Ecografia ao caso do bebé Rodrigo

22-10-2019
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20/10/2019 por Fernanda Câncio

É cedo para ter qualquer opinião sobre a conduta do médico que fez o seguimento da gravidez, mas é tarde para concluir sobre a opacidade deliberada e a falta de sindicância de uma classe que deixa sempre a impressão de um corporativismo imperial. E a desproteção dos cidadãos face a ela.

Oito*. É o número a que se chega fazendo as contas às queixas reportadas pela própria Ordem dos Médicos, ao longo do tempo, contra o obstetra Artur Carvalho.

Em 2011, quando foi noticiado o caso de uma bebé nascida com malformações graves no hospital Amadora-Sintra após a mãe ser seguida por Artur Carvalho, este tinha sido já objeto de duas queixas, às quais se acrescentava a então conhecida; agora, a Ordem diz que existem quatro – supondo-se que a essa deva somar-se a relativa ao bebé Rodrigo, que a 7 de outubro nasceu no Hospital de São Bernardo, em Setúbal, sem olhos, sem nariz e sem parte do crânio e do cérebro.

É uma questão de aritmética. Que pode, claro, estar errada, porque as informações em que assenta são imprecisas. E são-no porquê? Por um único e incompreensível motivo: porque, apesar da gravidade da situação e do alarme social que causa, a Ordem dos Médicos não achou necessário esclarecer estas duas coisas tão simples: quantas queixas foram até hoje apresentadas contra este clínico, que objeto tiveram e que resultado determinaram.

Não se está, sublinhe-se, a exigir conhecer o pormenor das queixas; apenas se dizem todas respeito a casos como o de Rodrigo e de Luana (a bebé nascida em 2011) ou apenas algumas, ou nenhuma além destas duas. Como é exigível que a Ordem informe sobre quantas queixas deste tipo – malformações só diagnosticadas à nascença – recebeu nos últimos dez anos e que concluiu sobre elas; se deram origem a processos disciplinares e com que resultado, se foi tudo arquivado e porquê.

Quiçá considerará a Ordem que ao dizer o menos possível sobre este assunto combate o sensacionalismo e diminui o alarme social, protegendo o clínico em causa e o prestígio da classe médica. Sucede exatamente o contrário: a pouca informação existente alimenta a suspeita de que todas as queixas contra Artur Carvalho dizem respeito a casos de malformações não detetadas em ecografias, que a Ordem mantém tudo “escondido” e desculpa sempre os seus membros e até que não se pode confiar nos médicos que fazem ecografias.

Podemos mandar as mãos à cabeça: não há certificação para fazer ecografias (ou há, e não é obrigatório tê-la para as fazer); os aparelhos ecográficos podem não ser grande coisa; os relatórios não estão normalizados.

Essa ideia de encobrimento, corporativismo exacerbado e de perigo adensa-se perante afirmações de Luís Graça, atual presidente da Sociedade de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal, ex-presidente do Colégio da Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia da Ordem dos Médicos (2000-2009), à Lusa, segundo as quais há muitos obstetras “a fazerem ecografia, nomeadamente morfológica – que diagnostica malformações – e que não têm competência para isso”.

Segundo Graça, não basta ter a especialidade de obstetrícia para saber fazer e interpretar as ecografias em causa, fundamentais para detetar malformações ou anomalias nos fetos, mas é necessária uma pós-graduação para o efeito. E adianta que enquanto esteve à frente do colégio da especialidade tentou criar “uma competência específica” para a ecografia obstétrica mas que não houve consenso nesse sentido.

A crer em Luís Graça, há mais de dez anos que esta questão foi debatida no seio da Ordem e identificado o problema, porém, incrivelmente, nada foi feito para certificar que não há médicos sem formação a fazer ecografias das quais depende o despiste atempado de anomalias nos fetos.

Isto apesar de uma norma de 2013 da Direção-Geral da Saúde sobre exames ecográficos na gravidez especificar que estes “devem ser executados por médicos com treino específico e devidamente certificados para o efeito por entidade idónea e pela Ordem dos Médicos, devendo ser estabelecido um período de transição para este efeito (…)”.

Aparentemente, estaremos ainda, seis anos depois, em “período de transição”. Significa isso que não existe certificação para ecografia obstétrica? Eis outra questão à qual se esperaria que a Ordem dos Médicos desse resposta. Deveria fazê-lo, obviamente, sem necessidade de ser perguntada sobre isso. Mas, pelo contrário, trata tudo como segredo. Quem esteja mal informado até pode achar que a Ordem é uma organização de direito privado, uma empresa ou uma associação com o objetivo de defender os direitos dos médicos. Porém não; trata-se de uma pessoa coletiva de direito público, como estatuído na Lei n.º 117/2015, que consigna o Estatuto da Ordem dos Médicos. Uma organização na qual o Estado delega o poder não só de acreditar pessoas para o exercício da medicina como de fiscalizar esse exercício, zelando pela sua qualidade e honorabilidade. E que tem a obrigação legal de “contribuir para a defesa da saúde dos cidadãos e dos direitos dos doentes”.

Talvez a Ordem precise de ver na lei que a rege também a obrigação de transparência e esclarecimento que tal estatuto impõe. Até lá, teremos de nos contentar com fazer um puzzle de informações que nos vão chegando de várias origens. Pelas quais ficámos também a saber que nem todos os aparelhos de ecografia atualmente em utilização garantem fiabilidade. Que uma grávida pode ter o azar de ir parar às mãos de alguém que não investiu numa máquina melhor – e que nada a adverte em relação a isso.

Quiçá considerará a Ordem que ao dizer o menos possível sobre este assunto combate o sensacionalismo e diminui o alarme social, protegendo o clínico em causa e o prestígio da classe médica. Sucede exatamente o contrário.

Como ninguém a informa de que uma ecografia morfológica de segundo trimestre feita corretamente deve demorar pelo menos uns 20 minutos. E que no respetivo relatório, de acordo com a citada norma da Direção-Geral da Saúde, deve ser assinalada a normalidade, anormalidade ou não visualização dos órgãos, da face, do perfil, do crânio, da coluna, dos ventrículos cerebrais, e dos genitais externos, e apresentadas medições de todos os segmentos dos membros superiores e inferiores. Mas, infere-se do documento, não será essa a regra, já que este refere dever “ser incentivada a normalização dos relatórios ecográficos a fim de garantir a disponibilização dos vários parâmetros analisados e da sua interpretação, de uma forma equitativa e uniformizada”.

Aqui chegados, podemos mandar as mãos à cabeça: não há certificação para fazer ecografias (ou há, e não é obrigatório tê-la para as fazer); os aparelhos ecográficos podem não ser grande coisa; os relatórios não estão normalizados. Mas há mais. Consultando decisões judiciais sobre casos similares ao de Rodrigo e Luana, descobre-se, por exemplo num acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2014, que não existe obrigação de gravação de todo o procedimento ecográfico (até pode não ser gravado de todo, segundo o que ali se lê) e, portanto, não é obrigatório entregar um DVD com toda a ecografia à grávida. O que significa que se houver um problema pode não haver qualquer meio de prova, ou a prova estar adulterada (por exemplo se só parte do procedimento tiver sido gravada).

Claro – é importante frisar isso – que está tudo por averiguar no caso de Rodrigo. Claro que pode não ter havido má prática nem negligência. E que pode vir a concluir-se que o médico que seguiu a mãe tem a certificação necessária, que o aparelho que usou não está ultrapassado, que os seus relatórios seguem os preceitos ditados pela DGS e que existe até um DVD de todo o procedimento. Mas, a ser assim, sabemo-lo agora, foi por acaso. E por acaso não chega.

* NOTA: atendendo às declarações do bastonário da Ordem dos Médicos na conferência de imprensa que deu a 18 de outubro, serão afinal pelo menos nove as queixas entradas na Ordem, ao longo do tempo, contra o médico Artur Carvalho, a última das quais apresentada pela própria Ordem e dizendo respeito ao bebé Rodrigo.

20/10/2019 por Fernanda Câncio

É cedo para ter qualquer opinião sobre a conduta do médico que fez o seguimento da gravidez, mas é tarde para concluir sobre a opacidade deliberada e a falta de sindicância de uma classe que deixa sempre a impressão de um corporativismo imperial. E a desproteção dos cidadãos face a ela.

Oito*. É o número a que se chega fazendo as contas às queixas reportadas pela própria Ordem dos Médicos, ao longo do tempo, contra o obstetra Artur Carvalho.

Em 2011, quando foi noticiado o caso de uma bebé nascida com malformações graves no hospital Amadora-Sintra após a mãe ser seguida por Artur Carvalho, este tinha sido já objeto de duas queixas, às quais se acrescentava a então conhecida; agora, a Ordem diz que existem quatro – supondo-se que a essa deva somar-se a relativa ao bebé Rodrigo, que a 7 de outubro nasceu no Hospital de São Bernardo, em Setúbal, sem olhos, sem nariz e sem parte do crânio e do cérebro.

É uma questão de aritmética. Que pode, claro, estar errada, porque as informações em que assenta são imprecisas. E são-no porquê? Por um único e incompreensível motivo: porque, apesar da gravidade da situação e do alarme social que causa, a Ordem dos Médicos não achou necessário esclarecer estas duas coisas tão simples: quantas queixas foram até hoje apresentadas contra este clínico, que objeto tiveram e que resultado determinaram.

Não se está, sublinhe-se, a exigir conhecer o pormenor das queixas; apenas se dizem todas respeito a casos como o de Rodrigo e de Luana (a bebé nascida em 2011) ou apenas algumas, ou nenhuma além destas duas. Como é exigível que a Ordem informe sobre quantas queixas deste tipo – malformações só diagnosticadas à nascença – recebeu nos últimos dez anos e que concluiu sobre elas; se deram origem a processos disciplinares e com que resultado, se foi tudo arquivado e porquê.

Quiçá considerará a Ordem que ao dizer o menos possível sobre este assunto combate o sensacionalismo e diminui o alarme social, protegendo o clínico em causa e o prestígio da classe médica. Sucede exatamente o contrário: a pouca informação existente alimenta a suspeita de que todas as queixas contra Artur Carvalho dizem respeito a casos de malformações não detetadas em ecografias, que a Ordem mantém tudo “escondido” e desculpa sempre os seus membros e até que não se pode confiar nos médicos que fazem ecografias.

Podemos mandar as mãos à cabeça: não há certificação para fazer ecografias (ou há, e não é obrigatório tê-la para as fazer); os aparelhos ecográficos podem não ser grande coisa; os relatórios não estão normalizados.

Essa ideia de encobrimento, corporativismo exacerbado e de perigo adensa-se perante afirmações de Luís Graça, atual presidente da Sociedade de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal, ex-presidente do Colégio da Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia da Ordem dos Médicos (2000-2009), à Lusa, segundo as quais há muitos obstetras “a fazerem ecografia, nomeadamente morfológica – que diagnostica malformações – e que não têm competência para isso”.

Segundo Graça, não basta ter a especialidade de obstetrícia para saber fazer e interpretar as ecografias em causa, fundamentais para detetar malformações ou anomalias nos fetos, mas é necessária uma pós-graduação para o efeito. E adianta que enquanto esteve à frente do colégio da especialidade tentou criar “uma competência específica” para a ecografia obstétrica mas que não houve consenso nesse sentido.

A crer em Luís Graça, há mais de dez anos que esta questão foi debatida no seio da Ordem e identificado o problema, porém, incrivelmente, nada foi feito para certificar que não há médicos sem formação a fazer ecografias das quais depende o despiste atempado de anomalias nos fetos.

Isto apesar de uma norma de 2013 da Direção-Geral da Saúde sobre exames ecográficos na gravidez especificar que estes “devem ser executados por médicos com treino específico e devidamente certificados para o efeito por entidade idónea e pela Ordem dos Médicos, devendo ser estabelecido um período de transição para este efeito (…)”.

Aparentemente, estaremos ainda, seis anos depois, em “período de transição”. Significa isso que não existe certificação para ecografia obstétrica? Eis outra questão à qual se esperaria que a Ordem dos Médicos desse resposta. Deveria fazê-lo, obviamente, sem necessidade de ser perguntada sobre isso. Mas, pelo contrário, trata tudo como segredo. Quem esteja mal informado até pode achar que a Ordem é uma organização de direito privado, uma empresa ou uma associação com o objetivo de defender os direitos dos médicos. Porém não; trata-se de uma pessoa coletiva de direito público, como estatuído na Lei n.º 117/2015, que consigna o Estatuto da Ordem dos Médicos. Uma organização na qual o Estado delega o poder não só de acreditar pessoas para o exercício da medicina como de fiscalizar esse exercício, zelando pela sua qualidade e honorabilidade. E que tem a obrigação legal de “contribuir para a defesa da saúde dos cidadãos e dos direitos dos doentes”.

Talvez a Ordem precise de ver na lei que a rege também a obrigação de transparência e esclarecimento que tal estatuto impõe. Até lá, teremos de nos contentar com fazer um puzzle de informações que nos vão chegando de várias origens. Pelas quais ficámos também a saber que nem todos os aparelhos de ecografia atualmente em utilização garantem fiabilidade. Que uma grávida pode ter o azar de ir parar às mãos de alguém que não investiu numa máquina melhor – e que nada a adverte em relação a isso.

Quiçá considerará a Ordem que ao dizer o menos possível sobre este assunto combate o sensacionalismo e diminui o alarme social, protegendo o clínico em causa e o prestígio da classe médica. Sucede exatamente o contrário.

Como ninguém a informa de que uma ecografia morfológica de segundo trimestre feita corretamente deve demorar pelo menos uns 20 minutos. E que no respetivo relatório, de acordo com a citada norma da Direção-Geral da Saúde, deve ser assinalada a normalidade, anormalidade ou não visualização dos órgãos, da face, do perfil, do crânio, da coluna, dos ventrículos cerebrais, e dos genitais externos, e apresentadas medições de todos os segmentos dos membros superiores e inferiores. Mas, infere-se do documento, não será essa a regra, já que este refere dever “ser incentivada a normalização dos relatórios ecográficos a fim de garantir a disponibilização dos vários parâmetros analisados e da sua interpretação, de uma forma equitativa e uniformizada”.

Aqui chegados, podemos mandar as mãos à cabeça: não há certificação para fazer ecografias (ou há, e não é obrigatório tê-la para as fazer); os aparelhos ecográficos podem não ser grande coisa; os relatórios não estão normalizados. Mas há mais. Consultando decisões judiciais sobre casos similares ao de Rodrigo e Luana, descobre-se, por exemplo num acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2014, que não existe obrigação de gravação de todo o procedimento ecográfico (até pode não ser gravado de todo, segundo o que ali se lê) e, portanto, não é obrigatório entregar um DVD com toda a ecografia à grávida. O que significa que se houver um problema pode não haver qualquer meio de prova, ou a prova estar adulterada (por exemplo se só parte do procedimento tiver sido gravada).

Claro – é importante frisar isso – que está tudo por averiguar no caso de Rodrigo. Claro que pode não ter havido má prática nem negligência. E que pode vir a concluir-se que o médico que seguiu a mãe tem a certificação necessária, que o aparelho que usou não está ultrapassado, que os seus relatórios seguem os preceitos ditados pela DGS e que existe até um DVD de todo o procedimento. Mas, a ser assim, sabemo-lo agora, foi por acaso. E por acaso não chega.

* NOTA: atendendo às declarações do bastonário da Ordem dos Médicos na conferência de imprensa que deu a 18 de outubro, serão afinal pelo menos nove as queixas entradas na Ordem, ao longo do tempo, contra o médico Artur Carvalho, a última das quais apresentada pela própria Ordem e dizendo respeito ao bebé Rodrigo.

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