Sinais de fumo

01-04-2017
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Há um mundo maravilhoso à minha frente. Um enorme e tranquilo lago azul, encostas verdes e, ao longe, montanhas imponentes cobertas de neve no topo. “É a vista mais bonita que alguma vez terá. É uma pena o tempo estar assim, chuvoso e com nevoeiro”, lamenta a cientista escocesa. Ficamos parados a olhar para a margem através da janela de um edifício sem paredes. Eu, ela e outros três. Cinco pessoas resignadas à realidade como ela é — e apenas eu obrigado a imaginar o que ela pode ser. Eles juram que é de tirar o fôlego, eu só vejo outono. Para muitos outros, esta moderna estrutura de ferro e vidro à beira de um lago, com os seus complexos laboratórios recheados de máquinas estranhas e pessoas de bata branca, é o novo epicentro do inverno que há décadas dizima o planeta. A morada certa é Quai Jeanrenaud 5, 2000 Neuchâtel, Suíça, e foi aqui que a Philip Morris International (PMI), uma das maiores tabaqueiras do mundo, instalou o seu Centro de Investigação e Desenvolvimento. O Cubo.

O próximo ataque partirá destas salas, e o ambiente é de alerta máximo — embalado pela confiança de uma nova arma secreta. A batalha está prestes a começar, será longa, mas ninguém acredita que ponha fim a uma guerra antiga, com milhões de vítimas. Os dois lados há muito esqueceram a paz e permanecem irredutíveis. Uns são contra o tabaco, os outros vendem tabaco. Os peões somos nós. Nós os fumadores, nós os não-fumadores, nós os consumidores e os eleitores também. Todos, sem exceção, porque nenhuma guerra tem apenas uma dimensão, e esta, em particular, é total, à escala planetária e não admite meias vitórias. Se depender dos beligerantes, só acabará se o inimigo capitular de vez. Ou desaparece o tabaco por completo, como pretende a Organização Mundial de Saúde (OMS), ou prevalece a ideia de que nem todo o tabaco é prejudicial, como defendem as empresas tabaqueiras. E nunca mais fumaremos da mesma maneira.

A oportunidade, rara, de visitar o Cubo surgiu há cerca de um mês e meio, quando recebemos no Expresso um convite da Tabaqueira, a subsidiária da PMI em Portugal. Ofereciam-nos a viagem e a estadia na Suíça: voo para Genebra, comboio até Neuchâtel, jantar, hotel e pequeno-almoço, almoço, táxi de volta a Genebra e voo de regresso. A isto juntaram também, para teste, um pequeno aparelho, do tamanho de um telemóvel, chamado iQOS (um dispositivo de tabaco aquecido), e três pacotes de heatsticks, a nova forma dos cigarros. Ou seja, 70 euros de equipamento e 14,10 euros de tabaco. O iQOS é a tal arma secreta desenvolvida no Cubo, e os responsáveis da PMI acreditam mesmo que vai mudar para sempre a forma de consumirmos tabaco. Escrevo “consumirmos” porque sou fumador há mais de 25 anos.

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Pelas minhas contas (que podem pecar apenas por defeito), terei já fumado cerca de 205 mil cigarros — um estudo publicado há duas semanas garantia que, a preços atuais, em três décadas, ao ritmo de um maço por dia, um fumador gastará 50 mil euros em tabaco. Vinte cigarros por dia provocam, num ano, 150 mutações genéticas nos pulmões, o que aumenta o risco de cancro. Cada cigarro tem cerca de 7000 substâncias químicas, 70 das quais cancerígenas. O fumo provoca mais de duas dezenas de doenças oncológicas, respiratórias, cerebrocardiovasculares e em todos os sistemas do organismo — e pode levar à morte prematura, ou seja, antes dos 70 anos, segundo a Direção-Geral da Saúde (DGS). Em todo o mundo, o tabaco é responsável pela morte de uma pessoa a cada seis segundos. A OMS estima que uma em cada dez mortes de adultos esteja relacionada com o tabaco: serão 5 milhões este ano, 8 milhões em 2030 e, a manter-se o ritmo atual de consumo, 1000 milhões de mortes até ao fim deste século. E, apesar de saber tudo isto, e que morrem 3700 portugueses por ano com cancro de pulmão, ainda não deixei de fumar.

Agora, as coisas vão ficar estranhas — e acho que qualquer um dos 1,4 milhões de fumadores portugueses sentiria o mesmo, além de uma enorme vontade de acender um cigarro. Ao fim de uma hora a assistir a uma apresentação sobre o iQOS numa das salas grandes do Cubo, não muito longe do pequeno jardim interior com plantas de tabaco (“São lindas quando estão em flor”, comentam, só que agora não estão), mudo de cadeira, e à minha frente ficam dois altos responsáveis da PMI: Tommaso Di Giovani, o italiano que é diretor de Comunicação para Produtos com Potencial de Risco Reduzido, e Moira Gilchrist, a escocesa que lidera a Comunicação Científica.

“Sou cientista e, com base na ciência, reconhecemos que fumar provoca doenças graves e que o melhor que os fumadores podem fazer para reduzir ou eliminar esse risco é parar de vez”, diz Moira Gilchrist. “Como?”, interrompo-a.

Estarei a ouvir bem? Eis algo que esperaria ler num relatório da OMS ou ouvir em Lisboa, em conversa com Emília Nunes, a médica que dirige o Programa Nacional para a Prevenção e Controlo do Tabagismo na DGS, a entidade responsável máxima pela saúde pública. “Todas as pessoas fumadoras devem deixar de fumar qualquer produto com tabaco”, dir-me-á mais tarde. Ou até numa troca de ideias com Emanuel Esteves, médico, presidente da Confederação Portuguesa para a Prevenção do Tabagismo (COPPT), capaz de resumir tudo em sete palavras: “Não fumar é sempre o mais seguro.” Na verdade, somados todos os argumentos dos dois médicos, bastam duas. Fumar mata. E isso está mesmo provado.

Todavia, convém não tomar a efémera nuvem de fumo branco por um sinal de paz. Antes pelo contrário. E o sólido pomo da discórdia surge quando a escocesa Moira retoma palavra. “Mas admitimos que muitos fumadores continuam a fumar, apesar de reconhecerem o risco, e para esses estamos a trabalhar de forma a desenvolver alternativas que, no futuro, demonstrem reduzir de forma significativa esse risco”, conclui. Tommaso, mesmo ao lado, faz que sim com a cabeça. “Estamos a fazer tudo o que podemos”, acrescenta, num português perfeito.

Quadratura do círculo

O “tudo” da PMI está na pequena caixa com o nome de código iQOS, a arma secreta. A caixa preta funciona como carregador para uma espécie de caneta onde se introduzem os heatsticks, que, não sendo cigarros (têm sensivelmente metade do tamanho de um cigarro normal), têm tabaco, filtro também e vendem-se em maços de 20 unidades. No interior da caneta há uma espécie de lâmina que atravessa o heatstick para aquecer o tabaco sem combustão. Um fogo que não arde nem se vê, mas que liberta um aerossol, parecido com o fumo, e é capaz de garantir a dose de nicotina que os fumadores procuram. A nova caixa preta, já o disse, é do tamanho de um telemóvel, mas lá dentro cabem décadas inteiras de discussão entre quem produz e vende tabaco e quem defende o seu fim. A PMI acredita que alcançou a quadratura do círculo. As autoridades de saúde acham que é mais do mesmo. Outra vez. E tão mau como sempre.

Em fevereiro deste ano, durante uma conferência em Nova Iorque, o CEO da PMI colocou a fasquia no ponto mais alto de sempre. “A nossa ambição assumida é convencer todos os atuais fumadores adultos que tencionam continuar a fumar a mudar para produtos de risco reduzido o mais depressa possível”, afirmou o grego André Calantopolus. A citação foi usada em abril na apresentação de Jeff Colin, um médico britânico da Universidade de Edimburgo, num seminário na Universidade de Wellington, na Nova Zelândia. A mesma frase apareceu, por fim, no power point que me mostraram na sala grande do Cubo, no fim de outubro, mas com uma diferença: em vez de “produtos de risco reduzido” lia-se “não-combustíveis”.

A passagem da segunda à primeira — na prática, a diferença entre poder vender apenas um cigarro que não arde ou chegar ao mercado com um produto de alegado risco reduzido — começa a jogar-se no final deste ano, quando a PMI apresentar à todo-poderosa agência americana FDA (Food & Drug Administration) os resultados de vários anos de trabalho e de centenas de milhões de euros de investimento no Cubo. Dois milhões de páginas de dados científicos (muitos dos quais disponíveis online) que, na altura da minha visita, estavam a ser compiladas e trabalhadas por um pequeno grupo de cientistas isolado numa das alas do edifício há já duas semanas. A forma mais simples de resumir a tese da PMI é a seguinte: a maioria das substâncias tóxicas e prejudiciais do cigarro resulta da combustão do tabaco, que arde a uma temperatura superior a 800 graus centígrados; com o tabaco aquecido, essa temperatura não vai além dos 400 graus centígrados, pelo que o risco é potencialmente menor.

As decisões da FDA valem apenas para os EUA, e a dimensão do mercado americano justifica só por si a expectativa dos responsáveis da PMI, mas têm eco à escala global. O processo pode demorar um ano e, até haver uma decisão, as palavras dos responsáveis da empresa deverão ser tão cautelosas como as que ouvi a Moira Gilchrist. “Não fazemos absolutamente qualquer anúncio de redução de risco neste momento. O que temos visto é que o aerossol gerado pelo iQOS, quando comparado com o fumo do cigarro, produz níveis de químicos prejudiciais 90% a 95% inferiores. E, também, quando comparado com os cigarros tradicionais, é entre 90% a 95% menos tóxico. Nos nossos estudos clínicos conseguimos mostrar que os fumadores que mudam para o iQOS alcançam níveis de redução na exposição a esses químicos que se aproximam dos valores dos fumadores que deixaram de fumar completamente. É aqui que estamos em termos científicos e é isso, bem como outros dados, que vamos submeter à FDA”, assegura a cientista, depois de largos minutos a mostrar-me gráficos.

Trouxe os números na bagagem e discuti-os com Emília Nunes, da DGS, que, embora reconhecendo a importância dos estudos feitos pelas empresas de tabaco, lembra que os mesmos não podem fundamentar qualquer decisão ou recomendação em saúde pública. “É sempre necessário realizar a comprovação às alegações da indústria em laboratórios independentes e por equipas de investigação sem qualquer ligação ou conflito de interesses com as indústrias em causa”, alerta. “Muitos estudos de avaliação do risco deste novo produto são realizados tendo por base a comparação com o risco de exposição ao fumo de um cigarro convencional, que é, como sabemos, muito elevado e sem um limiar seguro. Uma redução de 80% ou 90% dessa exposição poderá, ainda assim, não ser suficiente para se poder afirmar que o consumo deste produto é inócuo para a saúde. O conceito de ‘potencialmente menos perigoso’ não deve ser encarado como sinónimo de produto inócuo ou sem risco para a saúde”, explica a médica da DGS.

Emanuel Esteves, o presidente do COPPT, deixa um aviso semelhante: não houve ainda tempo para conclusões definitivas. “Nunca devemos comparar mensagens científicas com mensagens comerciais, ainda que invoquem estudos”, alerta. Depois, lança uma comparação improvável. “Dizer ‘menos substâncias tóxicas’ não pode significar ‘mais seguro’. Dizer ‘menos nocivo’ não pode significar ‘mais saudável’. Isso é demagogia do marketing. O que é mais seguro: cair de um 9º andar ou de um 4º andar? Além disso, pense comigo: não vai além dos 400 graus centígrados... Acha pouco? Cozinhamos até 100 graus centígrados, no forno até 200 graus centígrados, e já há alguns riscos. Mas vamos imaginar que a 400 graus centígrados não se formam outras substâncias nocivas, por exemplo, todos os cancerígenos. Vamos imaginar que o único produto é a nicotina. Será este tabaco mais saudável?”, pergunta. Sim, a resposta é mesmo “não”. E o médico apresenta a seguir a longa lista de problemas provocados pela nicotina (sistema nervoso, cardiovascular, aterosclerose, enfarto agudo do miocárdio...) “Ou seja, poderá matar menos, o que ainda está por provar, mas continua a matar. Poderá causar menor morbilidade, mas continua a causar morbilidade”, lamenta, pouco impressionado com os dados da PMI. “Este assunto ainda carece de melhor conhecimento.”

Ataque ao mercado

Enquanto os estudos independentes não chegam, a PMI avançou em duas dezenas de mercados. “No Japão, com monopólio da tabaqueira japonesa, o iQOS é um sucesso e temos dificuldade em abastecer os pontos de venda”, assegura um responsável da Tabaqueira. O aspeto gadget do aparelho, aliado ao facto de não produzir cinza nem cheiro, não incomodando quem está à volta, é decisivo no mercado nipónico. Em Portugal, os heatsticks estão à venda em todo o país, e quem se der ao trabalho de olhar com atenção notará diferenças em relação ao maço de tabaco normal. Desde logo, a ausência das tão discutidas imagens chocantes (responsáveis por um pequeno boom no sector das caixas para maços de tabaco). Depois, os avisos. Em todos os maços de tabaco tradicionais há duas mensagens: “Fumar mata — deixe já” e “O fumo do tabaco contém mais de 70 substâncias causadoras de cancro”. Os heatsticks dizem algo diferente: “Este produto do tabaco prejudica a sua saúde e cria dependência” e, nas versões mais recentes, “Fumar prejudica gravemente a sua saúde e a dos que o rodeiam” ou “Se está grávida: fumar prejudica a saúde do seu filho”.

A explicação, segundo Emília Nunes, da DGS, está na novidade. “Como ainda não se conhecem as consequências para a saúde a médio e longo prazo decorrentes do consumo de tabaco aquecido, ainda não é possível propor advertências de saúde mais ajustadas aos riscos deste novo produto”, concretiza. O termo “novo produto do tabaco” é importante e refere-se a produtos cujo consumo não produz emissão de fumo ou aerossóis, como o rapé, o tabaco de mascar e o tabaco para uso oral. O tabaco aquecido é uma espécie híbrida. “Embora produzindo um aerossol, não envolve processo de combustão”, diz-me, e por isso ficou fora das advertências reservadas aos cigarros tradicionais na diretiva europeia que regulamenta os avisos colocados nos maços — transposta para a lei portuguesa em agosto de 2015. A rapidez com que tudo acontece é talvez o sinal mais claro de que algo significativo está em curso no mercado global do tabaco.

O cigarro é um negócio peculiar. Metade ou mais de metade dos fumadores deixa de consumir num determinado momento da vida — por decisão própria ou, os nos casos mais graves, por doença ou morte. Nunca como hoje as campanhas antitabaco pareceram tão eficazes e, por outro lado, nunca os expositores das tabacarias apresentaram tanta variedade. O consumo de cigarros tem vindo a cair em países como EUA, Austrália, Grã-Bretanha, Canadá e Itália (ainda que registe ligeiras subidas noutros mercados europeus) — e a reação da indústria parece ser agora apostar em produtos alegadamente menos nocivos e, no limite, capazes até de mexer com o mercado de medicamentos para deixar de fumar (que vale 5,6 milhões de euros em Portugal). Não deixa de ser curioso que a maior parte dos cientistas do Cubo tenha vindo dos principais laboratórios farmacêuticos.

O iQOS pode ser o trunfo maior da Philip Morris, mas não é o único (há mais dispositivos de alegado risco reduzido em estudo e que deverão chegar ao mercado no próximo ano), e a PMI não está sozinha. Empresas como a BAT, a Reynolds e a companhia japonesa Japan Tobacco Inc., além de outras, estão também na corrida do “risco reduzido”, com cigarros eletrónicos e outras novidades que, na ideia de muita gente, além “de não fazerem tão mal, podem até fazer bem” — uma ideia errada. Nunca fazem bem.

Se juntarmos todas as tabaqueiras do mundo, vemos à nossa frente um negócio global que vale anualmente mais de 770 mil milhões de euros — e que não deve abrandar tão cedo. Em África e na Ásia há cada vez mais fumadores e um enorme potencial de crescimento para a indústria. Mais de 100 milhões de homens chineses com menos de 30 anos vão morrer por causa do tabaco, e na Nigéria, em 2025, a OMS prevê que um em cada quatro homens seja fumador. No ano passado, só a americana PMI produziu 850 mil milhões de cigarros. Nos mesmo 12 meses, os cigarros mataram mais de 480 mil pessoas nos EUA. À escala global, morreram 5,4 milhões de pessoas e foram produzidos 6 triliões de cigarros.

Geografia do tabaco

As leis mudam com as fronteiras, tal como as campanhas publicitárias das tabaqueiras e as das organizações antitabaco. A OMS é uma espécie de farol mundial, mas a luz não chega a todo o lado. A geografia do tabaco é uma disciplina complexa.

Há uma semana, na sexta-feira dia 18, estava em Peniche. Descontando o mar, que à custa de ondas enormes pouco tinha a ver com um lago, a verdade é que podia estar em Neuchâtel a olhar pela janela: nuvens negras e chuva. De manhã, passei por uma tabacaria à procura de heatsticks e senti-me no Japão. “Está esgotado. Talvez amanhã”, disse-me o rapaz. “Olhe, se conhecer alguém que queira comprar um aparelho, estou a vender o meu. Está como novo. Eu sei que faz melhor do que o cigarro, mas não me dou bem com aquilo.” “Pode fazer menos mal...”, corrigi. “Isso. Se souber de alguém...”

Tinha combinado encontrar-me à tarde num restaurante com um ex-fumador sueco, mas acabei a entrevistar um suíço ex-fumador. Christoph Berger, 32 anos, de Berna. Falamos ao balcão. Eu com um café na mão, ele com uma cerveja à frente e a namorada ao lado. Entre os dois está a pequena lata redonda que me levara ali e que levara Christoph a deixar de fumar. Snus. Tabaco de colocar na boca. Os pequenos sacos (como sacos de chá) que se põem entre a gengiva e o lábio, durante o tempo necessário para a libertação de nicotina, são um dos produtos de tabaco mais consumidos na Noruega e na Suécia, mas a sua venda está proibida no resto da União Europeia (UE). “A partir de janeiro também vamos deixar de poder comprar na Suíça”, diz-me. “Porquê? Qual é o argumento?”, pergunto-lhe. “Não sei. Teremos de comprar pela internet”, responde. Alguns portugueses fazem o mesmo. Ali ao lado, seis suecos improvisaram uma reunião e têm pouco tempo para conversas. À saída, conto cinco latas de Snus em cima da mesa.

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Dias antes tinha entrevistado Atakan Befrits, sueco de ascendência turca, que é um membro destacado do movimento mundial pela Redução dos Danos do Tabaco. Será também um dos oradores do Fórum Global da Nicotina, que irá decorrer em junho na Polónia (Moira Gilchrist, da PMI, apresentou o iQOS na edição do ano passado). Ou seja, a pessoa indicada para esclarecer o que Christoph não conseguira. “O Snus é usado há mais de cem anos na Suécia, e os níveis de dano para a saúde nesse período são zero. Não é um zero absoluto, nem ninguém diz que é bom para as pessoas, mas estatisticamente o dano causado é zero e, por isso, não é relevante como problema de saúde pública”, explica-me.

Os saquinhos de tabaco são um verdadeiro êxito na Escandinávia, um mercado que gasta mais de 345 milhões de caixas de Snus por ano. Na Noruega, a percentagem de consumidores passou de 3% para 30% desde 2000. “Os noruegueses conseguiram baixar o consumo de cigarros e aumentar o número de fumadores que passaram para o Snus”, assegura Befrits. “Ganharam em todos os campos.”

Como explicar então a proibição em vigor na UE? “Os investigadores que controlam o controlo de tabaco têm uma agenda própria e bem definida. São eles que controlam a informação, não o governo, e têm vindo a fornecer informação que, após dez anos de estudo, sabemos que não é verdadeira. O Snus está proibido na UE porque dizem aos outros países que é muito perigoso, quando na verdade não é estatisticamente perigoso e é mesmo a forma mais eficaz de levar os fumadores suecos a deixarem os cigarros”, diz Atakan Befrits, desculpando-se por parecer demasiado duro e crítico. “Só que sou crítico e tenho de ser duro. Mesmo que no futuro possam vir a descobrir qualquer problema, certamente não representará mais do que 1% dos danos causados pelos cigarros.”

O suíço sentado no bar em Peniche sentia-se melhor fisicamente, mas queixava-se de, por vezes, ficar com tabaco nos dentes. Temia ficar doente, mas descansava-o saber que podia controlar diariamente o estado das gengivas. “Era diferente quando fumava. Não consegues ver os teus pulmões, não é?” Não soube o que responder. Tentei contactar o Ministério da Saúde da Suécia, por e-mail, só que até ao fecho desta edição não chegou qualquer resposta. O médico Emanuel Esteves, do COPPT, está a favor da proibição. “A nicotina é um agente de doenças e morte. É um veneno. Ainda bem que a UE tem esta postura. Pena é que nem todos os países atuem em conformidade. Em alguns aspetos, Portugal é um deles.”

Ao contrário do que parece suceder na Suécia, no Reino Unido as autoridades encontraram nos novos produtos de nicotina uma forma de atacar os produtos de nicotina do costume. Em agosto de 2015, o Public Health England (PHE), organismo responsável pela saúde pública, anunciou os resultados de um estudo independente que encomendara sobre os cigarros eletrónicos (CE), e-cigarettes, como eles dizem. As principais conclusões estão logo a abrir, após a mensagem do responsável máximo do PHE, Duncan Selbie. Segue-se um breve resumo das mesmas: os CE devem ser aconselhados aos fumadores que procuram deixar de fumar — ao fazê-lo, reduz-se o risco de doenças relacionadas com o fumo; os CE não são atraentes para os não-fumadores; os dispensadores de nicotina devem ser à prova de crianças; os peritos acreditam que o CE é 95% mais seguro do que o cigarro tradicional.

A percentagem apresentada no relatório do PHE é demasiado próxima dos valores da PMI para que valha a pena perguntar a Emília Nunes, da DGS, se os dois produtos são comparáveis. “Não, não devem ser equiparados. Embora exista investigação em curso, os riscos do tabaco aquecido são certamente superiores aos decorrentes do consumo de cigarros eletrónicos, devido ao facto de conterem tabaco na sua composição Mas nem uns nem outros são alternativas seguras e isentas de risco para a saúde. A única opção saudável é não consumir este tipo de produtos”, responde a médica portuguesa.

Cinzas do passado

A Europa (Reino Unido incluído, apesar do ‘Brexit’) parece ter sido sempre mais rápida a reagir do que os EUA. Na década de 60, os EUA discutiam ainda a ligação dos cigarros ao cancro do pulmão. Confrontada com sucessivos relatórios científicos desde os anos 50, a indústria procurava reagir. Um dos primeiros passos, depois de negar qualquer risco nos seus produtos, foi envolver-se na pesquisa, criando um comité de investigação científica, liderado por um antigo membro da Sociedade Americana do Cancro, e inundando-o de dinheiro para estudos. O trabalho resultava sempre na mesma conclusão: é preciso mais investigação e não há provas suficientes.

Ao mesmo tempo, o produto cigarro ia mudando. Primeiro veio o filtro, capaz de reduzir substâncias nocivas (que ninguém sabia se existiam, de acordo com a indústria). Com o passar do tempo, as doses de substâncias nocivas foram sendo aumentadas para contrariar o efeito do filtro. “O resultado é que os fumadores que mudavam dos cigarros normais para os cigarros com filtro convencidos de que estavam a reduzir os riscos para a sua saúde estavam por vezes a expor-se a níveis mais altos do que antes”, leio num artigo da “The New Yorker” de novembro de 1963. A seguir chegaram os cigarros de mentol e os anúncios cada vez mais agressivos nos jornais, nas revistas e na televisão...

Enquanto isto acontecia, em 1962, os ingleses proibiram os anúncios a cigarros na televisão antes das 9h da noite e lançaram uma campanha em todas as escolas, clínicas e serviços públicos distribuindo milhões de panfletos com a mensagem: “Antes de fumar, PENSE: os cigarros causam cancro do pulmão”. Nos EUA, queixava-se o autor do tal artigo, nada. Ao fim de dez anos de discussão, e já com uma série de processos em tribunais contra a indústria tabaqueira, as autoridades mantinham-se em silêncio sobre os relatórios com milhares de páginas a alertar para os perigos dos cigarros.

A desconfiança dura até hoje. O passado pesa. Tanto como a memória do outono quando nos mostram o verão. Por que devo acreditar numa empresa que durante décadas negou a verdade, recusou a ideia de que o tabaco matava e agora quer convencer-me de que tem um novo produto que é menos prejudicial? Filtros? Cigarros light? Faço a pergunta aos responsáveis da PMI. “Compreendemos o ceticismo das pessoas, mas acho que a abordagem que temos é absolutamente séria em relação à redução da nocividade do tabaco e acho que os resultados da comercialização e a rapidez com que surgiram é uma indicação da seriedade que colocámos em todo o processo”, responde Moira, acrescentando que gastaram milhões de euros em investigação, que apresentaram os resultados em conferências, que publicaram papers científicos. “O mais difícil de ultrapassar é o ceticismo dos nosso opositores em relação à ciência, aos dados científicos que disponibilizamos e que estão aí para serem revistos por entidades independentes. Todas as opiniões deviam ser escutadas”, adianta um responsável português da Tabaqueira.

A maior biblioteca do mundo sobre tabaco está nos EUA. Mais precisamente na sala 328 (3º piso) do edifício principal da New York Public Library, o Stephen A. Schwarzman, e tem o nome do seu criador, George Arents Jr, sobrinho do dono de uma plantação. (Também pode ser consultada através da internet, como fiz.) George começou a colecionar aos 17 anos, sonhava publicar a história do tabaco. Não lhe faltava material. Vespucio foi o primeiro a escrever sobre a planta, em 1505, depois de ver índios da atual Venezuela picarem folhas, que enrolavam em pequenas bolas, para mastigarem durante as viagens de canoa mais longas. Trinta anos depois, em 1535, os exploradores espanhóis cruzaram-se com os índios do atual Haiti, que inalavam o fumo das folhas a arder. Numa outra tribo, usavam folhas secas, enrolavam-nas em folhas de palmeira e fumavam.

O mergulho na História permite perceber que nada arde pela primeira vez. Em Nova Iorque está um documento, anónimo, de 1604 que arrasa o detestável vício do tabaco e os fumadores. Apesar de faltar uma assinatura, todos acreditam que é do rei James, o mesmo que aumentou a tributação fiscal do tabaco em 4000% para desencorajar o consumo. E resultou durante uns tempos. É de notar que o aumento da carga fiscal sobre os produtos de tabaco é uma das bandeiras da OMS na atualidade. “É a forma mais eficaz de reduzir o consumo”, assegura um relatório de 2015. O risco de aumentar os impostos, claro, é assistir ao crescimento do contrabando de tabaco e à entrada no mercado de produtos não controlados — as autoridades portuguesas fizeram várias apreensões nas últimas semanas. Por outro lado, o Estado deverá arrecadar este ano 1,5 mil milhões de euros.

O maior fumador de todos os tempos foi um holandês chamado Mynheer Van Klaes, que morreu em 1871, com 98 anos, depois de ter fumado, ao longo da vida, quatro toneladas de tabaco (em quantidades devidamente registadas num diário). Cada fumador convidado para o funeral recebeu dois cachimbos e 4,5 quilos de tabaco. Fumaram de forma ininterrupta até deixarem de conseguir ver a cara do vizinho do lado. Mas há um outro nome do passado que importa convocar, Charles G. Pease. Em 1911, a 14 de novembro, o “Los Angeles Evening Herald” contava que o senhor Pease, presidente da Liga Protetora dos Não-Fumadores, defendia que nenhum jovem devia tocar em tabaco até aos 21 anos — provavelmente não o faria depois (os estudos atuais indicam que, passada a adolescência, desce a probabilidade de alguém começar a fumar). Em 1909, tinha apresentado uma petição à cidade de Nova Iorque para que fosse proibido o fumo no metropolitano. Dois anos depois, a regra chegou à superfície. Pease, dentista, tornou-se uma espécie de polícia do tabaco e, entre 1910 e 1913, foi responsável pela detenção de pelo menos 50 pessoas. Uma das histórias mais engraçadas era contada pelos seus discípulos, que um dia lhe falaram de uma mulher que fumava cachimbo desde os 16 anos e morrera aos 106 anos. Pease lamentou e acrescentou: “Que desperdício. Quem sabe a proveta idade a que teria chegado se não fosse aquele cachimbo causador de morte?”

À volta da lei

Quem sabe? Podemos trazer a dúvida umas décadas para diante e um oceano para cá, em jeito de introdução à discussão sobre a nova lei do tabaco. A proposta do Governo, que deu origem a uma discussão inconclusiva no Parlamento e encaminhou o texto para a especialidade, parece ir no sentido mais restritivo. Prevê, entre outras alterações, a proibição de fumar em áreas ao ar livre a cinco metros de parques infantis, hospitais e escolas e equipara os cigarros eletrónicos aos cigarros convencionais, vedando o seu uso em espaços públicos fechados. Não é claro se o tabaco aquecido, a tal bomba que pode vir a mexer com o mercado, está sequer contemplado.

Entrei em contacto com dois deputados da Comissão de Saúde do Parlamento. Um do PS, outro do PSD. Isabel Moreira, a socialista, já tinha escrito um artigo de opinião no Expresso sobre o assunto e usa termos como “autoritária”, “perseguidora” e “péssima” para descrever a proposta do Governo. “O Estado não pode impor às pessoas um modelo do cidadão exemplar no qual todos devamos encaixar”, acrescenta, sem esquecer os novos produtos. “Dizer que a única forma de deixar de fumar é o abstencionismo é não só inadmissível do ponto de vista da proporcionalidade como é uma imposição absurda. A pessoa vicia-se nos cigarros pela nicotina, mas morre pelo fumo. Se quero usar cigarros eletrónicos para consumir nicotina, sem fumo e sem incomodar terceiros, qual é a base constitucional para o Estado interferir?”

Luís Vales, do PSD, igualmente contra o espírito das alterações legislativas avançadas pelo Governo, considera a proposta “restritiva”. “Não será preferível que os atuais consumidores de tabaco tradicional, cujos malefícios são sobejamente conhecidos, migrem para produtos que poderão não apresentar os mesmos riscos?”, questiona. Segue a questão para Emanuel Neves, o médico do COPPT, que responde sem qualquer dúvida. “É urgente que os produtos tenham, realmente, o mesmo tratamento”, esclarece. E esse tratamento, diz-me, é o que está previsto nas alterações propostas pelo Governo.

Mas há algo mais que o médico quer dizer. “Sabe que durante o período de discussão da lei do tabaco a Tabaqueira montou um stand na Assembleia da República, exercendo poderosa campanha junto dos deputados e promovendo os seus novos produtos?” Na verdade, não sabia. Uma pesquisa nos arquivos, contudo, levou-me a um artigo do “Diário de Notícias”, de 20 de outubro último. Além do tabaco, o país político discutia por esses dias os lóbis. E a notícia dizia assim: “Antes, durante e depois do debate parlamentar, um quadro da Tabaqueira Philip Morris International, a maior empresa nacional do sector, sensibilizava nos corredores deputados para a sua causa. (...) O que o referido dirigente fazia nessa tarde nos corredores do Palácio de São Bento chama-se, em linguagem técnica, ‘representação de interesses’. Na linguagem comum, existe outra palavra, em inglês: lobbying. E, no caso presente, o lóbi do tabaco é conhecido...” Contactei a Tabaqueira, e um responsável confirmou a presença. “Após um pedido por escrito, de forma transparente, fomos recebido pelos vários partidos. Uma das audições coincidiu com o dia da votação, outras ocorreram depois. Tudo normal. Mas não houve nenhum stand. Isso é falso”, disse.

Sim e não. A vida de muitos fumadores é assim. Entre um cigarro e o seguinte existe apenas a vontade de deixar. Por vezes, parece que tudo à nossa volta nos fala de cigarros. Aconteceu enquanto escrevia este artigo: a notícia das mutações genéticas, o dia do cancro do pulmão, o último estudo da DGS, até as eleições americanas. Donald Trump, que se gaba de nunca ter bebido ou fumado, vai ser em janeiro o 45º Presidente dos EUA, sucedendo a Barack Obama, que foi capaz de deixar de fumar ao fim de cinco anos, com ajuda de uma terapia à base de nicotina. O homem liderou o ‘mundo livre’ desde 2011 sem tocar num cigarro.

Nesse ano, o filósofo australiano Peter Singer dedicou-lhe um artigo com o provocador título “Devemos banir o tabaco?”, em que discutia os prós e contras de uma proibição total e, também, a liberdade que todos nós temos para nos comportarmos de forma prejudicial para nós. A liberdade de nos fazermos mal. O cigarro é isso, mas não só. Porque há fumadores passivos, porque há produtos do cigarro que ficam no ambiente, além da cinza e da beata. Porque o cigarro é só meu, mas o mal que faz não. A solução definitiva talvez fosse a melhor e, diz Singer, se calhar até os fumadores iam agradecer.

Enviei a Singer um e-mail sobre os novos produtos, sem esperar resposta. Mas ela veio.

“Caro senhor Marques. Por vezes, é correto prevenir que as pessoas se possam prejudicar a si próprias, como é o caso do uso dos cintos de segurança. Depende da gravidade dos danos. Se os novos produtos forem tão prejudiciais para os fumadores como os cigarros tradicionais, então acho que devemos bani-los. Se forem significativamente menos prejudiciais, talvez não.”

Sim e não. No fumo, essa é a questão. b

rmarques@expresso.impresa.pt

O Expresso viajou a convite da Tabaqueira

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Sim e não. A vida de muitos fumadores é assim. Entre um cigarro e o seguinte existe apenas a vontade de deixar. Por vezes, parece que tudo à nossa volta nos fala de cigarros. Aconteceu enquanto escrevia este artigo: a notícia das mutações genéticas, o dia do cancro do pulmão, o último estudo da DGS, até as eleições americanas. Donald Trump, que se gaba de nunca ter bebido ou fumado, vai ser em janeiro o 45º Presidente dos EUA, sucedendo a Barack Obama, que foi capaz de deixar de fumar ao fim de cinco anos, com ajuda de uma terapia à base de nicotina. O homem liderou o ‘mundo livre’ desde 2011 sem tocar num cigarro.

Nesse ano, o filósofo australiano Peter Singer dedicou-lhe um artigo com o provocador título “Devemos banir o tabaco?”, em que discutia os prós e contras de uma proibição total e, também, a liberdade que todos nós temos para nos comportarmos de forma prejudicial para nós. A liberdade de nos fazermos mal. O cigarro é isso, mas não só. Porque há fumadores passivos, porque há produtos do cigarro que ficam no ambiente, além da cinza e da beata. Porque o cigarro é só meu, mas o mal que faz não. A solução definitiva talvez fosse a melhor e, diz Singer, se calhar até os fumadores iam agradecer.

Enviei a Singer um e-mail sobre os novos produtos, sem esperar resposta. Mas ela veio.

“Caro senhor Marques. Por vezes, é correto prevenir que as pessoas se possam prejudicar a si próprias, como é o caso do uso dos cintos de segurança. Depende da gravidade dos danos. Se os novos produtos forem tão prejudiciais para os fumadores como os cigarros tradicionais, então acho que devemos bani-los. Se forem significativamente menos prejudiciais, talvez não.”

Sim e não. No fumo, essa é a questão.

O Expresso viajou a convite da Tabaqueira

Artigo publicado na edição do EXPRESSO de 26 de novembro de 2016

Há um mundo maravilhoso à minha frente. Um enorme e tranquilo lago azul, encostas verdes e, ao longe, montanhas imponentes cobertas de neve no topo. “É a vista mais bonita que alguma vez terá. É uma pena o tempo estar assim, chuvoso e com nevoeiro”, lamenta a cientista escocesa. Ficamos parados a olhar para a margem através da janela de um edifício sem paredes. Eu, ela e outros três. Cinco pessoas resignadas à realidade como ela é — e apenas eu obrigado a imaginar o que ela pode ser. Eles juram que é de tirar o fôlego, eu só vejo outono. Para muitos outros, esta moderna estrutura de ferro e vidro à beira de um lago, com os seus complexos laboratórios recheados de máquinas estranhas e pessoas de bata branca, é o novo epicentro do inverno que há décadas dizima o planeta. A morada certa é Quai Jeanrenaud 5, 2000 Neuchâtel, Suíça, e foi aqui que a Philip Morris International (PMI), uma das maiores tabaqueiras do mundo, instalou o seu Centro de Investigação e Desenvolvimento. O Cubo.

O próximo ataque partirá destas salas, e o ambiente é de alerta máximo — embalado pela confiança de uma nova arma secreta. A batalha está prestes a começar, será longa, mas ninguém acredita que ponha fim a uma guerra antiga, com milhões de vítimas. Os dois lados há muito esqueceram a paz e permanecem irredutíveis. Uns são contra o tabaco, os outros vendem tabaco. Os peões somos nós. Nós os fumadores, nós os não-fumadores, nós os consumidores e os eleitores também. Todos, sem exceção, porque nenhuma guerra tem apenas uma dimensão, e esta, em particular, é total, à escala planetária e não admite meias vitórias. Se depender dos beligerantes, só acabará se o inimigo capitular de vez. Ou desaparece o tabaco por completo, como pretende a Organização Mundial de Saúde (OMS), ou prevalece a ideia de que nem todo o tabaco é prejudicial, como defendem as empresas tabaqueiras. E nunca mais fumaremos da mesma maneira.

A oportunidade, rara, de visitar o Cubo surgiu há cerca de um mês e meio, quando recebemos no Expresso um convite da Tabaqueira, a subsidiária da PMI em Portugal. Ofereciam-nos a viagem e a estadia na Suíça: voo para Genebra, comboio até Neuchâtel, jantar, hotel e pequeno-almoço, almoço, táxi de volta a Genebra e voo de regresso. A isto juntaram também, para teste, um pequeno aparelho, do tamanho de um telemóvel, chamado iQOS (um dispositivo de tabaco aquecido), e três pacotes de heatsticks, a nova forma dos cigarros. Ou seja, 70 euros de equipamento e 14,10 euros de tabaco. O iQOS é a tal arma secreta desenvolvida no Cubo, e os responsáveis da PMI acreditam mesmo que vai mudar para sempre a forma de consumirmos tabaco. Escrevo “consumirmos” porque sou fumador há mais de 25 anos.

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Pelas minhas contas (que podem pecar apenas por defeito), terei já fumado cerca de 205 mil cigarros — um estudo publicado há duas semanas garantia que, a preços atuais, em três décadas, ao ritmo de um maço por dia, um fumador gastará 50 mil euros em tabaco. Vinte cigarros por dia provocam, num ano, 150 mutações genéticas nos pulmões, o que aumenta o risco de cancro. Cada cigarro tem cerca de 7000 substâncias químicas, 70 das quais cancerígenas. O fumo provoca mais de duas dezenas de doenças oncológicas, respiratórias, cerebrocardiovasculares e em todos os sistemas do organismo — e pode levar à morte prematura, ou seja, antes dos 70 anos, segundo a Direção-Geral da Saúde (DGS). Em todo o mundo, o tabaco é responsável pela morte de uma pessoa a cada seis segundos. A OMS estima que uma em cada dez mortes de adultos esteja relacionada com o tabaco: serão 5 milhões este ano, 8 milhões em 2030 e, a manter-se o ritmo atual de consumo, 1000 milhões de mortes até ao fim deste século. E, apesar de saber tudo isto, e que morrem 3700 portugueses por ano com cancro de pulmão, ainda não deixei de fumar.

Agora, as coisas vão ficar estranhas — e acho que qualquer um dos 1,4 milhões de fumadores portugueses sentiria o mesmo, além de uma enorme vontade de acender um cigarro. Ao fim de uma hora a assistir a uma apresentação sobre o iQOS numa das salas grandes do Cubo, não muito longe do pequeno jardim interior com plantas de tabaco (“São lindas quando estão em flor”, comentam, só que agora não estão), mudo de cadeira, e à minha frente ficam dois altos responsáveis da PMI: Tommaso Di Giovani, o italiano que é diretor de Comunicação para Produtos com Potencial de Risco Reduzido, e Moira Gilchrist, a escocesa que lidera a Comunicação Científica.

“Sou cientista e, com base na ciência, reconhecemos que fumar provoca doenças graves e que o melhor que os fumadores podem fazer para reduzir ou eliminar esse risco é parar de vez”, diz Moira Gilchrist. “Como?”, interrompo-a.

Estarei a ouvir bem? Eis algo que esperaria ler num relatório da OMS ou ouvir em Lisboa, em conversa com Emília Nunes, a médica que dirige o Programa Nacional para a Prevenção e Controlo do Tabagismo na DGS, a entidade responsável máxima pela saúde pública. “Todas as pessoas fumadoras devem deixar de fumar qualquer produto com tabaco”, dir-me-á mais tarde. Ou até numa troca de ideias com Emanuel Esteves, médico, presidente da Confederação Portuguesa para a Prevenção do Tabagismo (COPPT), capaz de resumir tudo em sete palavras: “Não fumar é sempre o mais seguro.” Na verdade, somados todos os argumentos dos dois médicos, bastam duas. Fumar mata. E isso está mesmo provado.

Todavia, convém não tomar a efémera nuvem de fumo branco por um sinal de paz. Antes pelo contrário. E o sólido pomo da discórdia surge quando a escocesa Moira retoma palavra. “Mas admitimos que muitos fumadores continuam a fumar, apesar de reconhecerem o risco, e para esses estamos a trabalhar de forma a desenvolver alternativas que, no futuro, demonstrem reduzir de forma significativa esse risco”, conclui. Tommaso, mesmo ao lado, faz que sim com a cabeça. “Estamos a fazer tudo o que podemos”, acrescenta, num português perfeito.

Quadratura do círculo

O “tudo” da PMI está na pequena caixa com o nome de código iQOS, a arma secreta. A caixa preta funciona como carregador para uma espécie de caneta onde se introduzem os heatsticks, que, não sendo cigarros (têm sensivelmente metade do tamanho de um cigarro normal), têm tabaco, filtro também e vendem-se em maços de 20 unidades. No interior da caneta há uma espécie de lâmina que atravessa o heatstick para aquecer o tabaco sem combustão. Um fogo que não arde nem se vê, mas que liberta um aerossol, parecido com o fumo, e é capaz de garantir a dose de nicotina que os fumadores procuram. A nova caixa preta, já o disse, é do tamanho de um telemóvel, mas lá dentro cabem décadas inteiras de discussão entre quem produz e vende tabaco e quem defende o seu fim. A PMI acredita que alcançou a quadratura do círculo. As autoridades de saúde acham que é mais do mesmo. Outra vez. E tão mau como sempre.

Em fevereiro deste ano, durante uma conferência em Nova Iorque, o CEO da PMI colocou a fasquia no ponto mais alto de sempre. “A nossa ambição assumida é convencer todos os atuais fumadores adultos que tencionam continuar a fumar a mudar para produtos de risco reduzido o mais depressa possível”, afirmou o grego André Calantopolus. A citação foi usada em abril na apresentação de Jeff Colin, um médico britânico da Universidade de Edimburgo, num seminário na Universidade de Wellington, na Nova Zelândia. A mesma frase apareceu, por fim, no power point que me mostraram na sala grande do Cubo, no fim de outubro, mas com uma diferença: em vez de “produtos de risco reduzido” lia-se “não-combustíveis”.

A passagem da segunda à primeira — na prática, a diferença entre poder vender apenas um cigarro que não arde ou chegar ao mercado com um produto de alegado risco reduzido — começa a jogar-se no final deste ano, quando a PMI apresentar à todo-poderosa agência americana FDA (Food & Drug Administration) os resultados de vários anos de trabalho e de centenas de milhões de euros de investimento no Cubo. Dois milhões de páginas de dados científicos (muitos dos quais disponíveis online) que, na altura da minha visita, estavam a ser compiladas e trabalhadas por um pequeno grupo de cientistas isolado numa das alas do edifício há já duas semanas. A forma mais simples de resumir a tese da PMI é a seguinte: a maioria das substâncias tóxicas e prejudiciais do cigarro resulta da combustão do tabaco, que arde a uma temperatura superior a 800 graus centígrados; com o tabaco aquecido, essa temperatura não vai além dos 400 graus centígrados, pelo que o risco é potencialmente menor.

As decisões da FDA valem apenas para os EUA, e a dimensão do mercado americano justifica só por si a expectativa dos responsáveis da PMI, mas têm eco à escala global. O processo pode demorar um ano e, até haver uma decisão, as palavras dos responsáveis da empresa deverão ser tão cautelosas como as que ouvi a Moira Gilchrist. “Não fazemos absolutamente qualquer anúncio de redução de risco neste momento. O que temos visto é que o aerossol gerado pelo iQOS, quando comparado com o fumo do cigarro, produz níveis de químicos prejudiciais 90% a 95% inferiores. E, também, quando comparado com os cigarros tradicionais, é entre 90% a 95% menos tóxico. Nos nossos estudos clínicos conseguimos mostrar que os fumadores que mudam para o iQOS alcançam níveis de redução na exposição a esses químicos que se aproximam dos valores dos fumadores que deixaram de fumar completamente. É aqui que estamos em termos científicos e é isso, bem como outros dados, que vamos submeter à FDA”, assegura a cientista, depois de largos minutos a mostrar-me gráficos.

Trouxe os números na bagagem e discuti-os com Emília Nunes, da DGS, que, embora reconhecendo a importância dos estudos feitos pelas empresas de tabaco, lembra que os mesmos não podem fundamentar qualquer decisão ou recomendação em saúde pública. “É sempre necessário realizar a comprovação às alegações da indústria em laboratórios independentes e por equipas de investigação sem qualquer ligação ou conflito de interesses com as indústrias em causa”, alerta. “Muitos estudos de avaliação do risco deste novo produto são realizados tendo por base a comparação com o risco de exposição ao fumo de um cigarro convencional, que é, como sabemos, muito elevado e sem um limiar seguro. Uma redução de 80% ou 90% dessa exposição poderá, ainda assim, não ser suficiente para se poder afirmar que o consumo deste produto é inócuo para a saúde. O conceito de ‘potencialmente menos perigoso’ não deve ser encarado como sinónimo de produto inócuo ou sem risco para a saúde”, explica a médica da DGS.

Emanuel Esteves, o presidente do COPPT, deixa um aviso semelhante: não houve ainda tempo para conclusões definitivas. “Nunca devemos comparar mensagens científicas com mensagens comerciais, ainda que invoquem estudos”, alerta. Depois, lança uma comparação improvável. “Dizer ‘menos substâncias tóxicas’ não pode significar ‘mais seguro’. Dizer ‘menos nocivo’ não pode significar ‘mais saudável’. Isso é demagogia do marketing. O que é mais seguro: cair de um 9º andar ou de um 4º andar? Além disso, pense comigo: não vai além dos 400 graus centígrados... Acha pouco? Cozinhamos até 100 graus centígrados, no forno até 200 graus centígrados, e já há alguns riscos. Mas vamos imaginar que a 400 graus centígrados não se formam outras substâncias nocivas, por exemplo, todos os cancerígenos. Vamos imaginar que o único produto é a nicotina. Será este tabaco mais saudável?”, pergunta. Sim, a resposta é mesmo “não”. E o médico apresenta a seguir a longa lista de problemas provocados pela nicotina (sistema nervoso, cardiovascular, aterosclerose, enfarto agudo do miocárdio...) “Ou seja, poderá matar menos, o que ainda está por provar, mas continua a matar. Poderá causar menor morbilidade, mas continua a causar morbilidade”, lamenta, pouco impressionado com os dados da PMI. “Este assunto ainda carece de melhor conhecimento.”

Ataque ao mercado

Enquanto os estudos independentes não chegam, a PMI avançou em duas dezenas de mercados. “No Japão, com monopólio da tabaqueira japonesa, o iQOS é um sucesso e temos dificuldade em abastecer os pontos de venda”, assegura um responsável da Tabaqueira. O aspeto gadget do aparelho, aliado ao facto de não produzir cinza nem cheiro, não incomodando quem está à volta, é decisivo no mercado nipónico. Em Portugal, os heatsticks estão à venda em todo o país, e quem se der ao trabalho de olhar com atenção notará diferenças em relação ao maço de tabaco normal. Desde logo, a ausência das tão discutidas imagens chocantes (responsáveis por um pequeno boom no sector das caixas para maços de tabaco). Depois, os avisos. Em todos os maços de tabaco tradicionais há duas mensagens: “Fumar mata — deixe já” e “O fumo do tabaco contém mais de 70 substâncias causadoras de cancro”. Os heatsticks dizem algo diferente: “Este produto do tabaco prejudica a sua saúde e cria dependência” e, nas versões mais recentes, “Fumar prejudica gravemente a sua saúde e a dos que o rodeiam” ou “Se está grávida: fumar prejudica a saúde do seu filho”.

A explicação, segundo Emília Nunes, da DGS, está na novidade. “Como ainda não se conhecem as consequências para a saúde a médio e longo prazo decorrentes do consumo de tabaco aquecido, ainda não é possível propor advertências de saúde mais ajustadas aos riscos deste novo produto”, concretiza. O termo “novo produto do tabaco” é importante e refere-se a produtos cujo consumo não produz emissão de fumo ou aerossóis, como o rapé, o tabaco de mascar e o tabaco para uso oral. O tabaco aquecido é uma espécie híbrida. “Embora produzindo um aerossol, não envolve processo de combustão”, diz-me, e por isso ficou fora das advertências reservadas aos cigarros tradicionais na diretiva europeia que regulamenta os avisos colocados nos maços — transposta para a lei portuguesa em agosto de 2015. A rapidez com que tudo acontece é talvez o sinal mais claro de que algo significativo está em curso no mercado global do tabaco.

O cigarro é um negócio peculiar. Metade ou mais de metade dos fumadores deixa de consumir num determinado momento da vida — por decisão própria ou, os nos casos mais graves, por doença ou morte. Nunca como hoje as campanhas antitabaco pareceram tão eficazes e, por outro lado, nunca os expositores das tabacarias apresentaram tanta variedade. O consumo de cigarros tem vindo a cair em países como EUA, Austrália, Grã-Bretanha, Canadá e Itália (ainda que registe ligeiras subidas noutros mercados europeus) — e a reação da indústria parece ser agora apostar em produtos alegadamente menos nocivos e, no limite, capazes até de mexer com o mercado de medicamentos para deixar de fumar (que vale 5,6 milhões de euros em Portugal). Não deixa de ser curioso que a maior parte dos cientistas do Cubo tenha vindo dos principais laboratórios farmacêuticos.

O iQOS pode ser o trunfo maior da Philip Morris, mas não é o único (há mais dispositivos de alegado risco reduzido em estudo e que deverão chegar ao mercado no próximo ano), e a PMI não está sozinha. Empresas como a BAT, a Reynolds e a companhia japonesa Japan Tobacco Inc., além de outras, estão também na corrida do “risco reduzido”, com cigarros eletrónicos e outras novidades que, na ideia de muita gente, além “de não fazerem tão mal, podem até fazer bem” — uma ideia errada. Nunca fazem bem.

Se juntarmos todas as tabaqueiras do mundo, vemos à nossa frente um negócio global que vale anualmente mais de 770 mil milhões de euros — e que não deve abrandar tão cedo. Em África e na Ásia há cada vez mais fumadores e um enorme potencial de crescimento para a indústria. Mais de 100 milhões de homens chineses com menos de 30 anos vão morrer por causa do tabaco, e na Nigéria, em 2025, a OMS prevê que um em cada quatro homens seja fumador. No ano passado, só a americana PMI produziu 850 mil milhões de cigarros. Nos mesmo 12 meses, os cigarros mataram mais de 480 mil pessoas nos EUA. À escala global, morreram 5,4 milhões de pessoas e foram produzidos 6 triliões de cigarros.

Geografia do tabaco

As leis mudam com as fronteiras, tal como as campanhas publicitárias das tabaqueiras e as das organizações antitabaco. A OMS é uma espécie de farol mundial, mas a luz não chega a todo o lado. A geografia do tabaco é uma disciplina complexa.

Há uma semana, na sexta-feira dia 18, estava em Peniche. Descontando o mar, que à custa de ondas enormes pouco tinha a ver com um lago, a verdade é que podia estar em Neuchâtel a olhar pela janela: nuvens negras e chuva. De manhã, passei por uma tabacaria à procura de heatsticks e senti-me no Japão. “Está esgotado. Talvez amanhã”, disse-me o rapaz. “Olhe, se conhecer alguém que queira comprar um aparelho, estou a vender o meu. Está como novo. Eu sei que faz melhor do que o cigarro, mas não me dou bem com aquilo.” “Pode fazer menos mal...”, corrigi. “Isso. Se souber de alguém...”

Tinha combinado encontrar-me à tarde num restaurante com um ex-fumador sueco, mas acabei a entrevistar um suíço ex-fumador. Christoph Berger, 32 anos, de Berna. Falamos ao balcão. Eu com um café na mão, ele com uma cerveja à frente e a namorada ao lado. Entre os dois está a pequena lata redonda que me levara ali e que levara Christoph a deixar de fumar. Snus. Tabaco de colocar na boca. Os pequenos sacos (como sacos de chá) que se põem entre a gengiva e o lábio, durante o tempo necessário para a libertação de nicotina, são um dos produtos de tabaco mais consumidos na Noruega e na Suécia, mas a sua venda está proibida no resto da União Europeia (UE). “A partir de janeiro também vamos deixar de poder comprar na Suíça”, diz-me. “Porquê? Qual é o argumento?”, pergunto-lhe. “Não sei. Teremos de comprar pela internet”, responde. Alguns portugueses fazem o mesmo. Ali ao lado, seis suecos improvisaram uma reunião e têm pouco tempo para conversas. À saída, conto cinco latas de Snus em cima da mesa.

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Dias antes tinha entrevistado Atakan Befrits, sueco de ascendência turca, que é um membro destacado do movimento mundial pela Redução dos Danos do Tabaco. Será também um dos oradores do Fórum Global da Nicotina, que irá decorrer em junho na Polónia (Moira Gilchrist, da PMI, apresentou o iQOS na edição do ano passado). Ou seja, a pessoa indicada para esclarecer o que Christoph não conseguira. “O Snus é usado há mais de cem anos na Suécia, e os níveis de dano para a saúde nesse período são zero. Não é um zero absoluto, nem ninguém diz que é bom para as pessoas, mas estatisticamente o dano causado é zero e, por isso, não é relevante como problema de saúde pública”, explica-me.

Os saquinhos de tabaco são um verdadeiro êxito na Escandinávia, um mercado que gasta mais de 345 milhões de caixas de Snus por ano. Na Noruega, a percentagem de consumidores passou de 3% para 30% desde 2000. “Os noruegueses conseguiram baixar o consumo de cigarros e aumentar o número de fumadores que passaram para o Snus”, assegura Befrits. “Ganharam em todos os campos.”

Como explicar então a proibição em vigor na UE? “Os investigadores que controlam o controlo de tabaco têm uma agenda própria e bem definida. São eles que controlam a informação, não o governo, e têm vindo a fornecer informação que, após dez anos de estudo, sabemos que não é verdadeira. O Snus está proibido na UE porque dizem aos outros países que é muito perigoso, quando na verdade não é estatisticamente perigoso e é mesmo a forma mais eficaz de levar os fumadores suecos a deixarem os cigarros”, diz Atakan Befrits, desculpando-se por parecer demasiado duro e crítico. “Só que sou crítico e tenho de ser duro. Mesmo que no futuro possam vir a descobrir qualquer problema, certamente não representará mais do que 1% dos danos causados pelos cigarros.”

O suíço sentado no bar em Peniche sentia-se melhor fisicamente, mas queixava-se de, por vezes, ficar com tabaco nos dentes. Temia ficar doente, mas descansava-o saber que podia controlar diariamente o estado das gengivas. “Era diferente quando fumava. Não consegues ver os teus pulmões, não é?” Não soube o que responder. Tentei contactar o Ministério da Saúde da Suécia, por e-mail, só que até ao fecho desta edição não chegou qualquer resposta. O médico Emanuel Esteves, do COPPT, está a favor da proibição. “A nicotina é um agente de doenças e morte. É um veneno. Ainda bem que a UE tem esta postura. Pena é que nem todos os países atuem em conformidade. Em alguns aspetos, Portugal é um deles.”

Ao contrário do que parece suceder na Suécia, no Reino Unido as autoridades encontraram nos novos produtos de nicotina uma forma de atacar os produtos de nicotina do costume. Em agosto de 2015, o Public Health England (PHE), organismo responsável pela saúde pública, anunciou os resultados de um estudo independente que encomendara sobre os cigarros eletrónicos (CE), e-cigarettes, como eles dizem. As principais conclusões estão logo a abrir, após a mensagem do responsável máximo do PHE, Duncan Selbie. Segue-se um breve resumo das mesmas: os CE devem ser aconselhados aos fumadores que procuram deixar de fumar — ao fazê-lo, reduz-se o risco de doenças relacionadas com o fumo; os CE não são atraentes para os não-fumadores; os dispensadores de nicotina devem ser à prova de crianças; os peritos acreditam que o CE é 95% mais seguro do que o cigarro tradicional.

A percentagem apresentada no relatório do PHE é demasiado próxima dos valores da PMI para que valha a pena perguntar a Emília Nunes, da DGS, se os dois produtos são comparáveis. “Não, não devem ser equiparados. Embora exista investigação em curso, os riscos do tabaco aquecido são certamente superiores aos decorrentes do consumo de cigarros eletrónicos, devido ao facto de conterem tabaco na sua composição Mas nem uns nem outros são alternativas seguras e isentas de risco para a saúde. A única opção saudável é não consumir este tipo de produtos”, responde a médica portuguesa.

Cinzas do passado

A Europa (Reino Unido incluído, apesar do ‘Brexit’) parece ter sido sempre mais rápida a reagir do que os EUA. Na década de 60, os EUA discutiam ainda a ligação dos cigarros ao cancro do pulmão. Confrontada com sucessivos relatórios científicos desde os anos 50, a indústria procurava reagir. Um dos primeiros passos, depois de negar qualquer risco nos seus produtos, foi envolver-se na pesquisa, criando um comité de investigação científica, liderado por um antigo membro da Sociedade Americana do Cancro, e inundando-o de dinheiro para estudos. O trabalho resultava sempre na mesma conclusão: é preciso mais investigação e não há provas suficientes.

Ao mesmo tempo, o produto cigarro ia mudando. Primeiro veio o filtro, capaz de reduzir substâncias nocivas (que ninguém sabia se existiam, de acordo com a indústria). Com o passar do tempo, as doses de substâncias nocivas foram sendo aumentadas para contrariar o efeito do filtro. “O resultado é que os fumadores que mudavam dos cigarros normais para os cigarros com filtro convencidos de que estavam a reduzir os riscos para a sua saúde estavam por vezes a expor-se a níveis mais altos do que antes”, leio num artigo da “The New Yorker” de novembro de 1963. A seguir chegaram os cigarros de mentol e os anúncios cada vez mais agressivos nos jornais, nas revistas e na televisão...

Enquanto isto acontecia, em 1962, os ingleses proibiram os anúncios a cigarros na televisão antes das 9h da noite e lançaram uma campanha em todas as escolas, clínicas e serviços públicos distribuindo milhões de panfletos com a mensagem: “Antes de fumar, PENSE: os cigarros causam cancro do pulmão”. Nos EUA, queixava-se o autor do tal artigo, nada. Ao fim de dez anos de discussão, e já com uma série de processos em tribunais contra a indústria tabaqueira, as autoridades mantinham-se em silêncio sobre os relatórios com milhares de páginas a alertar para os perigos dos cigarros.

A desconfiança dura até hoje. O passado pesa. Tanto como a memória do outono quando nos mostram o verão. Por que devo acreditar numa empresa que durante décadas negou a verdade, recusou a ideia de que o tabaco matava e agora quer convencer-me de que tem um novo produto que é menos prejudicial? Filtros? Cigarros light? Faço a pergunta aos responsáveis da PMI. “Compreendemos o ceticismo das pessoas, mas acho que a abordagem que temos é absolutamente séria em relação à redução da nocividade do tabaco e acho que os resultados da comercialização e a rapidez com que surgiram é uma indicação da seriedade que colocámos em todo o processo”, responde Moira, acrescentando que gastaram milhões de euros em investigação, que apresentaram os resultados em conferências, que publicaram papers científicos. “O mais difícil de ultrapassar é o ceticismo dos nosso opositores em relação à ciência, aos dados científicos que disponibilizamos e que estão aí para serem revistos por entidades independentes. Todas as opiniões deviam ser escutadas”, adianta um responsável português da Tabaqueira.

A maior biblioteca do mundo sobre tabaco está nos EUA. Mais precisamente na sala 328 (3º piso) do edifício principal da New York Public Library, o Stephen A. Schwarzman, e tem o nome do seu criador, George Arents Jr, sobrinho do dono de uma plantação. (Também pode ser consultada através da internet, como fiz.) George começou a colecionar aos 17 anos, sonhava publicar a história do tabaco. Não lhe faltava material. Vespucio foi o primeiro a escrever sobre a planta, em 1505, depois de ver índios da atual Venezuela picarem folhas, que enrolavam em pequenas bolas, para mastigarem durante as viagens de canoa mais longas. Trinta anos depois, em 1535, os exploradores espanhóis cruzaram-se com os índios do atual Haiti, que inalavam o fumo das folhas a arder. Numa outra tribo, usavam folhas secas, enrolavam-nas em folhas de palmeira e fumavam.

O mergulho na História permite perceber que nada arde pela primeira vez. Em Nova Iorque está um documento, anónimo, de 1604 que arrasa o detestável vício do tabaco e os fumadores. Apesar de faltar uma assinatura, todos acreditam que é do rei James, o mesmo que aumentou a tributação fiscal do tabaco em 4000% para desencorajar o consumo. E resultou durante uns tempos. É de notar que o aumento da carga fiscal sobre os produtos de tabaco é uma das bandeiras da OMS na atualidade. “É a forma mais eficaz de reduzir o consumo”, assegura um relatório de 2015. O risco de aumentar os impostos, claro, é assistir ao crescimento do contrabando de tabaco e à entrada no mercado de produtos não controlados — as autoridades portuguesas fizeram várias apreensões nas últimas semanas. Por outro lado, o Estado deverá arrecadar este ano 1,5 mil milhões de euros.

O maior fumador de todos os tempos foi um holandês chamado Mynheer Van Klaes, que morreu em 1871, com 98 anos, depois de ter fumado, ao longo da vida, quatro toneladas de tabaco (em quantidades devidamente registadas num diário). Cada fumador convidado para o funeral recebeu dois cachimbos e 4,5 quilos de tabaco. Fumaram de forma ininterrupta até deixarem de conseguir ver a cara do vizinho do lado. Mas há um outro nome do passado que importa convocar, Charles G. Pease. Em 1911, a 14 de novembro, o “Los Angeles Evening Herald” contava que o senhor Pease, presidente da Liga Protetora dos Não-Fumadores, defendia que nenhum jovem devia tocar em tabaco até aos 21 anos — provavelmente não o faria depois (os estudos atuais indicam que, passada a adolescência, desce a probabilidade de alguém começar a fumar). Em 1909, tinha apresentado uma petição à cidade de Nova Iorque para que fosse proibido o fumo no metropolitano. Dois anos depois, a regra chegou à superfície. Pease, dentista, tornou-se uma espécie de polícia do tabaco e, entre 1910 e 1913, foi responsável pela detenção de pelo menos 50 pessoas. Uma das histórias mais engraçadas era contada pelos seus discípulos, que um dia lhe falaram de uma mulher que fumava cachimbo desde os 16 anos e morrera aos 106 anos. Pease lamentou e acrescentou: “Que desperdício. Quem sabe a proveta idade a que teria chegado se não fosse aquele cachimbo causador de morte?”

À volta da lei

Quem sabe? Podemos trazer a dúvida umas décadas para diante e um oceano para cá, em jeito de introdução à discussão sobre a nova lei do tabaco. A proposta do Governo, que deu origem a uma discussão inconclusiva no Parlamento e encaminhou o texto para a especialidade, parece ir no sentido mais restritivo. Prevê, entre outras alterações, a proibição de fumar em áreas ao ar livre a cinco metros de parques infantis, hospitais e escolas e equipara os cigarros eletrónicos aos cigarros convencionais, vedando o seu uso em espaços públicos fechados. Não é claro se o tabaco aquecido, a tal bomba que pode vir a mexer com o mercado, está sequer contemplado.

Entrei em contacto com dois deputados da Comissão de Saúde do Parlamento. Um do PS, outro do PSD. Isabel Moreira, a socialista, já tinha escrito um artigo de opinião no Expresso sobre o assunto e usa termos como “autoritária”, “perseguidora” e “péssima” para descrever a proposta do Governo. “O Estado não pode impor às pessoas um modelo do cidadão exemplar no qual todos devamos encaixar”, acrescenta, sem esquecer os novos produtos. “Dizer que a única forma de deixar de fumar é o abstencionismo é não só inadmissível do ponto de vista da proporcionalidade como é uma imposição absurda. A pessoa vicia-se nos cigarros pela nicotina, mas morre pelo fumo. Se quero usar cigarros eletrónicos para consumir nicotina, sem fumo e sem incomodar terceiros, qual é a base constitucional para o Estado interferir?”

Luís Vales, do PSD, igualmente contra o espírito das alterações legislativas avançadas pelo Governo, considera a proposta “restritiva”. “Não será preferível que os atuais consumidores de tabaco tradicional, cujos malefícios são sobejamente conhecidos, migrem para produtos que poderão não apresentar os mesmos riscos?”, questiona. Segue a questão para Emanuel Neves, o médico do COPPT, que responde sem qualquer dúvida. “É urgente que os produtos tenham, realmente, o mesmo tratamento”, esclarece. E esse tratamento, diz-me, é o que está previsto nas alterações propostas pelo Governo.

Mas há algo mais que o médico quer dizer. “Sabe que durante o período de discussão da lei do tabaco a Tabaqueira montou um stand na Assembleia da República, exercendo poderosa campanha junto dos deputados e promovendo os seus novos produtos?” Na verdade, não sabia. Uma pesquisa nos arquivos, contudo, levou-me a um artigo do “Diário de Notícias”, de 20 de outubro último. Além do tabaco, o país político discutia por esses dias os lóbis. E a notícia dizia assim: “Antes, durante e depois do debate parlamentar, um quadro da Tabaqueira Philip Morris International, a maior empresa nacional do sector, sensibilizava nos corredores deputados para a sua causa. (...) O que o referido dirigente fazia nessa tarde nos corredores do Palácio de São Bento chama-se, em linguagem técnica, ‘representação de interesses’. Na linguagem comum, existe outra palavra, em inglês: lobbying. E, no caso presente, o lóbi do tabaco é conhecido...” Contactei a Tabaqueira, e um responsável confirmou a presença. “Após um pedido por escrito, de forma transparente, fomos recebido pelos vários partidos. Uma das audições coincidiu com o dia da votação, outras ocorreram depois. Tudo normal. Mas não houve nenhum stand. Isso é falso”, disse.

Sim e não. A vida de muitos fumadores é assim. Entre um cigarro e o seguinte existe apenas a vontade de deixar. Por vezes, parece que tudo à nossa volta nos fala de cigarros. Aconteceu enquanto escrevia este artigo: a notícia das mutações genéticas, o dia do cancro do pulmão, o último estudo da DGS, até as eleições americanas. Donald Trump, que se gaba de nunca ter bebido ou fumado, vai ser em janeiro o 45º Presidente dos EUA, sucedendo a Barack Obama, que foi capaz de deixar de fumar ao fim de cinco anos, com ajuda de uma terapia à base de nicotina. O homem liderou o ‘mundo livre’ desde 2011 sem tocar num cigarro.

Nesse ano, o filósofo australiano Peter Singer dedicou-lhe um artigo com o provocador título “Devemos banir o tabaco?”, em que discutia os prós e contras de uma proibição total e, também, a liberdade que todos nós temos para nos comportarmos de forma prejudicial para nós. A liberdade de nos fazermos mal. O cigarro é isso, mas não só. Porque há fumadores passivos, porque há produtos do cigarro que ficam no ambiente, além da cinza e da beata. Porque o cigarro é só meu, mas o mal que faz não. A solução definitiva talvez fosse a melhor e, diz Singer, se calhar até os fumadores iam agradecer.

Enviei a Singer um e-mail sobre os novos produtos, sem esperar resposta. Mas ela veio.

“Caro senhor Marques. Por vezes, é correto prevenir que as pessoas se possam prejudicar a si próprias, como é o caso do uso dos cintos de segurança. Depende da gravidade dos danos. Se os novos produtos forem tão prejudiciais para os fumadores como os cigarros tradicionais, então acho que devemos bani-los. Se forem significativamente menos prejudiciais, talvez não.”

Sim e não. No fumo, essa é a questão. b

rmarques@expresso.impresa.pt

O Expresso viajou a convite da Tabaqueira

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Sim e não. A vida de muitos fumadores é assim. Entre um cigarro e o seguinte existe apenas a vontade de deixar. Por vezes, parece que tudo à nossa volta nos fala de cigarros. Aconteceu enquanto escrevia este artigo: a notícia das mutações genéticas, o dia do cancro do pulmão, o último estudo da DGS, até as eleições americanas. Donald Trump, que se gaba de nunca ter bebido ou fumado, vai ser em janeiro o 45º Presidente dos EUA, sucedendo a Barack Obama, que foi capaz de deixar de fumar ao fim de cinco anos, com ajuda de uma terapia à base de nicotina. O homem liderou o ‘mundo livre’ desde 2011 sem tocar num cigarro.

Nesse ano, o filósofo australiano Peter Singer dedicou-lhe um artigo com o provocador título “Devemos banir o tabaco?”, em que discutia os prós e contras de uma proibição total e, também, a liberdade que todos nós temos para nos comportarmos de forma prejudicial para nós. A liberdade de nos fazermos mal. O cigarro é isso, mas não só. Porque há fumadores passivos, porque há produtos do cigarro que ficam no ambiente, além da cinza e da beata. Porque o cigarro é só meu, mas o mal que faz não. A solução definitiva talvez fosse a melhor e, diz Singer, se calhar até os fumadores iam agradecer.

Enviei a Singer um e-mail sobre os novos produtos, sem esperar resposta. Mas ela veio.

“Caro senhor Marques. Por vezes, é correto prevenir que as pessoas se possam prejudicar a si próprias, como é o caso do uso dos cintos de segurança. Depende da gravidade dos danos. Se os novos produtos forem tão prejudiciais para os fumadores como os cigarros tradicionais, então acho que devemos bani-los. Se forem significativamente menos prejudiciais, talvez não.”

Sim e não. No fumo, essa é a questão.

O Expresso viajou a convite da Tabaqueira

Artigo publicado na edição do EXPRESSO de 26 de novembro de 2016

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