Francisco Louçã: “Sou incansável”

21-12-2018
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Qual é a sua primeira memória política?

Lembro-me dos jornais anunciarem a invasão da Checoslováquia em 1968, tinha 11 ou 12 anos. Ou dos acontecimentos de Maio de 68, que eram execrados pelos jornais da ditadura. Toda a minha vida é marcada pelos acontecimentos políticos, porque o meu avô materno estava deportado em Moçambique.

O seu avô materno influenciou esse percurso político?

Esse avô estava distante. Entre os 2 e os 5 anos estive em Moçambique, porque o meu pai era militar e teve uma missão lá. Mas disso tenho memórias muito difusas. Vivíamos uma guerra colonial e uma ditadura. A vida dos jovens era totalmente política, havia conflitos na escola. A certa altura, fui suspenso com alguns colegas por causa de uma greve que organizámos no Liceu Padre António Vieira.

Porquê uma greve?

Por causa de um professor de História que foi substituído a meio do ano letivo. Queriam que a turma fosse parte de uma experiência de estágio pedagógico. Nós protestámos, fizemos uma greve e fomos suspensos por 14 dias.

A turma inteira?

Não, só alguns. Se fossemos suspensos por 15 dias seriamos automaticamente expulsos. Mas eu era um dos melhores alunos e os professores resistiram. Foi a prova de que, mesmo numa ditadura, nem todos os reitores conseguem o que querem.

Dentro da família essa vida política era debatida?

Não havia uma conversa muito aberta ou permanente sobre a dissidência. Porque os pais percebem que as crianças ficam mais expostas e são mais vulneráveis. A regra de silenciamento é parte da pressão das ditaduras, mas o ambiente de revolta era bastante nítido. Lembro-me que me cruzei com um membro do Governo, que me perguntou o que queria estudar. Escolhia-se o curso no 5º ano do liceu (atual 9º), por volta dos 14 anos. Eu disse que queria fazer Económicas. E a resposta foi: “Isso é horrível, porque é um antro de comunistas.” Já contei isto várias vezes.

Mas contou como tendo sido Marcello Caetano e como tendo ido falar com ele.

Foi numa festa de uma pessoa conhecida da minha mãe. Marcello Caetano foi professor dela e como havia muito poucas mulheres na faculdade de Direito, ele conhecia-as. Tenho o cartão que ele enviou à minha mãe, de parabéns, quando nasci. Ele cumprimentou-a e daí essa conversa. Era a prova extraordinária de como a ditadura era frágil. Se a maior faculdade de Economia do país era reconhecida como um antro de oposição revolucionária, é porque a ditadura tinha pés de barro e reconhecia-o. Foi uma maravilhosa revelação para mim.

No liceu foi considerado o melhor aluno do país?

Recebi um prémio para os melhores alunos do país em cada liceu.

luís barra

Que não foi receber?

Recebi, mas não o fui levantar. A cerimónia era presidida pelo Américo Thomaz e não quis submeter-me a isso. Mais tarde, o reitor entregou o prémio aos meus pais: 1500 escudos, era muito dinheiro.

O seu pai era oficial. Aceitava esse lado revolucionário?

Os meus pais sabiam que tanto eu como o meu irmão mais velho, António, tínhamos uma intervenção política ativa. Provavelmente, não sabiam até que ponto.

Tentaram travar-vos?

Tinham prudência, mas nunca tentaram travar-nos. Quando fui preso na capela do Rato, o meu pai foi logo ao Governo Civil. Depois, quando fomos para Caxias, os meus pais pagaram uma caução de seis mil e tal escudos.

Era muito...

Era mais que um ordenado em 1973.

Como é que acontece essa prisão?

A capela do Rato foi ocupada por um grupo de cristãos no dia 30 de dezembro. O Papa Paulo VI tinha declarado 1 de janeiro Dia da Paz e, num país a braços com uma guerra colonial que durava há 12 anos, era uma data marcante. O encontro tornou-se uma explosão de liberdade. Durante muitas horas o cardeal resistiu à vontade da polícia em intervir, mas finalmente aceitou-a. Na noite da passagem de ano, pelas oito da noite, a polícia interveio. Prendeu os que lá estavam, cerca de 150, levou-os para a esquadra do Rato e depois, só alguns, fomos para o Governo Civil. Dezasseis foram para Caxias.

Era o mais novo?

Sim, tinha acabado de fazer 16 anos. Saí ao fim de alguns dias, outros ficaram muito tempo e foram maltratados, torturados, coisa que não aconteceu comigo. Bom, ter um miúdo preso, para a ditadura era mais humilhante do que outra coisa...

O que se sente aos 16 anos preso?

Não se está preparado. Primeiro, porque a PIDE tinha uma fama que a precedia. Depois, porque Caxias era o símbolo dessa pressão. Depois porque se está isolado. Não estava preparado, mesmo sabendo que o risco que corria era relativamente pequeno.

Essa experiência reforçou a militância política?

Sim, confirmou-me o que é uma ditadura, mas mostrou também a sua fragilidade, o absurdo.

É nessa altura que integra a LCI.

Sim. Havia um movimento relativamente forte de opositores antifascistas no meu liceu...

Como foi possível continuar a ser bom aluno?

Trabalhei e sempre gostei de estudar.

Era marrão?

Essa pergunta é muito ideológica. Tinha boas notas e estudava muito. E vivia imensamente a vida, fazia trinta por uma linha. O tempo dá para tudo. Sempre percebi que se pode trabalhar muito e viver muito a vida.

Porque tem facilidade em aprender?

Quando se trabalha, torna-se mais fácil aprender. Mas isso é esforço.

Conciliar isso tudo e ter uma média de 18 no liceu...

A média foi subindo ao longo dos anos. Foi de 15 ou 16, a princípio, e depois mais.

O seu lado revolucionário não o penalizou no liceu?

Não. Tive professores fascistas, tenho ainda livros que professores fascistas me entregaram sobre o deslumbramento do império...

Entregavam-lhe a si porquê? Por ser bom aluno ou para o converter?

Possivelmente por ser bom aluno. Tínhamos discussões nas aulas e isso motivava-os de alguma forma. Mas tive também professores extraordinários, como o padre Max, que depois foi assassinado em Vila Real. Ou o padre Armindo, de quem ainda sou muito amigo...

Foi ele que o levou para servente de pedreiro?

Levou-nos a vários passeios. Ele achava que as aulas de Religião e Moral serviam para falarmos sobre a vida, não era catecismo. Levou-nos à casa dos seus pais, no centro do país, e a Trás-os-Montes. Aprendemos a acampar, a fazer a nossa comida, a organizar a nossa vida. E levou-nos a ajudar a construir uma casa social de uns padres holandeses que, mais tarde, seriam expulsos de Moçambique por denunciarem o massacre de Wiriamu. Carregar baldes de cimento é uma coisa bem pesada...

A sua entrada na esquerda tem uma marca católica?

Não há tradição católica na minha família, nunca fomos batizados. Mas se a religião não teve nenhum papel na minha vida, a igreja católica teve.

Saltemos para 1974, onde estava no 25 de Abril?

A pequena organização revolucionária a que pertencia tinha alguma informação sobre o golpe e sabíamos que ocorreria naquela noite. Fui para uma casa na Rua da Beneficência, para preparar a resposta que o partido iria dar. Logo de manhã, tínhamos cartazes para colar a dizer “Fim à guerra colonial”, “Nem mais um soldado para as colónias”. Depois, vim para a rua. Estive no Carmo, no Rossio, no Chiado. Fiquei quase sem voz de ter falado sem megafone de uma das estátuas do Rossio.

Como geriu a possibilidade de ter o seu pai, oficial, do lado do inimigo?

O meu pai nunca esteve do lado do inimigo. Dirigia uma fragata que estava no Tejo e recebeu ordem para preparar fogo sobre o Terreiro do Paço. Recusou. Foi uma decisão de uma coragem que eu lhe fico a dever eternamente. Tenho muito orgulho na escolha que ele fez.

Saber onde o seu pai podia estar contou no dia da revolução?

Só tinha razões para ter confiança. E, sobretudo, há momentos em que o que fazemos tem de contar.

Foram anos fervilhantes até a criação do PSR...

Os primeiros foram. Depois, Portugal mudou muito. Com as intervenções do FMI, a reorganização económica e a estabilização política e, logo a seguir, as vitórias de Cavaco, a esquerda entrou numa profunda depressão e olhava para o país como um país distante. O PSR tentou ser o oposto do cavaquismo. Onde o cavaquismo era a frieza e subordinação, a esquerda tinha de ser calor e inventar cultura e palavras novas. O PSR começou a ajudar a esquerda a renascer e isso mais tarde conduziu ao Bloco de Esquerda.

Entretanto, fez a faculdade a dois tempos.

Entrei na faculdade ia fazer 17 anos, em 1973. Na altura, houve uma assembleia geral em que o diretor apareceu para falar. Os estudantes rejeitaram e ele puxou de uma pistola e fugiu. Não disparou, talvez porque um ano antes Ribeiro Santos tinha ali sido assassinado. A polícia recebeu ordem para fechar a faculdade e eu nunca tive aulas. Veio o 25 de Abril, a faculdade reabriu, mas eu estava ocupado. Anos mais tarde voltei, pela mão de Pereira de Moura.

Ainda é o recordista da melhor média, com 17,5 valores?

Creio que não. Os critérios variam muito. Não faz sentido fazer comparações ao longo do tempo. No seu ano, Vítor Constâncio foi o melhor aluno. Mário Centeno terá sido, seguramente, o melhor aluno do seu. Eu fui no meu ano.

Dizem que é o melhor aluno de sempre...

Isso é exagero e não é verdade.

A relação com o professor Pereira de Moura surge como? É verdade que ele levou a sua tese no caixão?

Pereira de Moura, no princípio da sua vida, era próximo do regime, mas foi-se tornando-se muito crítico. A sua prisão na capela do Rato desencadeou uma atenção mediática internacional, com vários prémios Nobel a apelarem à sua libertação. Ele insistiu para que eu voltasse. Eu voltei. Foi meu professor no primeiro ano e quando fiz o doutoramento ofereci-lhe uma cópia. Antes de morrer, deixou a indicação de que queria ser enterrado com três livros: Eça, Júlio Verne e a minha tese. Suponho que queria ter um livro de Economia, mas nunca me explicou. Evidentemente que é muito comovente.

Que nota ele lhe deu?

Não me lembro. Ele dava aulas no primeiro ano e tinha uma teoria que eu segui sempre que pude: os professores que gostavam mesmo de ensinar deviam dar aulas ao primeiro ano para ensinar a aprender a gostar de estudar. Acho que ele tem inteira razão.

Contactou com vários políticos e ministros das Finanças. Cá e lá fora...

São coisas diferentes. Sou primo de um homem que foi ministro das Finanças, Vítor Gaspar. Não é uma relação escolhida, é uma relação familiar e com muito gosto. Fui colega ou muito próximo de outros...

Centeno, Constâncio... Podemos listar.

Não conheci Constâncio na faculdade. É um homem muito inteligente, certamente com uma visão da Economia muito diferente da minha. No plano internacional, cruzei-me com Varoufakis, com Sakalokos ou com o Stiglitz, mas ele já era prémio Nobel. O Tsipras conheci na vida política. Como o Pablo Iglesias.

Em 1991 esteve quase a chegar a deputado. O que sentiu nessa altura?

Foi um pouco imprevisto. Foi uma campanha forte, com um resultado eleitoral muito próximo da eleição. Com uma particularidade: o boicote eleitoral de Dona Maria, no concelho de Sintra, manteve em suspenso os resultados. Ou seria eu eleito, ou um deputado do PSD, quando Cavaco Silva já tinha a maioria absoluta garantida. Não fui eleito, mas António Costa, que, na altura, era o jovem presidente da FAUL, decidiu ir à sede do PSR. Convocou a imprensa para dizer que era importante que Dona Maria decidisse a meu favor. É uma decisão com alguma coragem e com uma generosidade que eu fixei.

Foi uma iniciativa de António Costa?

Não lhe pedi nada e ficou registado a surpresa de o dirigente regional de Lisboa do PS ter este atrevimento.

Perdeu para o PSD, mas ganhou António Costa...

A política é uma construção. Acredito muito na relação das pessoas, na confiança, na palavra dada.

Passou ainda algum tempo até o BE conseguir surgir?

Passou uma década. Até que em 1998 houve o primeiro referendo sobre o aborto, que foi perdido à unha — 16/15. A esquerda conduziu displicentemente esta batalha política, não soube coordenar-se. Foi um balde de água fria e a derrota exigiu uma reflexão dura. A seguir, surge a luta pela independência de Timor, que cria um novo contexto de mobilização. Isso levou Luís Fazenda a sugerir a formação do Bloco de Esquerda, num encontro com o Fernando Rosas e depois comigo. A seguir envolvemos o Miguel Portas e concebemos um novo sujeito político, com uma nova agenda que superava as divergências ideológicas. Uma esquerda que passasse da ideia do protesto à ação bem realizada.

A gestão de sensibilidades foi fácil?

Não foi fácil, mas havia uma enorme vontade de criar uma direção política comum. É verdade que a confiança da direção era muito mais sólida que o processo de aproximação das bases. Cometemos o erro de não levar esse processo mais longe desde o princípio. A UDP e o PSR e a Política XXI deviam ter-se integrado plenamente.

Não foi o seu protagonismo que tornou necessária a permanência dessas tendências?

Tivemos muita preocupação em mostrar que o Bloco era uma direção coletiva. O papel do Luís Fazenda, do Fernando Rosas, do Miguel Portas e o meu foi muito equilibrado. A proposta de um coordenador foi do Luís Fazenda. E o facto de ter sido eu a ser eleito não foi por si o obstáculo à unificação interna. Tratei todos os dirigentes regionais do Bloco da mesma maneira, nunca tive nenhuma política de fação.

O seu protagonismo não apagou outras figuras, como a de Luís Fazenda?

Eu fui coordenador e isso dava-me uma visibilidade política maior. Mas na direção as decisões eram tomadas com o Luís Fazenda, e muitas vezes por sugestão dele. Sempre foi indispensável.

Os media foram parte da construção do Bloco?

O Bloco é um partido moderno! Se souberem de algum partido que viva numa gruta, digam-me, porque quero levar-lhes uma caixa de bombons. Quando ouço pessoas dizer-me “eu percebo tudo o que a Catarina Martins diz”, acho que essa é uma extraordinária capacidade. Quando me dizem “eu percebo a Mariana Mortágua quando fala de assuntos de economia”, penso “parabéns à Mariana Mortágua”. É assim que se faz. Um partido tem de saber falar para as pessoas.

A decisão de ficarem de pé no Parlamento foi nessa lógica do impacto mediático?

Foi um gesto de pura indignação, nesse caso.

Não foi pensado?

Foi pensado na véspera. Quando fomos para o Parlamento não pensávamos que seríamos alvos de praxe parlamentar. O PS negociou com a direita e o PCP aceitou que não tínhamos direito a um lugar na primeira fila. Era um truque. Com o pequeno detalhe desagradável de ter sido negociado, com o Acácio Barreiros, um pequeno ajuste de contas tristíssimo. Não podíamos aceitar uma humilhação inaceitável.

E foi eficaz...

Tinha de ser! O presidente da Assembleia da República em funções, que era o Almeida Santos, ficou atrapalhadíssimo e depois recuaram.

Ficou com alguma mágoa com as saídas de Ana Drago, Joana Amaral Dias, Daniel Oliveira?

São processos diferentes. A Joana abandonou o Bloco e uns anos mais tarde certificou essa saída. Nós fizemos um grande esforço para a integrar, saí do Parlamento durante seis meses para ela poder ganhar expressão pública e aprender. Ela escolheu um caminho diferente que terminou depois nesta aventura do Agir e no resultado que teve. O caso do Daniel Oliveira e da Ana Drago é diferente, porque tinham o projeto de fazer um partido que superasse o Bloco. Há alguma mágoa nisso. Hoje, não tem importância nenhuma. Mas foi uma perda de energia e uma destruição de capacidade militante.

Podemos juntar Gil Garcia, Rui Tavares...

São questões muito diferentes.

Também são questões de ego?

Seria menorizar as pessoas reduzir esta a uma questão de egos. Haveria certamente a ideia de projetos políticos próprios.

O Bloco queria precisamente juntar projetos políticos...

Sim, mas há sempre pessoas que acham que têm uma missão transcendente e que se deve juntar à volta deles um novo cosmos.

Não é responsável por estas saídas? Há quem critique o seu excesso de autoritarismo...

Eu digo o que penso de uma forma vincada. Mas o debate político é assim. Todas essas saídas foram por deliberação própria. Não tenho nenhum machado de guerra, não rompi relações pessoais com nenhuma dessas pessoas, não tenho nenhuma amargura, nem tenho nenhum ajuste de contas a fazer com ninguém.

As saídas resultaram de ideias sobre a aproximação ao PS que veio a acontecer mais tarde?

São muito diferentes. A ideia do Bloco não é nunca de aceitar tornar-se o CDS do PS. Não olha para a política como se o PS tivesse de ser o centro de uma alternativa. A alternativa tem de ser construída à esquerda por um projeto que não resulte da doutrinação neoliberal que é o padrão da União Europeia, e que o PS incorporou. O que Catarina Martins fez no debate com António Costa não foi uma vénia. Foi um desafio político fortíssimo, que levou a que o PS fosse forçado pelas circunstâncias a abdicar do programa mais à direita que jamais tinha apresentado. Foi isso que o Bloco ganhou.

Esse acordo não seria possível no ambiente pré-troika?

Este acordo nunca foi possível com José Sócrates.

luís barra

É uma questão de personalidades?

Em política as personalidades contam. A capacidade inventiva, de se adaptar, de explicar, de corrigir conta.

E isso tem António Costa e não tinha José Sócrates?

José Sócrates tinha a maioria absoluta...

Os seus debates com José Sócrates no Parlamento também ficam para a História.

Havia uma tensão grande. É verdade que as personalidades contam. E a tensão agravou-se à medida que a tensão social se agravava em Portugal.

É verdade que chegava a perder dois quilos em cada debate?

Não era nos debates parlamentares. Na campanha eleitoral debati duas vezes com José Sócrates na televisão e, sim, aí cheguei a perder um quilo e meio.

Dá sempre um ar tão seguro. O que é difícil para si?

Eu gosto da gestão da televisão. Mas evidentemente são uma tensão e uma responsabilidade grandes.

O Governo Sócrates também lhe traz outro desafio: enfrentar Correia de Campos, seu cunhado e ministro da Saúde.

O meu cunhado foi ministro da Saúde durante um tempo do Governo Sócrates, mas o responsável pela política de saúde na bancada do Bloco era o João Semedo, que tinha o diálogo direto com o ministro. Isso poupava-me também ao incómodo de uma relação familiar.

Nunca cortou relações com o seu cunhado?

Não. E continuamos a encontrar-nos em todos os Natais, com simpatia. Mais tarde, quando o Vítor Gaspar foi ministro das Finanças, eu também não tinha responsabilidade direta sobre essa pasta.

Vítor Gaspar é seu primo direito, conheciam-se bem?

Sim, brincávamos e passávamos férias juntos em miúdos porque muitas vezes ele ia para casa dos meus pais no Algarve.

Ele telefonou-lhe a dizer que ia ser ministro?

Não. Ao longo da vida acabámos por nos cruzar muito pouco. Não nos encontrávamos durante anos, mas uns dias antes dele ser ministro encontrei-o no 80º aniversário de uma tia e falámos justamente sobre a formação do Governo. Até lhe disse que achava que Vítor Bento tinha feito muito bem em não ser ministro das Finanças. Depois foi o que foi.

O que leva de medalhas do Parlamento?

Não tenho medalhas nenhumas. Entre dois deputados e 19 acho que aprendemos imenso. E, sobretudo agora, com o trabalho parlamentar legislativo e um acompanhamento muito direto da governação. Na verdade, hoje, o BE prepara ministros. Mariana Mortágua há de ser ministra das Finanças.

E a Catarina Martins primeira-ministra?

Já veremos. Catarina Martins é a figura mais extraordinária dos últimos anos da política portuguesa.

Surpreendeu-o?

A mim não, porque sei da sua capacidade de trabalho e de aprendizagem. Não conheço ninguém na vida pública com essa mistura de talento, de carácter genuíno e de brilho. Surpreendeu muita gente e isso foi uma vantagem. Teve uma coragem enorme: foi a única dirigente de esquerda que na última campanha eleitoral aceitou debater com Passos Coelho, Paulo Portas e António Costa. Ousou e estava preparadíssima.

Ensinou-a bem? Tanto Catarina como Mariana são apostas suas.

Cada uma fez o seu caminho. Eu senti a capacidade da Catarina. Há personalidades brilhantes, que se destacam e que se afirmam por si. O mesmo com Mariana Mortágua. Escrevi dois livros de economia com ela porque era uma economista muito capaz e com muita vontade. Com certeza que queria que fosse conhecida. Mas não há nada que ela tenha conseguido na vida que tenha dependido de mim e não dela.

A chegada da Catarina Martins à inédita liderança bicéfala foi ideia sua...

Foi uma sugestão que eu apoiei. Não foi originalmente minha. Na altura, no Bloco, houve quem dissesse que eram duas pessoas imprestáveis.

Quem disse isso?

Alguém que já não está lá. Não tem relevância. A dificuldade era que a aposta num homem e numa mulher iria enfrentar vagas de marialvismo, dentro e fora do Bloco. Como enfrentou. Tal como a mulher mais nova iria ser sempre desvalorizada. A ideia de que era preciso começar um processo de renovação geracional era uma aposta dificílima e que foi conseguida muitíssimo bem.

Não está arrependido de ter sugerido a liderança bicéfala?

A solução teve o seu papel, terminou, foi substituída. Aprendemos.

Qual foi o clique de ‘chegou a minha hora, tenho de dar lugar a outros’?

Já estava há 13 anos no Parlamento, achei que o longo período da troika era um período de grande sofrimento e de grande pressão no sentido de transformação das esquerdas. Para o BE era o momento de fazer emergir pessoas que soubessem viver e vencer todo este processo.

Foi uma forma de dizer que estava arrependido de não ter ido à reunião com a troika?

O Bloco devia ter participado na reunião com a troika porque ninguém percebeu que o não tivesse feito. A CGTP fê-lo e foi mais inteligente do que nós. Nós olhámos erradamente para a sociedade portuguesa, pensando que haveria uma resistência à troika, quando as pessoas aceitaram o sofrimento, pedindo que ele fosse minorado.

O eleitorado percebeu isso? Não penalizou o Bloco?

Sim, mas um partido tem de ter valores que não são só os da perceção dos medos sociais em cada momento. Se a esquerda passa, por medo, a votar ao lado da direita então, com franqueza, não vale a pena que essa esquerda exista.

Nem que o preço seja perder metade da bancada...

Houve esse custo. A perceção social, ao contrário do que pensávamos, era de que a troika era inevitável.

Quando sai do Bloco, como preencheu a falta de adrenalina?

É difícil. Dei um pouco mais de aulas, pude voltar a participar em alguns congressos científicos, pude viajar, coisa que não fazia há muito tempo. Todos os fins de semana tinha atividade política, o que tem um preço físico grande. Foram muitos quilómetros de carro, muitas noites mal dormidas, muita má comida, muito stresse. A minha vida ficou melhor.

Não ficou um vazio?

Fica algum vazio.

O que é difícil?

Há alguma falta de adrenalina das grandes campanhas, dos grandes debates, de fazer parte das decisões. Mas ninguém deve estar demasiado tempo no Parlamento, porque cansa. Cheguei a estar 36 horas seguidas numa comissão parlamentar do Orçamento...

Ninguém o está a ver em casa a ver televisão e a tratar da neta...

Vejo pouco televisão, mas devo dizer que no momento em que a minha neta me pega na mão e me diz: “Chico vamos brincar para a sala”, eu tenho o dia ganho.

Ela chama-lhe Chico? Não quer ser tratado por avô?

Ela sabe que sou o avô, mas acha graça chamar-me Chico. A minha vida mudou nesse dia.

Percebe que ainda olham para si como um farol do Bloco?

Isso não tem nenhum sentido, são exageros jornalísticos. A direção do Bloco tem uma equipa muito forte e próxima da Catarina Martins: o Jorge Costa, a Mariana, o Pedro Filipe, a Marisa. E eu não tenho nenhum papel.

Não fala com eles?

Falo. Encontramo-nos de vez em quando, mas não tenho nenhum peso nas decisões do dia a dia. É verdade que faço parte de uma cultura de trabalho coletivo e reconheço que hoje esse espaço tem muito mais influência. Mas não tenho poder nenhum.

As grandes decisões do BE não são discutidas consigo?

Tive alguma participação na preparação de trabalhos orçamentais, no debate sobre a dívida, em questões financeiras ou orçamentais relativamente precisas. As questões estratégicas não passam por mim. Não tenho de ser e até acho normal não ser chamado a participar. Acho bem que a direção faça o seu caminho por si própria. É uma direção totalmente autónoma e capaz.

Mas esteve no arranque das conversas com o PS.

Eu ajudei. No sábado antes das eleições, falei com António Costa por uma questão estrita de amizade. Surgiu a ideia de conversarmos e intermediei o contacto com a Catarina, de quem ele não tinha o telefone. Combinou-se um encontro, totalmente informal, discutiu-se o que poderia acontecer. Sem nenhuma conclusão. Durante a tarde, fui sabendo de alguns contactos e fazendo outros. Mas quando a Catarina discursou, o tema que lança na discussão é inteiramente dela.

Reconhece que tem influência política dentro e fora do Bloco?

Tenho influência, não tenho poder.

Sente que a sua opinião conta?

Espero que a minha opinião conte. Mas espero que outras opiniões contem também. Se uma direção funcionar baseada apenas num farol ou numa opinião vai espalhar-se na primeira curva. Se o Bloco tomar opções com as quais eu não concorde, di-lo-ei. Já aconteceu. E acontecerá muitas vezes no futuro. A minha intervenção não é doutrinária, não é para convencer.

Não está a tentar ser Papa?

Não sou Papa, nem bispo. Quero refletir sobre as questões difíceis e ajudar a procurar caminhos. O nosso problema é a rotina. Portugal ao longo dos 16 anos de euro cresceu 0,2% em termos reais por ano. É uma rotina e é assustadora. Estamos num impasse total e é por isso que depende absolutamente da pressão exterior.

A sua reflexão sobre as questões difíceis é uma intervenção política.

Essa é a minha vida. É procurar as alavancas de Arquimedes, onde podemos apoiar a pouca força para fazer muita força.

Ser político faz parte da sua natureza? Não desapareceu com a saída do Bloco e do Parlamento?

Eu não me cansei. Sou incansável.

O que é que o puxa?

Por exemplo, os trabalhos académicos sobre a saída do euro ou sobre a restruturação da dívida, que têm incidência política. Acho que, no geral, o discurso da esquerda foi demasiado superficial, demasiado conjuntural e demasiado preso às alternativas. Jogou muito o jogo das cartas marcadas.

Quer ser um teórico da esquerda?

Quero contribuir para uma esquerda que tenha um discurso profundo de uma alternativa muito substancial, porque ela vai ser necessária.

Como ideólogo dessa esquerda?

Sabe que o termo ideólogo foi inventado pelo Napoleão? Para insultar os intelectuais.

OK, teórico?

Teórico também é exagerado. Quero ajudar a pensar e quero fazer parte dessa conversa que tenha um objetivo muito ambicioso de poder fazer a economia publica de Portugal.

Acha que essa conversa é concretizável?

Eu acho que União se vai desunir e percebo que o primeiro-ministro esteja sempre a ganhar tempo. Mas um Governo que reestruture a dívida e proteja Portugal da próxima recessão financeira só acontecerá no dia em que o BE tenha 20% ou 25% dos votos. Quando puder ser parte integrante de um Governo.

O episódio da Caixa não correu bem e o Governo parece não ter aprendido.

Foi lamentável. A CGD tem uma mistura de grandes êxitos conspurcados por uma gestão desastrosa. As negociações com a administração foram erradas, os salários foram errados. O homem tem uma pensão de 20 mil euros por mês, precisa de ganhar mais 30 ou 40 mil porquê?

Como avalia este primeiro ministro?

António Costa é um primeiro-ministro sólido, sabe o que faz, tem uma gestão política cuidadosa e tem, substancialmente, cumprido os seus compromissos. É verdade que há uma área muito importante que não faz parte desses compromissos, que é a da gestão financeira. Não gostaria que fosse o primeiro-ministro que permitiu que o sistema bancário passasse a ser 60% ou 70% dominado por capitais estrangeiros.

É o grande risco desta solução de Governo?

É um dos elementos mais difíceis na gestão.

Pode rebentar a ‘geringonça’?

Claro que é um risco. Tem de se trabalhar sobre os acordos, aprofundar os assuntos.

Este Governo tem condições de cumprir a legislatura?

Sim. Cumprindo o seu contrato, trabalhando sobre problemas novos, tendo imaginação para resolver dificuldades e esperando que os diques da Europa não se abram, porque o risco para a UE é de uma crise financeira.

E sobre o Presidente?

O Presidente surpreende toda a gente mas a mim não me surpreende nada. Na campanha eleitoral, alertei para que os adversários não tinham percebido Marcelo. Porque, sendo um homem de direita, faria campanha ao centro e se tornaria, como se tornou, o grande aliado de António Costa. Creio que ele leva, às vezes, ao nível do rocambolesco os seus diálogos com Passos Coelho e esse pingue-pongue.

O que lhe dá gozo...

... é sempre divertido, mas digamos que não é propriamente o topo da prioridade da agenda de um Presidente fazer estes pequenos puxões de orelhas ao líder do PSD.

Marcelo está a exagerar?

É o seu aspeto ativista a vir ao de cima. Ele é o anti-Cavaco. É o Presidente da descompressão contra a pressão, do alívio contra o aspeto soturno, da afabilidade contra a antipatia. Isso tem um enorme impacto popular. Tem um problema: ficar prisioneiro dele próprio. Sendo um Presidente de consensos e dos afetos nacionais, dificilmente pode tomar partido num conflito e ser o fabricante das alternativas. Costa percebe bem que o apoio que Marcelo lhe dá é também um caminho do qual o PR não pode sair.

Um dia vai ser Presidente da República deste país?

Eu sei o futuro da Mariana Mortágua, não vejo o meu.

Gostaria?

Não é um problema que me tenha colocado.

Já foi candidato...

Mas tinha alguma suspeita de que não ganharia nessa altura.

Não é um novo desafio?

Decisões desse tipo não se tomam cinco anos antes. Os presidentes mais simpáticos ou os mais antipáticos foram sempre reeleitos em Portugal.

Dez anos ainda é uma meta possível para si?

Eu não tomo decisões a dez anos.

Também não as afasta?

Não quero que vocês façam um título sobre isto...

Francisco Louçã é um dos autores do prefácio do livro "Estaline — a Corte do Czar Vermelho”, de Simon Sebag Montefiore, que o Expresso distribuirá, em seis volumes, a partir desta semana

Artigo publicado na edição do EXPRESSO de 7 de janeiro de 2017

Qual é a sua primeira memória política?

Lembro-me dos jornais anunciarem a invasão da Checoslováquia em 1968, tinha 11 ou 12 anos. Ou dos acontecimentos de Maio de 68, que eram execrados pelos jornais da ditadura. Toda a minha vida é marcada pelos acontecimentos políticos, porque o meu avô materno estava deportado em Moçambique.

O seu avô materno influenciou esse percurso político?

Esse avô estava distante. Entre os 2 e os 5 anos estive em Moçambique, porque o meu pai era militar e teve uma missão lá. Mas disso tenho memórias muito difusas. Vivíamos uma guerra colonial e uma ditadura. A vida dos jovens era totalmente política, havia conflitos na escola. A certa altura, fui suspenso com alguns colegas por causa de uma greve que organizámos no Liceu Padre António Vieira.

Porquê uma greve?

Por causa de um professor de História que foi substituído a meio do ano letivo. Queriam que a turma fosse parte de uma experiência de estágio pedagógico. Nós protestámos, fizemos uma greve e fomos suspensos por 14 dias.

A turma inteira?

Não, só alguns. Se fossemos suspensos por 15 dias seriamos automaticamente expulsos. Mas eu era um dos melhores alunos e os professores resistiram. Foi a prova de que, mesmo numa ditadura, nem todos os reitores conseguem o que querem.

Dentro da família essa vida política era debatida?

Não havia uma conversa muito aberta ou permanente sobre a dissidência. Porque os pais percebem que as crianças ficam mais expostas e são mais vulneráveis. A regra de silenciamento é parte da pressão das ditaduras, mas o ambiente de revolta era bastante nítido. Lembro-me que me cruzei com um membro do Governo, que me perguntou o que queria estudar. Escolhia-se o curso no 5º ano do liceu (atual 9º), por volta dos 14 anos. Eu disse que queria fazer Económicas. E a resposta foi: “Isso é horrível, porque é um antro de comunistas.” Já contei isto várias vezes.

Mas contou como tendo sido Marcello Caetano e como tendo ido falar com ele.

Foi numa festa de uma pessoa conhecida da minha mãe. Marcello Caetano foi professor dela e como havia muito poucas mulheres na faculdade de Direito, ele conhecia-as. Tenho o cartão que ele enviou à minha mãe, de parabéns, quando nasci. Ele cumprimentou-a e daí essa conversa. Era a prova extraordinária de como a ditadura era frágil. Se a maior faculdade de Economia do país era reconhecida como um antro de oposição revolucionária, é porque a ditadura tinha pés de barro e reconhecia-o. Foi uma maravilhosa revelação para mim.

No liceu foi considerado o melhor aluno do país?

Recebi um prémio para os melhores alunos do país em cada liceu.

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Que não foi receber?

Recebi, mas não o fui levantar. A cerimónia era presidida pelo Américo Thomaz e não quis submeter-me a isso. Mais tarde, o reitor entregou o prémio aos meus pais: 1500 escudos, era muito dinheiro.

O seu pai era oficial. Aceitava esse lado revolucionário?

Os meus pais sabiam que tanto eu como o meu irmão mais velho, António, tínhamos uma intervenção política ativa. Provavelmente, não sabiam até que ponto.

Tentaram travar-vos?

Tinham prudência, mas nunca tentaram travar-nos. Quando fui preso na capela do Rato, o meu pai foi logo ao Governo Civil. Depois, quando fomos para Caxias, os meus pais pagaram uma caução de seis mil e tal escudos.

Era muito...

Era mais que um ordenado em 1973.

Como é que acontece essa prisão?

A capela do Rato foi ocupada por um grupo de cristãos no dia 30 de dezembro. O Papa Paulo VI tinha declarado 1 de janeiro Dia da Paz e, num país a braços com uma guerra colonial que durava há 12 anos, era uma data marcante. O encontro tornou-se uma explosão de liberdade. Durante muitas horas o cardeal resistiu à vontade da polícia em intervir, mas finalmente aceitou-a. Na noite da passagem de ano, pelas oito da noite, a polícia interveio. Prendeu os que lá estavam, cerca de 150, levou-os para a esquadra do Rato e depois, só alguns, fomos para o Governo Civil. Dezasseis foram para Caxias.

Era o mais novo?

Sim, tinha acabado de fazer 16 anos. Saí ao fim de alguns dias, outros ficaram muito tempo e foram maltratados, torturados, coisa que não aconteceu comigo. Bom, ter um miúdo preso, para a ditadura era mais humilhante do que outra coisa...

O que se sente aos 16 anos preso?

Não se está preparado. Primeiro, porque a PIDE tinha uma fama que a precedia. Depois, porque Caxias era o símbolo dessa pressão. Depois porque se está isolado. Não estava preparado, mesmo sabendo que o risco que corria era relativamente pequeno.

Essa experiência reforçou a militância política?

Sim, confirmou-me o que é uma ditadura, mas mostrou também a sua fragilidade, o absurdo.

É nessa altura que integra a LCI.

Sim. Havia um movimento relativamente forte de opositores antifascistas no meu liceu...

Como foi possível continuar a ser bom aluno?

Trabalhei e sempre gostei de estudar.

Era marrão?

Essa pergunta é muito ideológica. Tinha boas notas e estudava muito. E vivia imensamente a vida, fazia trinta por uma linha. O tempo dá para tudo. Sempre percebi que se pode trabalhar muito e viver muito a vida.

Porque tem facilidade em aprender?

Quando se trabalha, torna-se mais fácil aprender. Mas isso é esforço.

Conciliar isso tudo e ter uma média de 18 no liceu...

A média foi subindo ao longo dos anos. Foi de 15 ou 16, a princípio, e depois mais.

O seu lado revolucionário não o penalizou no liceu?

Não. Tive professores fascistas, tenho ainda livros que professores fascistas me entregaram sobre o deslumbramento do império...

Entregavam-lhe a si porquê? Por ser bom aluno ou para o converter?

Possivelmente por ser bom aluno. Tínhamos discussões nas aulas e isso motivava-os de alguma forma. Mas tive também professores extraordinários, como o padre Max, que depois foi assassinado em Vila Real. Ou o padre Armindo, de quem ainda sou muito amigo...

Foi ele que o levou para servente de pedreiro?

Levou-nos a vários passeios. Ele achava que as aulas de Religião e Moral serviam para falarmos sobre a vida, não era catecismo. Levou-nos à casa dos seus pais, no centro do país, e a Trás-os-Montes. Aprendemos a acampar, a fazer a nossa comida, a organizar a nossa vida. E levou-nos a ajudar a construir uma casa social de uns padres holandeses que, mais tarde, seriam expulsos de Moçambique por denunciarem o massacre de Wiriamu. Carregar baldes de cimento é uma coisa bem pesada...

A sua entrada na esquerda tem uma marca católica?

Não há tradição católica na minha família, nunca fomos batizados. Mas se a religião não teve nenhum papel na minha vida, a igreja católica teve.

Saltemos para 1974, onde estava no 25 de Abril?

A pequena organização revolucionária a que pertencia tinha alguma informação sobre o golpe e sabíamos que ocorreria naquela noite. Fui para uma casa na Rua da Beneficência, para preparar a resposta que o partido iria dar. Logo de manhã, tínhamos cartazes para colar a dizer “Fim à guerra colonial”, “Nem mais um soldado para as colónias”. Depois, vim para a rua. Estive no Carmo, no Rossio, no Chiado. Fiquei quase sem voz de ter falado sem megafone de uma das estátuas do Rossio.

Como geriu a possibilidade de ter o seu pai, oficial, do lado do inimigo?

O meu pai nunca esteve do lado do inimigo. Dirigia uma fragata que estava no Tejo e recebeu ordem para preparar fogo sobre o Terreiro do Paço. Recusou. Foi uma decisão de uma coragem que eu lhe fico a dever eternamente. Tenho muito orgulho na escolha que ele fez.

Saber onde o seu pai podia estar contou no dia da revolução?

Só tinha razões para ter confiança. E, sobretudo, há momentos em que o que fazemos tem de contar.

Foram anos fervilhantes até a criação do PSR...

Os primeiros foram. Depois, Portugal mudou muito. Com as intervenções do FMI, a reorganização económica e a estabilização política e, logo a seguir, as vitórias de Cavaco, a esquerda entrou numa profunda depressão e olhava para o país como um país distante. O PSR tentou ser o oposto do cavaquismo. Onde o cavaquismo era a frieza e subordinação, a esquerda tinha de ser calor e inventar cultura e palavras novas. O PSR começou a ajudar a esquerda a renascer e isso mais tarde conduziu ao Bloco de Esquerda.

Entretanto, fez a faculdade a dois tempos.

Entrei na faculdade ia fazer 17 anos, em 1973. Na altura, houve uma assembleia geral em que o diretor apareceu para falar. Os estudantes rejeitaram e ele puxou de uma pistola e fugiu. Não disparou, talvez porque um ano antes Ribeiro Santos tinha ali sido assassinado. A polícia recebeu ordem para fechar a faculdade e eu nunca tive aulas. Veio o 25 de Abril, a faculdade reabriu, mas eu estava ocupado. Anos mais tarde voltei, pela mão de Pereira de Moura.

Ainda é o recordista da melhor média, com 17,5 valores?

Creio que não. Os critérios variam muito. Não faz sentido fazer comparações ao longo do tempo. No seu ano, Vítor Constâncio foi o melhor aluno. Mário Centeno terá sido, seguramente, o melhor aluno do seu. Eu fui no meu ano.

Dizem que é o melhor aluno de sempre...

Isso é exagero e não é verdade.

A relação com o professor Pereira de Moura surge como? É verdade que ele levou a sua tese no caixão?

Pereira de Moura, no princípio da sua vida, era próximo do regime, mas foi-se tornando-se muito crítico. A sua prisão na capela do Rato desencadeou uma atenção mediática internacional, com vários prémios Nobel a apelarem à sua libertação. Ele insistiu para que eu voltasse. Eu voltei. Foi meu professor no primeiro ano e quando fiz o doutoramento ofereci-lhe uma cópia. Antes de morrer, deixou a indicação de que queria ser enterrado com três livros: Eça, Júlio Verne e a minha tese. Suponho que queria ter um livro de Economia, mas nunca me explicou. Evidentemente que é muito comovente.

Que nota ele lhe deu?

Não me lembro. Ele dava aulas no primeiro ano e tinha uma teoria que eu segui sempre que pude: os professores que gostavam mesmo de ensinar deviam dar aulas ao primeiro ano para ensinar a aprender a gostar de estudar. Acho que ele tem inteira razão.

Contactou com vários políticos e ministros das Finanças. Cá e lá fora...

São coisas diferentes. Sou primo de um homem que foi ministro das Finanças, Vítor Gaspar. Não é uma relação escolhida, é uma relação familiar e com muito gosto. Fui colega ou muito próximo de outros...

Centeno, Constâncio... Podemos listar.

Não conheci Constâncio na faculdade. É um homem muito inteligente, certamente com uma visão da Economia muito diferente da minha. No plano internacional, cruzei-me com Varoufakis, com Sakalokos ou com o Stiglitz, mas ele já era prémio Nobel. O Tsipras conheci na vida política. Como o Pablo Iglesias.

Em 1991 esteve quase a chegar a deputado. O que sentiu nessa altura?

Foi um pouco imprevisto. Foi uma campanha forte, com um resultado eleitoral muito próximo da eleição. Com uma particularidade: o boicote eleitoral de Dona Maria, no concelho de Sintra, manteve em suspenso os resultados. Ou seria eu eleito, ou um deputado do PSD, quando Cavaco Silva já tinha a maioria absoluta garantida. Não fui eleito, mas António Costa, que, na altura, era o jovem presidente da FAUL, decidiu ir à sede do PSR. Convocou a imprensa para dizer que era importante que Dona Maria decidisse a meu favor. É uma decisão com alguma coragem e com uma generosidade que eu fixei.

Foi uma iniciativa de António Costa?

Não lhe pedi nada e ficou registado a surpresa de o dirigente regional de Lisboa do PS ter este atrevimento.

Perdeu para o PSD, mas ganhou António Costa...

A política é uma construção. Acredito muito na relação das pessoas, na confiança, na palavra dada.

Passou ainda algum tempo até o BE conseguir surgir?

Passou uma década. Até que em 1998 houve o primeiro referendo sobre o aborto, que foi perdido à unha — 16/15. A esquerda conduziu displicentemente esta batalha política, não soube coordenar-se. Foi um balde de água fria e a derrota exigiu uma reflexão dura. A seguir, surge a luta pela independência de Timor, que cria um novo contexto de mobilização. Isso levou Luís Fazenda a sugerir a formação do Bloco de Esquerda, num encontro com o Fernando Rosas e depois comigo. A seguir envolvemos o Miguel Portas e concebemos um novo sujeito político, com uma nova agenda que superava as divergências ideológicas. Uma esquerda que passasse da ideia do protesto à ação bem realizada.

A gestão de sensibilidades foi fácil?

Não foi fácil, mas havia uma enorme vontade de criar uma direção política comum. É verdade que a confiança da direção era muito mais sólida que o processo de aproximação das bases. Cometemos o erro de não levar esse processo mais longe desde o princípio. A UDP e o PSR e a Política XXI deviam ter-se integrado plenamente.

Não foi o seu protagonismo que tornou necessária a permanência dessas tendências?

Tivemos muita preocupação em mostrar que o Bloco era uma direção coletiva. O papel do Luís Fazenda, do Fernando Rosas, do Miguel Portas e o meu foi muito equilibrado. A proposta de um coordenador foi do Luís Fazenda. E o facto de ter sido eu a ser eleito não foi por si o obstáculo à unificação interna. Tratei todos os dirigentes regionais do Bloco da mesma maneira, nunca tive nenhuma política de fação.

O seu protagonismo não apagou outras figuras, como a de Luís Fazenda?

Eu fui coordenador e isso dava-me uma visibilidade política maior. Mas na direção as decisões eram tomadas com o Luís Fazenda, e muitas vezes por sugestão dele. Sempre foi indispensável.

Os media foram parte da construção do Bloco?

O Bloco é um partido moderno! Se souberem de algum partido que viva numa gruta, digam-me, porque quero levar-lhes uma caixa de bombons. Quando ouço pessoas dizer-me “eu percebo tudo o que a Catarina Martins diz”, acho que essa é uma extraordinária capacidade. Quando me dizem “eu percebo a Mariana Mortágua quando fala de assuntos de economia”, penso “parabéns à Mariana Mortágua”. É assim que se faz. Um partido tem de saber falar para as pessoas.

A decisão de ficarem de pé no Parlamento foi nessa lógica do impacto mediático?

Foi um gesto de pura indignação, nesse caso.

Não foi pensado?

Foi pensado na véspera. Quando fomos para o Parlamento não pensávamos que seríamos alvos de praxe parlamentar. O PS negociou com a direita e o PCP aceitou que não tínhamos direito a um lugar na primeira fila. Era um truque. Com o pequeno detalhe desagradável de ter sido negociado, com o Acácio Barreiros, um pequeno ajuste de contas tristíssimo. Não podíamos aceitar uma humilhação inaceitável.

E foi eficaz...

Tinha de ser! O presidente da Assembleia da República em funções, que era o Almeida Santos, ficou atrapalhadíssimo e depois recuaram.

Ficou com alguma mágoa com as saídas de Ana Drago, Joana Amaral Dias, Daniel Oliveira?

São processos diferentes. A Joana abandonou o Bloco e uns anos mais tarde certificou essa saída. Nós fizemos um grande esforço para a integrar, saí do Parlamento durante seis meses para ela poder ganhar expressão pública e aprender. Ela escolheu um caminho diferente que terminou depois nesta aventura do Agir e no resultado que teve. O caso do Daniel Oliveira e da Ana Drago é diferente, porque tinham o projeto de fazer um partido que superasse o Bloco. Há alguma mágoa nisso. Hoje, não tem importância nenhuma. Mas foi uma perda de energia e uma destruição de capacidade militante.

Podemos juntar Gil Garcia, Rui Tavares...

São questões muito diferentes.

Também são questões de ego?

Seria menorizar as pessoas reduzir esta a uma questão de egos. Haveria certamente a ideia de projetos políticos próprios.

O Bloco queria precisamente juntar projetos políticos...

Sim, mas há sempre pessoas que acham que têm uma missão transcendente e que se deve juntar à volta deles um novo cosmos.

Não é responsável por estas saídas? Há quem critique o seu excesso de autoritarismo...

Eu digo o que penso de uma forma vincada. Mas o debate político é assim. Todas essas saídas foram por deliberação própria. Não tenho nenhum machado de guerra, não rompi relações pessoais com nenhuma dessas pessoas, não tenho nenhuma amargura, nem tenho nenhum ajuste de contas a fazer com ninguém.

As saídas resultaram de ideias sobre a aproximação ao PS que veio a acontecer mais tarde?

São muito diferentes. A ideia do Bloco não é nunca de aceitar tornar-se o CDS do PS. Não olha para a política como se o PS tivesse de ser o centro de uma alternativa. A alternativa tem de ser construída à esquerda por um projeto que não resulte da doutrinação neoliberal que é o padrão da União Europeia, e que o PS incorporou. O que Catarina Martins fez no debate com António Costa não foi uma vénia. Foi um desafio político fortíssimo, que levou a que o PS fosse forçado pelas circunstâncias a abdicar do programa mais à direita que jamais tinha apresentado. Foi isso que o Bloco ganhou.

Esse acordo não seria possível no ambiente pré-troika?

Este acordo nunca foi possível com José Sócrates.

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É uma questão de personalidades?

Em política as personalidades contam. A capacidade inventiva, de se adaptar, de explicar, de corrigir conta.

E isso tem António Costa e não tinha José Sócrates?

José Sócrates tinha a maioria absoluta...

Os seus debates com José Sócrates no Parlamento também ficam para a História.

Havia uma tensão grande. É verdade que as personalidades contam. E a tensão agravou-se à medida que a tensão social se agravava em Portugal.

É verdade que chegava a perder dois quilos em cada debate?

Não era nos debates parlamentares. Na campanha eleitoral debati duas vezes com José Sócrates na televisão e, sim, aí cheguei a perder um quilo e meio.

Dá sempre um ar tão seguro. O que é difícil para si?

Eu gosto da gestão da televisão. Mas evidentemente são uma tensão e uma responsabilidade grandes.

O Governo Sócrates também lhe traz outro desafio: enfrentar Correia de Campos, seu cunhado e ministro da Saúde.

O meu cunhado foi ministro da Saúde durante um tempo do Governo Sócrates, mas o responsável pela política de saúde na bancada do Bloco era o João Semedo, que tinha o diálogo direto com o ministro. Isso poupava-me também ao incómodo de uma relação familiar.

Nunca cortou relações com o seu cunhado?

Não. E continuamos a encontrar-nos em todos os Natais, com simpatia. Mais tarde, quando o Vítor Gaspar foi ministro das Finanças, eu também não tinha responsabilidade direta sobre essa pasta.

Vítor Gaspar é seu primo direito, conheciam-se bem?

Sim, brincávamos e passávamos férias juntos em miúdos porque muitas vezes ele ia para casa dos meus pais no Algarve.

Ele telefonou-lhe a dizer que ia ser ministro?

Não. Ao longo da vida acabámos por nos cruzar muito pouco. Não nos encontrávamos durante anos, mas uns dias antes dele ser ministro encontrei-o no 80º aniversário de uma tia e falámos justamente sobre a formação do Governo. Até lhe disse que achava que Vítor Bento tinha feito muito bem em não ser ministro das Finanças. Depois foi o que foi.

O que leva de medalhas do Parlamento?

Não tenho medalhas nenhumas. Entre dois deputados e 19 acho que aprendemos imenso. E, sobretudo agora, com o trabalho parlamentar legislativo e um acompanhamento muito direto da governação. Na verdade, hoje, o BE prepara ministros. Mariana Mortágua há de ser ministra das Finanças.

E a Catarina Martins primeira-ministra?

Já veremos. Catarina Martins é a figura mais extraordinária dos últimos anos da política portuguesa.

Surpreendeu-o?

A mim não, porque sei da sua capacidade de trabalho e de aprendizagem. Não conheço ninguém na vida pública com essa mistura de talento, de carácter genuíno e de brilho. Surpreendeu muita gente e isso foi uma vantagem. Teve uma coragem enorme: foi a única dirigente de esquerda que na última campanha eleitoral aceitou debater com Passos Coelho, Paulo Portas e António Costa. Ousou e estava preparadíssima.

Ensinou-a bem? Tanto Catarina como Mariana são apostas suas.

Cada uma fez o seu caminho. Eu senti a capacidade da Catarina. Há personalidades brilhantes, que se destacam e que se afirmam por si. O mesmo com Mariana Mortágua. Escrevi dois livros de economia com ela porque era uma economista muito capaz e com muita vontade. Com certeza que queria que fosse conhecida. Mas não há nada que ela tenha conseguido na vida que tenha dependido de mim e não dela.

A chegada da Catarina Martins à inédita liderança bicéfala foi ideia sua...

Foi uma sugestão que eu apoiei. Não foi originalmente minha. Na altura, no Bloco, houve quem dissesse que eram duas pessoas imprestáveis.

Quem disse isso?

Alguém que já não está lá. Não tem relevância. A dificuldade era que a aposta num homem e numa mulher iria enfrentar vagas de marialvismo, dentro e fora do Bloco. Como enfrentou. Tal como a mulher mais nova iria ser sempre desvalorizada. A ideia de que era preciso começar um processo de renovação geracional era uma aposta dificílima e que foi conseguida muitíssimo bem.

Não está arrependido de ter sugerido a liderança bicéfala?

A solução teve o seu papel, terminou, foi substituída. Aprendemos.

Qual foi o clique de ‘chegou a minha hora, tenho de dar lugar a outros’?

Já estava há 13 anos no Parlamento, achei que o longo período da troika era um período de grande sofrimento e de grande pressão no sentido de transformação das esquerdas. Para o BE era o momento de fazer emergir pessoas que soubessem viver e vencer todo este processo.

Foi uma forma de dizer que estava arrependido de não ter ido à reunião com a troika?

O Bloco devia ter participado na reunião com a troika porque ninguém percebeu que o não tivesse feito. A CGTP fê-lo e foi mais inteligente do que nós. Nós olhámos erradamente para a sociedade portuguesa, pensando que haveria uma resistência à troika, quando as pessoas aceitaram o sofrimento, pedindo que ele fosse minorado.

O eleitorado percebeu isso? Não penalizou o Bloco?

Sim, mas um partido tem de ter valores que não são só os da perceção dos medos sociais em cada momento. Se a esquerda passa, por medo, a votar ao lado da direita então, com franqueza, não vale a pena que essa esquerda exista.

Nem que o preço seja perder metade da bancada...

Houve esse custo. A perceção social, ao contrário do que pensávamos, era de que a troika era inevitável.

Quando sai do Bloco, como preencheu a falta de adrenalina?

É difícil. Dei um pouco mais de aulas, pude voltar a participar em alguns congressos científicos, pude viajar, coisa que não fazia há muito tempo. Todos os fins de semana tinha atividade política, o que tem um preço físico grande. Foram muitos quilómetros de carro, muitas noites mal dormidas, muita má comida, muito stresse. A minha vida ficou melhor.

Não ficou um vazio?

Fica algum vazio.

O que é difícil?

Há alguma falta de adrenalina das grandes campanhas, dos grandes debates, de fazer parte das decisões. Mas ninguém deve estar demasiado tempo no Parlamento, porque cansa. Cheguei a estar 36 horas seguidas numa comissão parlamentar do Orçamento...

Ninguém o está a ver em casa a ver televisão e a tratar da neta...

Vejo pouco televisão, mas devo dizer que no momento em que a minha neta me pega na mão e me diz: “Chico vamos brincar para a sala”, eu tenho o dia ganho.

Ela chama-lhe Chico? Não quer ser tratado por avô?

Ela sabe que sou o avô, mas acha graça chamar-me Chico. A minha vida mudou nesse dia.

Percebe que ainda olham para si como um farol do Bloco?

Isso não tem nenhum sentido, são exageros jornalísticos. A direção do Bloco tem uma equipa muito forte e próxima da Catarina Martins: o Jorge Costa, a Mariana, o Pedro Filipe, a Marisa. E eu não tenho nenhum papel.

Não fala com eles?

Falo. Encontramo-nos de vez em quando, mas não tenho nenhum peso nas decisões do dia a dia. É verdade que faço parte de uma cultura de trabalho coletivo e reconheço que hoje esse espaço tem muito mais influência. Mas não tenho poder nenhum.

As grandes decisões do BE não são discutidas consigo?

Tive alguma participação na preparação de trabalhos orçamentais, no debate sobre a dívida, em questões financeiras ou orçamentais relativamente precisas. As questões estratégicas não passam por mim. Não tenho de ser e até acho normal não ser chamado a participar. Acho bem que a direção faça o seu caminho por si própria. É uma direção totalmente autónoma e capaz.

Mas esteve no arranque das conversas com o PS.

Eu ajudei. No sábado antes das eleições, falei com António Costa por uma questão estrita de amizade. Surgiu a ideia de conversarmos e intermediei o contacto com a Catarina, de quem ele não tinha o telefone. Combinou-se um encontro, totalmente informal, discutiu-se o que poderia acontecer. Sem nenhuma conclusão. Durante a tarde, fui sabendo de alguns contactos e fazendo outros. Mas quando a Catarina discursou, o tema que lança na discussão é inteiramente dela.

Reconhece que tem influência política dentro e fora do Bloco?

Tenho influência, não tenho poder.

Sente que a sua opinião conta?

Espero que a minha opinião conte. Mas espero que outras opiniões contem também. Se uma direção funcionar baseada apenas num farol ou numa opinião vai espalhar-se na primeira curva. Se o Bloco tomar opções com as quais eu não concorde, di-lo-ei. Já aconteceu. E acontecerá muitas vezes no futuro. A minha intervenção não é doutrinária, não é para convencer.

Não está a tentar ser Papa?

Não sou Papa, nem bispo. Quero refletir sobre as questões difíceis e ajudar a procurar caminhos. O nosso problema é a rotina. Portugal ao longo dos 16 anos de euro cresceu 0,2% em termos reais por ano. É uma rotina e é assustadora. Estamos num impasse total e é por isso que depende absolutamente da pressão exterior.

A sua reflexão sobre as questões difíceis é uma intervenção política.

Essa é a minha vida. É procurar as alavancas de Arquimedes, onde podemos apoiar a pouca força para fazer muita força.

Ser político faz parte da sua natureza? Não desapareceu com a saída do Bloco e do Parlamento?

Eu não me cansei. Sou incansável.

O que é que o puxa?

Por exemplo, os trabalhos académicos sobre a saída do euro ou sobre a restruturação da dívida, que têm incidência política. Acho que, no geral, o discurso da esquerda foi demasiado superficial, demasiado conjuntural e demasiado preso às alternativas. Jogou muito o jogo das cartas marcadas.

Quer ser um teórico da esquerda?

Quero contribuir para uma esquerda que tenha um discurso profundo de uma alternativa muito substancial, porque ela vai ser necessária.

Como ideólogo dessa esquerda?

Sabe que o termo ideólogo foi inventado pelo Napoleão? Para insultar os intelectuais.

OK, teórico?

Teórico também é exagerado. Quero ajudar a pensar e quero fazer parte dessa conversa que tenha um objetivo muito ambicioso de poder fazer a economia publica de Portugal.

Acha que essa conversa é concretizável?

Eu acho que União se vai desunir e percebo que o primeiro-ministro esteja sempre a ganhar tempo. Mas um Governo que reestruture a dívida e proteja Portugal da próxima recessão financeira só acontecerá no dia em que o BE tenha 20% ou 25% dos votos. Quando puder ser parte integrante de um Governo.

O episódio da Caixa não correu bem e o Governo parece não ter aprendido.

Foi lamentável. A CGD tem uma mistura de grandes êxitos conspurcados por uma gestão desastrosa. As negociações com a administração foram erradas, os salários foram errados. O homem tem uma pensão de 20 mil euros por mês, precisa de ganhar mais 30 ou 40 mil porquê?

Como avalia este primeiro ministro?

António Costa é um primeiro-ministro sólido, sabe o que faz, tem uma gestão política cuidadosa e tem, substancialmente, cumprido os seus compromissos. É verdade que há uma área muito importante que não faz parte desses compromissos, que é a da gestão financeira. Não gostaria que fosse o primeiro-ministro que permitiu que o sistema bancário passasse a ser 60% ou 70% dominado por capitais estrangeiros.

É o grande risco desta solução de Governo?

É um dos elementos mais difíceis na gestão.

Pode rebentar a ‘geringonça’?

Claro que é um risco. Tem de se trabalhar sobre os acordos, aprofundar os assuntos.

Este Governo tem condições de cumprir a legislatura?

Sim. Cumprindo o seu contrato, trabalhando sobre problemas novos, tendo imaginação para resolver dificuldades e esperando que os diques da Europa não se abram, porque o risco para a UE é de uma crise financeira.

E sobre o Presidente?

O Presidente surpreende toda a gente mas a mim não me surpreende nada. Na campanha eleitoral, alertei para que os adversários não tinham percebido Marcelo. Porque, sendo um homem de direita, faria campanha ao centro e se tornaria, como se tornou, o grande aliado de António Costa. Creio que ele leva, às vezes, ao nível do rocambolesco os seus diálogos com Passos Coelho e esse pingue-pongue.

O que lhe dá gozo...

... é sempre divertido, mas digamos que não é propriamente o topo da prioridade da agenda de um Presidente fazer estes pequenos puxões de orelhas ao líder do PSD.

Marcelo está a exagerar?

É o seu aspeto ativista a vir ao de cima. Ele é o anti-Cavaco. É o Presidente da descompressão contra a pressão, do alívio contra o aspeto soturno, da afabilidade contra a antipatia. Isso tem um enorme impacto popular. Tem um problema: ficar prisioneiro dele próprio. Sendo um Presidente de consensos e dos afetos nacionais, dificilmente pode tomar partido num conflito e ser o fabricante das alternativas. Costa percebe bem que o apoio que Marcelo lhe dá é também um caminho do qual o PR não pode sair.

Um dia vai ser Presidente da República deste país?

Eu sei o futuro da Mariana Mortágua, não vejo o meu.

Gostaria?

Não é um problema que me tenha colocado.

Já foi candidato...

Mas tinha alguma suspeita de que não ganharia nessa altura.

Não é um novo desafio?

Decisões desse tipo não se tomam cinco anos antes. Os presidentes mais simpáticos ou os mais antipáticos foram sempre reeleitos em Portugal.

Dez anos ainda é uma meta possível para si?

Eu não tomo decisões a dez anos.

Também não as afasta?

Não quero que vocês façam um título sobre isto...

Francisco Louçã é um dos autores do prefácio do livro "Estaline — a Corte do Czar Vermelho”, de Simon Sebag Montefiore, que o Expresso distribuirá, em seis volumes, a partir desta semana

Artigo publicado na edição do EXPRESSO de 7 de janeiro de 2017

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