação para esse mal-entendido. “Quando 10,6 milhões de franceses decidiram inicialmente dar os seus votos a Le Pen mas mesmo assim optaram por Macron na segunda volta, estavam à espera que ele entendesse que era preciso ter atenção às coisas que ela defendia.” Isto pode parecer paradoxal, porque as ideias de extrema-direita de Le Pen perderam nas urnas, mas muita gente, principalmente das zonas rurais e ex-industriais onde a queda no nível de vida mais se notou, pode não ter votado na candidata pelas suas posições no combate ao extremismo islâmico ou à imigração ilegal e sim porque ela passou boa parte da sua campanha em zonas que a globalização esqueceu. reuters A ideia de que as pessoas só se manifestam quando os sindicatos convocam greves ou grandes concentrações parece uma coisa do passado, mesmo em países como França, durante décadas dona de um tecido sindical temerário com o qual os trabalhadores por essa Europa fora podiam apenas sonhar. Mas hoje os protestos são cada vez mais espontâneos, muitos convocados por um cidadão descontente que encontra na internet, em milhares de pessoas, um desespero paralelo ao seu. O maior protesto contra o Brexit começou na internet, não partiu nem dos trabalhistas nem dos liberais-democratas nem de qualquer organização sindical britânica, apesar de as maiores preocupações com a proteção dos trabalhadores num cenário de não-acordo terem sido manifestadas pelos diretores dessas estruturas. “Em França, a tradição da luta laboral não está tão ligada aos sindicatos quanto aqui. Existe em profissões específicas mas é uma revolta mais popular e por vezes também violenta. Os sindicatos foram muito fortes mas hoje a sindicalização é das mais baixas da Europa”, explica João Proença. Proença admite que “os sindicatos não estão a passar pelo melhor momento na Europa” e isso preocupa-o, porque “antes de mais o sindicalismo é solidariedade”, é “uma força comum pelos direitos de um grande grupo de pessoas, um movimento enquadrador”, enquanto os movimentos sociais espontâneos são “menos preocupados com a globalidade”. Além disso, “podem deixar-se influenciar por grupos radicais e não têm de responder perante a lei pelos danos causados, tal como têm de fazer os sindicatos quando lançam uma greve”. Isto não retira mérito aos protestos que surgem através da internet, por exemplo, desligados das clássicas estruturas sindicais: “Podem e devem existir e têm os seus méritos”. reuters O CASO PORTUGUÊS Em 2012 foi a última vez que um governo português cedeu à pressão da rua. O Governo era o da PàF (Portugal à Frente) de Pedro Passos Coelho, que, amarrado às ordens da ‘troika’, decidiu que os trabalhadores portugueses, dos sectores público e privado, teriam de começar a pagar 18% dos seus salários à Segurança Social em vez de 11%. As empresas pagariam 18% em vez dos 23,75% que até ali pagavam. A contestação à Taxa Social Única (TSU) foi de tal forma que, em cerca de duas semanas, o Governo reverteu o curso. Tal como nestes protestos dos coletes amarelos, aquele foi um protesto transversal e não afeto a uma profissão específica, o molde atualmente mais comum. Aliás, Portugal está a passar uma fase em que há vários grupos envolvidos em lutas sindicais com o Governo. Pedro Mota Soares era precisamente o ministro da Solidariedade e da Segurança Social nesse Executivo e, na altura, foi dos poucos a defender a medida. “Ajuda à sustentabilidade da Segurança Social e todos sabemos como é importante ter esta almofada social que permite as compensações aos desempregados e pensionistas”, disse o governante numa reunião com alguns membros do CDS. Ao Expresso, porém, garante agora que a medida não só foi alvo de contestação nas ruas como “suscitou dúvidas em todos os ministros”, o que, na sua opinião, prova que “o Governo na altura soube ouvir as pessoas”. Defende ainda hoje que “a medida seria, de facto, um aumento das receitas para a Segurança Social”, mas também que o Governo teve de “analisar e entender o alcance total” daquilo que se estava a impor. Mesmo assim, a coligação entre o PSD e o CDS “não poderia ter cedido tanto como Macron cedeu agora”, porque “o resgate financeiro a Portugal torna as situações dos dois países por altura dos protestos totalmente diferentes”. “França não está nem esteve sob um programa de assistência económica, a tentar conter com todo o esforço a subida da dívida, com espaço de manobra limitado”, sustenta Mota Soares. O ex-governante não diz se Macron fez bem ou mal em apresentar medidas sociais para acalmar os coletes amarelos, mas partilha a opinião de outros analistas que consideram que, em França, “há algum tempo que não se prestava atenção ao sofrimento das pessoas”. E aqui sim, vê paralelismos com a situação portuguesa - não com a do tempo em que governou mas com o momento que vivemos agora. “É preciso entender que os povos atingem muitas vezes os seus limites. Por exemplo, os serviços públicos não estão a funcionar bem, há manifestações à frente do cais dos barcos para o Barreiro, a linha de metro tem atrasos e os hospitais não conseguem realizar as cirurgias todas. Quando se diz que se acabou com a austeridade e depois há isto, é natural que as pessoas se sintam enganadas”. O 15 DE SETEMBRO NÃO FOI ASSIM TÃO ESPONTÂNEO Portugal, 15 de setembro de 2012: o dia em que portugueses que nunca se tinham manifestado o fizeram. Manifestação histórica levou o Governo de Passos Coelho a recuar nas mudanças da TSU tiago miranda Mariana Avelãs foi uma das pessoas que assinou a convocatória para essa manifestação que já se tornou histórica no imaginário comum da “Geração à Rasca”. Mas nesse dia não saíram à rua apenas os jovens que tiveram de começar a procurar emprego nos primeiros anos do resgate financeiro. Foi a proposta de aumento da Taxa Social Única que juntou as raivas todas e, por isso, todas as idades e “credos” políticos. Ao Expresso, a tradutora de Inglês diz que, ao longo da vida, deve ter organizado “centenas de manifestações” e aquela de que toda a gente se lembra “foi produto de um verão inteiro de reuniões e feita com pessoas que estavam ligadas a grupos de intervenção social, a partidos, a estruturas identificáveis”. Proença alinha também por esta análise: “Esse protesto não foi desligado dos sindicatos. Houve, aliás, uma ameaça de greve geral que deu origem a uma explosão de descontentamento social à qual se juntou um grande número de movimentos que nasceram nas redes sociais. Mas todos estavam identificados ou eram identificáveis”. O que mudou, diz Avelãs, foi o “formato de convocatória”, feito de forma mais direta através das redes sociais. “Estávamos no meio de uma onda enorme de austeridade e claramente as pessoas não se estavam a mobilizar para irem para a rua. Porquê? Não fazia sentido.” tiago miranda Em relação à situação em França, Mariana Avelãs refere que essa desorganização lhe mete “medo”, nomeadamente pela “permeabilidade à extrema-direita, que se apodera da raiva das pessoas que vão às manifestações”. Mas não é só da violência e do extremismo que temos de ter medo. Na sua opinião, “quando um movimento social se orgulha da sua desorganização, abdica de ter ferramentas para intervir no rescaldo político do protesto”. Também Miguel Morgado passou por esses tempos conturbados, na altura enquanto conselheiro político de Pedro Passos Coelho. Diz ao Expresso que falar da TSU seria “quebrar uma lealdade e um sigilo necessários”, mas partilhou a sua opinião sobre a decisão do presidente de França: “Não me pareceu nada bem o que ele fez”, aponta o agora deputado. Para Morgado, Macron teve “a sorte” de assistir ao desmoronamento do centro-esquerda e do centro-direita - “Fillon espatifou-se”, considera, numa referência ao representante da direita tradicional francesa, François Fillon, que teve de combater durante toda a campanha sérias acusações de corrupção. Para Miguel Morgado, que já tinha dito ao Expresso não afastar a possibilidade de se candidatar à liderança dos sociais-democratas, Macron tem uma estratégia política que é “perigosa” e que “não ajuda ao pluralismo”. Isto porque “Macron criou uma bipolarização artificial entre os supostos ‘pró-globalização’, ‘pró-abertura, ‘pró-Europa’ e, do outro lado, os radicais e os populistas e reduziu a sociedade a uma coisa binominal”. O preço a pagar “é terrível”: “Se artificialmente nos colocam uma opção que é ou esta pessoa ou muito pior, claro que vamos escolher o tipo moderado, mas as pessoas sentem-se sempre cansadas de todas as soluções governativas, é pendular, acontece sempre e agora a opção é a Le Pen porque foi criado um consenso insustentável e tecnocrata”. Macron está “politicamente morto”, refere o deputado, porque “falhou na frente interna e na frente europeia”, restando-lhe agora - “e apenas” - a “ideia peregrina da criação de um exército europeu”. Na única vez em que Miguel Morgado mencionou ao Expresso a manifestação da TSU, o maior recuo do Governo de Passos, fê-lo para dizer que “estas crises não são todas iguais” e que, na altura, “havia uma ideia de que o próprio ajustamento não ia resultar, as pessoas tinham chegado a um ponto em que não acreditavam que as coisas iam funcionar”. Macron, por outro lado, “digo eu porventura exagerando um pouco, considerou que era a estabilidade do país e mesmo das instituições que estaria em causa”. Facebook Twitter Email Whatsapp Mais Google+ Linkedin Pinterest Link:

Internacional O que é que aprendemos com Macron e por que motivo nos lembramos da TSU? 15.12.2018 às 18h00 Facebook Twitter Email Whatsapp Mais Google+ Linkedin Pinterest Link: EPA Durante semanas não falou e quando falou foi para pedir desculpa, prometer ouvir e acabar com o imposto sobre o combustível que levou violentamente os franceses à rua. Macron cedeu. Em Portugal, a manifestação que faz cair a Taxa Social Única é vista com a maior prova da “força da rua” desde o 25 de Abril. Em que convergem os dois movimentos e quais os perigos dos protestos espontâneos? Dois homens próximos das negociações da TSU falam ao Expresso. A ativista que trouxe aquela gente toda à rua em 2012 também Ana França texto Jornalista Uma das últimas cenas do documentário “Emmanuel Macron: Nos Bastidores da Vitória”, de Yann L'Hénoret, é passado na cidade que o viu crescer, Amiens. Faltam poucos dias para as eleições. É entre ele e Marine Le Pen. Os trabalhadores da Whirlpool estão em greve e Macron é recebido pela intersindical. Um homem sentado à sua frente, com roupa de trabalho, robusto e assertivo, pergunta-lhe porque é que não os foi visitar. É um pergunta simples que deixa Macron entre o surpreendido e o comovido, com olhos muito abertos a olhar para quem lhe coloca esta pergunta tão cândida. Rabisca qualquer coisa no seu bloco e continua a olhar para o homem, de barba cerrada, que dispara mais perguntas e repete a mais importante: - O senhor vai remover a lei que obriga as empresas a justificar os despedimentos económicos? Porque não se encontrou com os trabalhadores? Não digo hoje mas há um mês, dois meses? Se puder encontre-se com eles amanhã, acho que seria importante, o senhor pode ser presidente da República em breve. Vá cumprimentá-los, se puder, se puder. Enquanto Macron se encontrava com os representantes dos trabalhadores, Le Pen entrara pelo parque de estacionamento da mesma fábrica, reunindo-se diretamente com quem se manifestava. Macron apercebe-se do que se passou e zanga-se com a sua equipa por dar prioridade ao protocolo. “Não pode parecer que me ando a esconder, pessoal, por favor!” O ódio a Macron e ao resto da classe política francesa parece ser a única coisa que une os coletes amarelos: não estão associados a um sindicato, não vêm de um único grupo profissional ou social, não querem entregar ao governo um caderno de encargos comum. Encontrar um interlocutor foi por isso uma das dificuldades que o primeiro-ministro de França, Édouard Phillippe, encontrou quando se tentou reunir com este grupo amorfo de manifestantes que durante quatro semanas espalhou o caos no país. Uma “comitiva” moderada, ainda assim, aceitou ser recebida por ele. E recebeu ameaças de morte por isso. “Eu sinto a vossa ira. Deem-me uma segunda oportunidade.” Foi assim que Emmanuel Macron, presidente com a popularidade amolgada pelos protestos, respondeu a quem lhe pedia mais atenção aos problemas da classe média. Mas estas palavras, para muitos, chegaram tarde e, antes de chegarem, o silêncio do Eliseu foi lido com arrogância de Macron. epa Pela segunda oportunidade que pediu aos franceses, o presidente ofereceu algo em troca: mais cem euros no salário mínimo, pagamento de bónus e horas extraordinárias livres de impostos e o fim da taxa sobre o gasóleo, a qual era suposto ajudar o país a chegar mais perto das metas ambientais estabelecidas no Acordo de Paris mas que apenas serviu para que o etiquetassem de “elitista desligado das necessidades reais das pessoas”. “O próprio Macron teve de se inteirar daquilo que eram os movimentos sindicais e a história da luta social no seu país porque não é a realidade dele, da sua vida até aqui. E mesmo depois de ter cedido aos ‘coletes amarelos’, continua sem ir ao centro dos problemas e as pessoas já não confiam nele. É o presidente menos popular da História recente de França”, diz ao Expresso o ex-secretário-geral da UGT João Proença. Um pouco antes, no mesmo documentário, vê-se Macron reunido com Daniel Cohn-Bendit, a grande figura do Maio de 68. Em mais um momento de perplexidade, Macron ouve Cohn-Bendit a explicar a necessidade de redução da idade da reforma e a defender as 35 horas semanais de trabalho. Toma notas, como para não se esquecer. “Os sindicatos perderam muita força. Os coletes amarelos são pessoas que nunca se manifestaram, que chegaram a um ponto limite e que decidiram entrar neste movimento. Há um medo que existe, que este protesto, este sentimento de raiva, não seja de todo enquadrado em qualquer estrutura”, explica ao Expresso Vítor Pereira, historiador social, professor universitário em França e descendente de portugueses. “Grande parte das primeiras medidas do Macron foi de apoio aos mais ricos e as pessoas não entenderam”, acrescenta. E há uma explicação para esse mal-entendido. “Quando 10,6 milhões de franceses decidiram inicialmente dar os seus votos a Le Pen mas mesmo assim optaram por Macron na segunda volta, estavam à espera que ele entendesse que era preciso ter atenção às coisas que ela defendia.” Isto pode parecer paradoxal, porque as ideias de extrema-direita de Le Pen perderam nas urnas, mas muita gente, principalmente das zonas rurais e ex-industriais onde a queda no nível de vida mais se notou, pode não ter votado na candidata pelas suas posições no combate ao extremismo islâmico ou à imigração ilegal e sim porque ela passou boa parte da sua campanha em zonas que a globalização esqueceu. reuters A ideia de que as pessoas só se manifestam quando os sindicatos convocam greves ou grandes concentrações parece uma coisa do passado, mesmo em países como França, durante décadas dona de um tecido sindical temerário com o qual os trabalhadores por essa Europa fora podiam apenas sonhar. Mas hoje os protestos são cada vez mais espontâneos, muitos convocados por um cidadão descontente que encontra na internet, em milhares de pessoas, um desespero paralelo ao seu. O maior protesto contra o Brexit começou na internet, não partiu nem dos trabalhistas nem dos liberais-democratas nem de qualquer organização sindical britânica, apesar de as maiores preocupações com a proteção dos trabalhadores num cenário de não-acordo terem sido manifestadas pelos diretores dessas estruturas. “Em França, a tradição da luta laboral não está tão ligada aos sindicatos quanto aqui. Existe em profissões específicas mas é uma revolta mais popular e por vezes também violenta. Os sindicatos foram muito fortes mas hoje a sindicalização é das mais baixas da Europa”, explica João Proença. Proença admite que “os sindicatos não estão a passar pelo melhor momento na Europa” e isso preocupa-o, porque “antes de mais o sindicalismo é solidariedade”, é “uma força comum pelos direitos de um grande grupo de pessoas, um movimento enquadrador”, enquanto os movimentos sociais espontâneos são “menos preocupados com a globalidade”. Além disso, “podem deixar-se influenciar por grupos radicais e não têm de responder perante a lei pelos danos causados, tal como têm de fazer os sindicatos quando lançam uma greve”. Isto não retira mérito aos protestos que surgem através da internet, por exemplo, desligados das clássicas estruturas sindicais: “Podem e devem existir e têm os seus méritos”. reuters O CASO PORTUGUÊS Em 2012 foi a última vez que um governo português cedeu à pressão da rua. O Governo era o da PàF (Portugal à Frente) de Pedro Passos Coelho, que, amarrado às ordens da ‘troika’, decidiu que os trabalhadores portugueses, dos sectores público e privado, teriam de começar a pagar 18% dos seus salários à Segurança Social em vez de 11%. As empresas pagariam 18% em vez dos 23,75% que até ali pagavam. A contestação à Taxa Social Única (TSU) foi de tal forma que, em cerca de duas semanas, o Governo reverteu o curso. Tal como nestes protestos dos coletes amarelos, aquele foi um protesto transversal e não afeto a uma profissão específica, o molde atualmente mais comum. Aliás, Portugal está a passar uma fase em que há vários grupos envolvidos em lutas sindicais com o Governo. Pedro Mota Soares era precisamente o ministro da Solidariedade e da Segurança Social nesse Executivo e, na altura, foi dos poucos a defender a medida. “Ajuda à sustentabilidade da Segurança Social e todos sabemos como é importante ter esta almofada social que permite as compensações aos desempregados e pensionistas”, disse o governante numa reunião com alguns membros do CDS. Ao Expresso, porém, garante agora que a medida não só foi alvo de contestação nas ruas como “suscitou dúvidas em todos os ministros”, o que, na sua opinião, prova que “o Governo na altura soube ouvir as pessoas”. Defende ainda hoje que “a medida seria, de facto, um aumento das receitas para a Segurança Social”, mas também que o Governo teve de “analisar e entender o alcance total” daquilo que se estava a impor. Mesmo assim, a coligação entre o PSD e o CDS “não poderia ter cedido tanto como Macron cedeu agora”, porque “o resgate financeiro a Portugal torna as situações dos dois países por altura dos protestos totalmente diferentes”. “França não está nem esteve sob um programa de assistência económica, a tentar conter com todo o esforço a subida da dívida, com espaço de manobra limitado”, sustenta Mota Soares. O ex-governante não diz se Macron fez bem ou mal em apresentar medidas sociais para acalmar os coletes amarelos, mas partilha a opinião de outros analistas que consideram que, em França, “há algum tempo que não se prestava atenção ao sofrimento das pessoas”. E aqui sim, vê paralelismos com a situação portuguesa - não com a do tempo em que governou mas com o momento que vivemos agora. “É preciso entender que os povos atingem muitas vezes os seus limites. Por exemplo, os serviços públicos não estão a funcionar bem, há manifestações à frente do cais dos barcos para o Barreiro, a linha de metro tem atrasos e os hospitais não conseguem realizar as cirurgias todas. Quando se diz que se acabou com a austeridade e depois há isto, é natural que as pessoas se sintam enganadas”. O 15 DE SETEMBRO NÃO FOI ASSIM TÃO ESPONTÂNEO Portugal, 15 de setembro de 2012: o dia em que portugueses que nunca se tinham manifestado o fizeram. Manifestação histórica levou o Governo de Passos Coelho a recuar nas mudanças da TSU tiago miranda Mariana Avelãs foi uma das pessoas que assinou a convocatória para essa manifestação que já se tornou histórica no imaginário comum da “Geração à Rasca”. Mas nesse dia não saíram à rua apenas os jovens que tiveram de começar a procurar emprego nos primeiros anos do resgate financeiro. Foi a proposta de aumento da Taxa Social Única que juntou as raivas todas e, por isso, todas as idades e “credos” políticos. Ao Expresso, a tradutora de Inglês diz que, ao longo da vida, deve ter organizado “centenas de manifestações” e aquela de que toda a gente se lembra “foi produto de um verão inteiro de reuniões e feita com pessoas que estavam ligadas a grupos de intervenção social, a partidos, a estruturas identificáveis”. Proença alinha também por esta análise: “Esse protesto não foi desligado dos sindicatos. Houve, aliás, uma ameaça de greve geral que deu origem a uma explosão de descontentamento social à qual se juntou um grande número de movimentos que nasceram nas redes sociais. Mas todos estavam identificados ou eram identificáveis”. O que mudou, diz Avelãs, foi o “formato de convocatória”, feito de forma mais direta através das redes sociais. “Estávamos no meio de uma onda enorme de austeridade e claramente as pessoas não se estavam a mobilizar para irem para a rua. Porquê? Não fazia sentido.” tiago miranda Em relação à situação em França, Mariana Avelãs refere que essa desorganização lhe mete “medo”, nomeadamente pela “permeabilidade à extrema-direita, que se apodera da raiva das pessoas que vão às manifestações”. Mas não é só da violência e do extremismo que temos de ter medo. Na sua opinião, “quando um movimento social se orgulha da sua desorganização, abdica de ter ferramentas para intervir no rescaldo político do protesto”. Também Miguel Morgado passou por esses tempos conturbados, na altura enquanto conselheiro político de Pedro Passos Coelho. Diz ao Expresso que falar da TSU seria “quebrar uma lealdade e um sigilo necessários”, mas partilhou a sua opinião sobre a decisão do presidente de França: “Não me pareceu nada bem o que ele fez”, aponta o agora deputado. Para Morgado, Macron teve “a sorte” de assistir ao desmoronamento do centro-esquerda e do centro-direita - “Fillon espatifou-se”, considera, numa referência ao representante da direita tradicional francesa, François Fillon, que teve de combater durante toda a campanha sérias acusações de corrupção. Para Miguel Morgado, que já tinha dito ao Expresso não afastar a possibilidade de se candidatar à liderança dos sociais-democratas, Macron tem uma estratégia política que é “perigosa” e que “não ajuda ao pluralismo”. Isto porque “Macron criou uma bipolarização artificial entre os supostos ‘pró-globalização’, ‘pró-abertura, ‘pró-Europa’ e, do outro lado, os radicais e os populistas e reduziu a sociedade a uma coisa binominal”. O preço a pagar “é terrível”: “Se artificialmente nos colocam uma opção que é ou esta pessoa ou muito pior, claro que vamos escolher o tipo moderado, mas as pessoas sentem-se sempre cansadas de todas as soluções governativas, é pendular, acontece sempre e agora a opção é a Le Pen porque foi criado um consenso insustentável e tecnocrata”. Macron está “politicamente morto”, refere o deputado, porque “falhou na frente interna e na frente europeia”, restando-lhe agora - “e apenas” - a “ideia peregrina da criação de um exército europeu”. Na única vez em que Miguel Morgado mencionou ao Expresso a manifestação da TSU, o maior recuo do Governo de Passos, fê-lo para dizer que “estas crises não são todas iguais” e que, na altura, “havia uma ideia de que o próprio ajustamento não ia resultar, as pessoas tinham chegado a um ponto em que não acreditavam que as coisas iam funcionar”. Macron, por outro lado, “digo eu porventura exagerando um pouco, considerou que era a estabilidade do país e mesmo das instituições que estaria em causa”. Facebook Twitter Email Whatsapp Mais Google+ Linkedin Pinterest Link:

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