Ainda a geringonça não era nascida e já os políticos falavam dela

09-06-2018
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Ainda este fim de semana, no Congresso do PS, a chamada geringonça - o termo, cunhado por Vasco Pulido Valente, que se tornou consensual para referir a atual solução de Governo - deu mostras das tensões que pautam as suas relações. Assim que Costa acabou de falar, tomou a palavra o comunista Carlos Gonçalves, membro do comité central do partido. Não poupou o PS a críticas: se é “justo” reconhecer que houve “avanços” para as condições de vida dos portugueses nos últimos anos, eles “devem-se à luta dos trabalhadores e à intervenção do PCP”. E foi mais longe: “Se dependesse do PS, nunca teríamos tido o que aconteceu de positivo nestes dois anos e meio”. Do lado do BE, pela voz da eurodeputada Marisa Matias, um aviso: “Há que notar que muitas daquelas conquistas recentes foram capitalizadas pelo PS como se fossem medidas do PS”.

É esta a premissa do livro “Ziguezagues na Política”, da autoria do jornalista Pedro Prostes da Fonseca, que chegará às livrarias esta sexta-feira. Embora a obra analise as táticas e declarações aparentemente contraditórias dos políticos “desde a revolução de abril”, dividindo-se em doze partes, que mostram os avanços e recuos de políticos como Cunhal, Sá Carneiro ou Marcelo, escolhemos o capítulo XI - “Os solavancos até à geringonça” - para ajudar a contar a história de uma aliança inédita.

É uma história feita de paixões e de arrufos, como qualquer namoro. De declarações de amor e de aparente rutura - sem chegar a sê-lo, porque nisto dos namoros o fim não tem de ser definitivo. Podíamos estar a falar de uma qualquer relação amorosa, mas falamos antes da solução de Governo que, com o apoio parlamentar do PCP e do BE, com mais ou menos harmonia, se mantém desde a assinatura dos acordos à esquerda, em 2015. E que já sobreviveu a uma boa dose de ziguezagues políticos.

“A política nada tem de inocente e é imprópria para ingénuos.” A premissa é do novo livro, “Ziguezagues na Política”, de Pedro Prostes na Fonseca, que explica como os políticos que nos lideram desde o 25 de Abril, de Cunhal a Marcelo, foram ao longo dos anos mudando de ideias - e de aliados. Escolhemos o capítulo que conta os solavancos que levaram até à geringonça para ajudar a contar a história de uma parceria inédita

Não esteve nem perto de ser a única ocasião em que os partidos da esquerda criticaram o PS, acusando Costa de aproveitar as bandeiras de PCP e BE para angariar votos. Mas, como “Ziguezagues na Política” recorda, a história das críticas, avanços e recuos na geringonça começava bem antes - antes até da formação da própria solução, com pistas sobre o que viria a ser (ou avisos que acabaram por não se cumprir).

Uma história turbulenta

Quem diria, nos tempos em que o Bloco de Esquerda dava os primeiros passos, que bloquistas e comunistas ainda viriam a encontrar-se para uma solução comum em que apoiassem... o PS? Seria difícil de prever, atendendo às declarações que o livro revisita agora, recuando até à década de 1990. Em 1999, o então dirigente do Bloco, Francisco Louçã, estava convicto de que, na prática política, “o PS não é de esquerda”. E comparava PSD e PS “àqueles dois velhos dos Marretas”: “Estão sempre em desacordo, zangam-se muito, mas no fundamental fazem a mesma coisa”.

No mesmo ano, Louçã não tinha palavras mais meigas para o PCP - palavras que poderiam fazer parte de um qualquer debate do Orçamento do Estado da atual legislatura, em que PCP e BE se acusam de capitalizarem com as medidas-bandeira um do outro: “Há uma arrogância sem limites de alguns dirigentes do PCP quando pretendem cobrar direitos de autor sobre coisas que não são deles”. Ainda no mesmo ano, Luís Fazenda não tinha dúvidas: o PS era o principal adversário do BE - e o PCP era acusado de “dar sempre a mão para posições construtivas com o governo do PS”.

As picardias entre PCP e BE não esmoreciam. Em 2001, Jerónimo de Sousa, que comparava o novo partido a uma “moda”, criticava “o copianço das iniciativas” supostamente feito pelo Bloco. E ia mais longe. “Quero deixar claro que a preocupação do PCP não é o Bloco de Esquerda, apesar de notarmos um sentido de concorrência em relação ao PCP e à própria CDU. Há, naturalmente, aquele ódio de estimação”. (Embora “Ziguezagues na Política” trate de mudanças de posição, também se pode constatar que certas críticas e declarações poderiam ser feitas agora: em 2002, Louçã já se queixava da disponibilidade de Ferro Rodrigues, então líder do PS, para um acordo com défice zero - este fim de semana, no Congresso, o BE queixava-se da “obsessão” com as metas do défice).

Sobre convergências e soluções de Governo, também já opinavam muito antes de se avistar geringonça no horizonte. Costa dizia em 2002 que “as soluções de Governo devem ser credíveis, devem ter bases programáticas”, acrescentando não conhecer o programa do BE, sem o qual seria difícil chegar a uma “alternativa”. Louçã acrescentava, em 2003: “Toda a convergência artificial é desastrosa eleitoralmente, como o passado comprova. Só pode haver convergência política se existirem escolhas comuns nalgumas batalhas”.

O pragmatismo de Costa - e o caminho até à geringonça

Saltemos no tempo. Como recorda Pedro Prostes da Fonseca, já perto do início oficial da geringonça continuava a haver declarações dos responsáveis políticos sobre essa hipótese, agora com as eleições de 2015 à vista. Mas não pareciam otimistas - e deixam avisos importantes para o futuro. Em novembro de 2014, à “Visão”, Jerónimo de Sousa falava de um PS que acabava de passar por uma convulsão interna: António Costa substituía António José Seguro como secretário-geral. “Houve no PS um processo de mudança de caras. Já quanto à política, tenho dúvidas, tendo em conta o pouco que António Costa já anunciou”. Para se chegar a um acordo parlamentar, frisava, “teria antes de mais de haver uma rutura com esta política que tem vindo a ser realizada há 38 anos”.

No mesmo ano, ao “Diário Económico”, era Mariana Mortágua quem falava ainda mais concretamente do que unia e separava PS e Bloco de Esquerda. Dizia não ter “nada para ver” em termos de sinais de Costa para acordos pós-eleitorais, como acabaria por acontecer, “a não ser um pisca para a esquerda e um pisca para a direita, sem nunca assumir posições claras”. “O PS tem pessoas mais à esquerda que falam mais à esquerda e depois tem outras mais à direita que falam mais à direita, e tem António Costa que dá razão a umas ou outras consoante lhe dá mais jeito”. E opinava especificamente sobre o futuro primeiro-ministro: “António Costa é um homem muito pragmático, vai falar para onde achar que tem mais interesse em falar e que lhe dá uma vitória mais confortável nas eleições, ou uma maioria mais confortável, ou seja o que for. Portanto, é muito difícil porque percebemos que aquilo que António Costa faz é tática permanente”.

Aproximava-se a data das eleições - mas não se notava uma posição mais flexível dos futuros parceiros de Governo de Costa. João Oliveira, líder parlamentar do PCP, dizia em fevereiro de 2015 que a “clareza” das posições do PCP ia “ contrastando claramente com a ambiguidade em que o PS vai tentando esconder os seus compromissos(...) António Costa vai sendo apanhado nos bastidores”.

Catarina Martins ia mais longe e em setembro chegava mesmo a considerar que o programa socialista era “provavelmente o mais à direita de sempre”. Isto logo após Costa ter falado sobre o facto de nunca ter antes havido acordos de governação à esquerda: “Tenho a certeza de que os eleitores têm consciência disso [de nunca ter havido acordos à esquerda] e que isso contribuirá para haver uma maioria absoluta do PS”.

O desfecho é conhecido: não só não houve maioria absoluta como o PS nem sequer foi o partido mais votado nessas eleições (ficou atrás do PSD), vendo-se obrigado a repensar a sua posição. A história da geringonça começaria a escrever-se na noite das eleições, com o BE a abrir o jogo: “Se, como tudo indica, a coligação de direita não tiver maioria, fique bem claro que não será pelo BE que conseguirá formar governo”. Na mesma noite, o PCP garantia: “Com este quadro, o PS tem condições para formar governo”. O resto - ziguezagues e malabarismos incluídos - é história...

Ainda este fim de semana, no Congresso do PS, a chamada geringonça - o termo, cunhado por Vasco Pulido Valente, que se tornou consensual para referir a atual solução de Governo - deu mostras das tensões que pautam as suas relações. Assim que Costa acabou de falar, tomou a palavra o comunista Carlos Gonçalves, membro do comité central do partido. Não poupou o PS a críticas: se é “justo” reconhecer que houve “avanços” para as condições de vida dos portugueses nos últimos anos, eles “devem-se à luta dos trabalhadores e à intervenção do PCP”. E foi mais longe: “Se dependesse do PS, nunca teríamos tido o que aconteceu de positivo nestes dois anos e meio”. Do lado do BE, pela voz da eurodeputada Marisa Matias, um aviso: “Há que notar que muitas daquelas conquistas recentes foram capitalizadas pelo PS como se fossem medidas do PS”.

É esta a premissa do livro “Ziguezagues na Política”, da autoria do jornalista Pedro Prostes da Fonseca, que chegará às livrarias esta sexta-feira. Embora a obra analise as táticas e declarações aparentemente contraditórias dos políticos “desde a revolução de abril”, dividindo-se em doze partes, que mostram os avanços e recuos de políticos como Cunhal, Sá Carneiro ou Marcelo, escolhemos o capítulo XI - “Os solavancos até à geringonça” - para ajudar a contar a história de uma aliança inédita.

É uma história feita de paixões e de arrufos, como qualquer namoro. De declarações de amor e de aparente rutura - sem chegar a sê-lo, porque nisto dos namoros o fim não tem de ser definitivo. Podíamos estar a falar de uma qualquer relação amorosa, mas falamos antes da solução de Governo que, com o apoio parlamentar do PCP e do BE, com mais ou menos harmonia, se mantém desde a assinatura dos acordos à esquerda, em 2015. E que já sobreviveu a uma boa dose de ziguezagues políticos.

“A política nada tem de inocente e é imprópria para ingénuos.” A premissa é do novo livro, “Ziguezagues na Política”, de Pedro Prostes na Fonseca, que explica como os políticos que nos lideram desde o 25 de Abril, de Cunhal a Marcelo, foram ao longo dos anos mudando de ideias - e de aliados. Escolhemos o capítulo que conta os solavancos que levaram até à geringonça para ajudar a contar a história de uma parceria inédita

Não esteve nem perto de ser a única ocasião em que os partidos da esquerda criticaram o PS, acusando Costa de aproveitar as bandeiras de PCP e BE para angariar votos. Mas, como “Ziguezagues na Política” recorda, a história das críticas, avanços e recuos na geringonça começava bem antes - antes até da formação da própria solução, com pistas sobre o que viria a ser (ou avisos que acabaram por não se cumprir).

Uma história turbulenta

Quem diria, nos tempos em que o Bloco de Esquerda dava os primeiros passos, que bloquistas e comunistas ainda viriam a encontrar-se para uma solução comum em que apoiassem... o PS? Seria difícil de prever, atendendo às declarações que o livro revisita agora, recuando até à década de 1990. Em 1999, o então dirigente do Bloco, Francisco Louçã, estava convicto de que, na prática política, “o PS não é de esquerda”. E comparava PSD e PS “àqueles dois velhos dos Marretas”: “Estão sempre em desacordo, zangam-se muito, mas no fundamental fazem a mesma coisa”.

No mesmo ano, Louçã não tinha palavras mais meigas para o PCP - palavras que poderiam fazer parte de um qualquer debate do Orçamento do Estado da atual legislatura, em que PCP e BE se acusam de capitalizarem com as medidas-bandeira um do outro: “Há uma arrogância sem limites de alguns dirigentes do PCP quando pretendem cobrar direitos de autor sobre coisas que não são deles”. Ainda no mesmo ano, Luís Fazenda não tinha dúvidas: o PS era o principal adversário do BE - e o PCP era acusado de “dar sempre a mão para posições construtivas com o governo do PS”.

As picardias entre PCP e BE não esmoreciam. Em 2001, Jerónimo de Sousa, que comparava o novo partido a uma “moda”, criticava “o copianço das iniciativas” supostamente feito pelo Bloco. E ia mais longe. “Quero deixar claro que a preocupação do PCP não é o Bloco de Esquerda, apesar de notarmos um sentido de concorrência em relação ao PCP e à própria CDU. Há, naturalmente, aquele ódio de estimação”. (Embora “Ziguezagues na Política” trate de mudanças de posição, também se pode constatar que certas críticas e declarações poderiam ser feitas agora: em 2002, Louçã já se queixava da disponibilidade de Ferro Rodrigues, então líder do PS, para um acordo com défice zero - este fim de semana, no Congresso, o BE queixava-se da “obsessão” com as metas do défice).

Sobre convergências e soluções de Governo, também já opinavam muito antes de se avistar geringonça no horizonte. Costa dizia em 2002 que “as soluções de Governo devem ser credíveis, devem ter bases programáticas”, acrescentando não conhecer o programa do BE, sem o qual seria difícil chegar a uma “alternativa”. Louçã acrescentava, em 2003: “Toda a convergência artificial é desastrosa eleitoralmente, como o passado comprova. Só pode haver convergência política se existirem escolhas comuns nalgumas batalhas”.

O pragmatismo de Costa - e o caminho até à geringonça

Saltemos no tempo. Como recorda Pedro Prostes da Fonseca, já perto do início oficial da geringonça continuava a haver declarações dos responsáveis políticos sobre essa hipótese, agora com as eleições de 2015 à vista. Mas não pareciam otimistas - e deixam avisos importantes para o futuro. Em novembro de 2014, à “Visão”, Jerónimo de Sousa falava de um PS que acabava de passar por uma convulsão interna: António Costa substituía António José Seguro como secretário-geral. “Houve no PS um processo de mudança de caras. Já quanto à política, tenho dúvidas, tendo em conta o pouco que António Costa já anunciou”. Para se chegar a um acordo parlamentar, frisava, “teria antes de mais de haver uma rutura com esta política que tem vindo a ser realizada há 38 anos”.

No mesmo ano, ao “Diário Económico”, era Mariana Mortágua quem falava ainda mais concretamente do que unia e separava PS e Bloco de Esquerda. Dizia não ter “nada para ver” em termos de sinais de Costa para acordos pós-eleitorais, como acabaria por acontecer, “a não ser um pisca para a esquerda e um pisca para a direita, sem nunca assumir posições claras”. “O PS tem pessoas mais à esquerda que falam mais à esquerda e depois tem outras mais à direita que falam mais à direita, e tem António Costa que dá razão a umas ou outras consoante lhe dá mais jeito”. E opinava especificamente sobre o futuro primeiro-ministro: “António Costa é um homem muito pragmático, vai falar para onde achar que tem mais interesse em falar e que lhe dá uma vitória mais confortável nas eleições, ou uma maioria mais confortável, ou seja o que for. Portanto, é muito difícil porque percebemos que aquilo que António Costa faz é tática permanente”.

Aproximava-se a data das eleições - mas não se notava uma posição mais flexível dos futuros parceiros de Governo de Costa. João Oliveira, líder parlamentar do PCP, dizia em fevereiro de 2015 que a “clareza” das posições do PCP ia “ contrastando claramente com a ambiguidade em que o PS vai tentando esconder os seus compromissos(...) António Costa vai sendo apanhado nos bastidores”.

Catarina Martins ia mais longe e em setembro chegava mesmo a considerar que o programa socialista era “provavelmente o mais à direita de sempre”. Isto logo após Costa ter falado sobre o facto de nunca ter antes havido acordos de governação à esquerda: “Tenho a certeza de que os eleitores têm consciência disso [de nunca ter havido acordos à esquerda] e que isso contribuirá para haver uma maioria absoluta do PS”.

O desfecho é conhecido: não só não houve maioria absoluta como o PS nem sequer foi o partido mais votado nessas eleições (ficou atrás do PSD), vendo-se obrigado a repensar a sua posição. A história da geringonça começaria a escrever-se na noite das eleições, com o BE a abrir o jogo: “Se, como tudo indica, a coligação de direita não tiver maioria, fique bem claro que não será pelo BE que conseguirá formar governo”. Na mesma noite, o PCP garantia: “Com este quadro, o PS tem condições para formar governo”. O resto - ziguezagues e malabarismos incluídos - é história...

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