Auto-regulação dos deputados posta à prova na Subcomissão de Ética

05-09-2019
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A Subcomissão de Ética (SE) reúne hoje para apreciar sete casos de deputados à Assembleia da República (AR) que poderão ter infringido o Artigo 21º (Impedimentos) do Estatuto dos Deputados (ED). Na sequência de uma investigação do Jornal Económico, publicada na edição impressa de 17 de março, a SE requereu esclarecimentos a sete deputados (quatro do PS e três do PSD) que detêm participações superiores a 10% no capital social de empresas (ou sociedades de advogados) que, por sua vez, firmaram contratos por ajuste direto com entidades públicas, ao mesmo tempo que os respetivos sócios exercem o seu mandato na AR.

Além de esclarecimentos da parte dos visados, a SE delegou em quatro dos seus membros a tarefa de elaboração de pareceres sobre cada um dos casos. Esses quatro deputados relatores – Fernando Anastácio (PS), Pedro Delgado Alves (PS), Sara Madruga da Costa (PSD) e Paulo Rios de Oliveira (PSD) – já terão entregue os sete pareceres (o prazo de entrega terminou na sexta-feira, dia 31 de março) que serão analisados na reunião de hoje. Como o Jornal Económico avançou na sexta-feira, os deputados relatores e os deputados visados são colegas dos mesmos partidos (PS e PSD). Aliás, Oliveira é ao mesmo tempo deputado relator e um dos visados.

Recorde-se que em causa estão os seguintes deputados: José Rui Cruz (34% da Frutas Cruz II Lda.), Ricardo Bexiga (60% da Ricardo Bexiga, Oliveira e Silva & Associados), Luís Testa (15,39% da Costa, Calado Pina e Associados Lda., através do cônjuge) e Renato Sampaio (15% da Nuno Sampaio – Arquiteto Lda., através do cônjuge), do PS; Fernando Macedo (100% da Virgílio Macedo ROC Unipessoal), Luís Montenegro (50% da Sousa Pinheiro & Montenegro) e Paulo Rios de Oliveira (45% da Rios, Pinho & Cristo), do PSD.

De acordo com o referido Artigo 21º (Impedimentos), é vedado aos deputados “no exercício de atividade de comércio ou indústria, direta ou indiretamente, com o cônjuge não separado de pessoas e bens, por si ou entidade em que detenha participação relevante e designadamente superior a 10% do capital social, celebrar contratos com o Estado e outras pessoas coletivas de direito público, participar em concursos de fornecimento de bens ou serviços, empreitadas ou concessões.”

Estão previstas sanções para estes casos? Segundo o ED, ao verificar que a norma do Artigo 21º foi infringida, a SE poderá notificar o deputado para, no prazo de 30 dias, “pôr termo a tal situação.” Mais, poderá sancioná-lo com “advertência e suspensão do mandato enquanto durar o vício, e por período nunca inferior a 50 dias, bem como a obrigatoriedade de reposição da quantia correspondente à totalidade da remuneração que o titular tenha auferido pelo exercício de funções públicas, desde o início da situação de impedimento.”

“Não tinha forma de o prever”

Ao ser eleito deputado em 2015, Luís Testa (PS) declarou no registo de interesses que tem participações em duas empresas: 33,3% da Up2Com e 21,18% da CCP e Associados. Contudo, não referiu que o cônjuge (em comunhão de adquiridos), Maria Arménia Moreira Testa, detém 15,39% de uma outra empresa – Costa, Calado, Pina e Associados Lda. – que celebrou um contrato por ajuste direto com o Município de Portel, em julho de 2016 (quando Testa já era deputado), visando a “publicitação de eventos, feiras e iniciativas.”

Embora não tenha respondido às questões colocadas pelo Jornal Económico, o deputado Luís Testa (PS) apressou-se a reagir no dia da publicação do artigo (17 de março). “Eu admito que, a ser verdade que esta sociedade tenha celebrado um contrato com uma entidade pública, possa incorrer neste regime de incompatibilidade. Mas, eu também não tinha forma de o prever. A sociedade é que poderá, eventualmente, ter cometido um desrespeito à lei das incompatibilidades, sem meu conhecimento. E portanto, eu não tinha forma de prever que esta sociedade poderia ter celebrado qualquer contrato desta natureza,” alegou Testa, em declarações à Rádio Renascença.

“Eu próprio já pedi à minha mulher que notificasse esta sociedade onde ela tem uma participação ultraminoritária, para dizer que de facto havia disponibilidade, das duas uma: ou alienar a quota ou para que a quota fosse amortizada por parte da sociedade. Nós nunca recebemos qualquer tipo de dividendo por parte desta sociedade e isso pode ser demonstrado através das nossas declarações de rendimentos,” garantiu Testa.

Perante a disponibilidade de Testa para corrigir a situação, assim reconhecendo que violou o Artigo 21º (Impedimentos) do ED, fica a dúvida sobre se a SE irá ou não sancionar o deputado infrator. Nesse sentido, importa salientar “a obrigatoriedade de reposição da quantia correspondente à totalidade da remuneração que o titular tenha auferido pelo exercício de funções públicas, desde o início da situação de impedimento,” estipulada na norma do ED.

A importância de conferir as datas

Quem também não respondeu às questões colocadas pelo Jornal Económico – mas optou por reagir no dia da publicação do artigo – foi Renato Sampaio (PS), ligado ao gabinete de arquitetura do filho. “A minha mulher é sócia do meu filho numa sociedade de arquitetura, mas só tem 8%. Portanto, não tenho nada a esconder e, portanto, está tudo dentro da legalidade,” assegurou Renato Sampaio, citado pela Rádio Renascença.

De facto, no registo de interesses que entregou em junho de 2011, o deputado Renato Sampaio indicou que o cônjuge, Maria Sampaio, detinha uma participação de 15% do capital social da empresa Nuno Sampaio – Arquiteto Lda., sendo os restantes 85% atribuídos ao respetivo filho, Nuno Sampaio. Mais recentemente, no registo de interesses que entregou em outubro de 2015, Renato Sampaio alterou a distribuição do capital social da empresa: 8% para o cônjuge, 92% para o filho.

No entanto, o Jornal Económico consultou o mais recente relatório comercial da empresa (datado de meados de 2016, já com o balanço fechado do ano anterior) e as quotas permanecem inalteradas: 15% para Maria Sampaio, 85% para Nuno Sampaio. Aliás, Maria Sampaio continua a ser apontada como gerente da empresa, a par do filho. E mesmo que a distribuição do capital social tenha sido modificada já em 2016 ou 2017, a verdade é que a maior parte (11 de um total de 15) dos contratos por ajuste direto sinalizados remontam ao período de tempo entre novembro de 2009 e junho de 2015, quando o registo de interesses do deputado Renato Sampaio indicou sempre uma participação de 15% da empresa (através do cônjuge).

Resta saber se a SE vai aceitar a justificação de Renato Sampaio ou conferir a data da efetiva alteração da estrutura acionista da empresa do filho e ter em conta os 11 contratos firmados (no mínimo) antes dessa alteração. Mais uma vez, está em causa “a obrigatoriedade de reposição da quantia correspondente à totalidade da remuneração que o titular tenha auferido pelo exercício de funções públicas, desde o início da situação de impedimento,” de acordo com o ED.

Desde 2009, enquanto Renato Sampaio se manteve sempre na AR como deputado, a empresa Nuno Sampaio – Arquiteto Lda. já obteve 15 contratos por ajuste direto de entidades públicas (Parque Escolar, Administração Regional de Saúde do Norte, Município de Castelo Branco, etc.), faturando um valor global superior a 716 mil euros. O contrato mais avultado remonta a março de 2010, quando a Parque Escolar adjudicou a “elaboração do projeto de arquitetura” de uma escola em Castelo de Paiva por mais de 204 mil euros, sem concurso público.

Trata-se da Escola Básica e Secundária de Castelo de Paiva que custou cerca de 20 milhões de euros e foi concluída em abril de 2016. Menos de um ano depois, já apresentava vários problemas estruturais (como informou recentemente a SIC Notícias). Em janeiro de 2017, a Associação de Pais do Agrupamento de Escolas de Castelo de Paiva denunciou que o sistema de aquecimento não estava a funcionar em várias salas de aula da nova escola, além de “avarias na cantina” e mau funcionamento “do sistema hidráulico das janelas do pavilhão, o que permite a entrada do frio em toda a extensão daquele equipamento,” entre outros defeitos.

De resto, nem todos os projetos públicos atribuídos à Nuno Sampaio – Arquiteto Lda. estão registados no portal Base ou em “Diário da República”. A título de exemplo, o projeto expositivo do novo Museu Nacional dos Coches (que deverá ser inaugurado no dia 20 de maio) é da autoria dos arquitetos Paulo Mendes da Rocha e Nuno Sampaio. O projeto arquitetónico do novo museu foi encomendado a Paulo Mendes da Rocha, MMBB Arquitetos e Bak Gordon Arquitetos, mas Nuno Sampaio acabou por ser integrado na conceção do projeto expositivo.

Questionado sobre esta matéria, Nuno Sampaio dispôs-se a explicar o sucedido. “O arquiteto Paulo Mendes da Rocha, para a elaboração do projeto do novo Museu Nacional dos Coches, formou uma equipa nas diversas áreas do projeto (arquitetura, engenharias, projecto expositivo e design), em Portugal e no Brasil, para que com ele pudessem realizar o respetivo projeto. É sempre assim quando um arquiteto intervém fora do seu território, procura uma equipa de projeto local para apoio na realização. O projeto de arquitetura, tal como referiu, foi realizado por Paulo Mendes da Rocha, MMBB Arquitetos (Brasil) e Bak Gordon Arquitetos (Portugal), equipa formada pelo próprio Mendes da Rocha,” descreveu Nuno Sampaio.

“Eu, tal como a restante equipa, fui convidado pelo Mendes da Rocha, neste caso para elaborar o projeto expositivo. Fui, com ele, co-autor do projeto que elaborámos juntos. Relativamente a este caso, ao projeto expositivo, tratou-se de contratação entre privados,” assegurou o arquiteto. Quanto à data da contratação e aos valores envolvidos, Nuno Sampaio optou por não responder.

Em busca dos contratos públicos referentes aos projetos arquitetónico e expositivo do novo Museu Nacional dos Coches, o Jornal Económico contactou diversas entidades, nomeadamente o Ministério da Cultura, mas não obteve respostas. Com a exceção da Direção-Geral do Património Cultural que informou desde logo que “a contratualização dos projetos” em causa “foi feita em 2008 pelo Turismo de Portugal e pela Parque Expo.” Quanto ao valor pago pela conceção do projeto expositivo, “a museografia foi adjudicada por um valor de 1.118.008,32 euros, acrescido de IVA, sendo o valor bruto de 1.3 milhões de euros. Os custos são os correspondentes à escala e nível de exigência inerente a um empreendimento desta natureza.”

Importa salientar que Renato Sampaio é deputado à AR, ininterruptamente, desde outubro de 1999. Por coincidência, a empresa de arquitetura de Nuno Sampaio (e Maria Sampaio) iniciou a sua atividade cerca de seis meses depois, em abril de 2000.

Regime de exceção para as sociedades de advogados?

Três dos casos sob averiguação envolvem sociedades de advogados: Montenegro, Bexiga e Oliveira. “Estou 100% seguro de que não há nenhuma incompatibilidade ou impedimento,” garantiu Montenegro, no dia em que foi publicada a investigação do Jornal Económico. Na véspera, fonte próxima do líder parlamentar do PSD já tinha revelado a tese de defesa, segundo a qual o Artigo 21º do ED não se aplica a sociedades de advogados, na medida em que são “sociedades civis” que não se enquadram na “atividade de comércio ou indústria.”

No entanto, vários juristas contactados pelo Jornal Económico refutaram essa tese (artigo publicado na edição impressa de 31 de março). Na perspetiva de João Nogueira de Almeida, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, “a atividade de advogado, seja em nome individual, seja por intermédio de sociedades, configura o exercício de uma atividade de prestação de serviços, de natureza económica, caindo assim na proibição constante do Artigo 21º do ED.”

Por sua vez, Nuno Piçarra, professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, aponta no mesmo sentido, embora de uma forma menos peremptória: “Não estranharia que o Artigo 21º tenha sido redigido de modo a excluir do seu âmbito de aplicação o exercício da atividade de advocacia, a qual talvez não possa, em rigor, qualificar-se como ‘atividade de comércio ou indústria, ‘stricto sensu’. Mesmo assim, parece-me pouco convincente, neste contexto, o argumento segundo o qual as sociedades de advogados são sociedades civis para excluir a celebração de contratos com entidades públicas, por deputados que são sócios de firmas de advocacia privada, do âmbito da proibição.”

Piçarra conclui: “Não me parece objetivamente indefensável uma interpretação extensiva desta disposição, de modo a vedar aos deputados a celebração desses contratos. Essa interpretação extensiva parece-me, de resto, conforme à Constituição.”

Entretanto, o Jornal Económico obteve também a apreciação de Diogo Freitas do Amaral, professor catedrático jubilado da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, sobre esta dúvida jurídica. “As sociedades de advogados não são sociedades comerciais, dedicadas ao ‘exercício do comércio ou da indústria’, mas sim sociedades civis, com regime próprio e que têm por objeto o desempenho de uma profissão liberal. Não estão, pois, abrangidas pelo Artigo 21º do ED. Mas deviam estar: como pode um deputado ser independente no exercício do seu mandato se puder ter contratos com o Estado, assinados com o Governo, ou com entidades sujeitas à superintendência e tutela administrativa do Governo ? Impõe-se uma urgente alteração daquela norma,” considera Freitas do Amaral.

As autarquias não têm “nada a ver com o aparelho do Estado”

Outro dos visados, Bexiga, ao ser confrontado com os dados da investigação do Jornal Económico, apresentou uma tese de defesa alternativa. Em vez de invocar a alegada isenção das sociedades de advogados, Bexiga argumentou que o Município de Valongo (que adjudicou um contrato por ajuste direto à firma Ricardo Bexiga, Oliveira e Silva & Associados, em abril de 2016, quando o sócio Bexiga estava em plenas funções na AR) “é uma pessoa coletiva territorial dotada de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas, ao abrigo do princípio da autonomia local. Pertence por isso à administração autónoma e não à administração do Estado e das suas pessoas coletivas, prosseguindo interesses próprios dos respetivos cidadãos e não interesses do Estado.”

“As autarquias são as entidades em que se organizam as comunidades locais, nada tendo a ver com o aparelho do Estado, seja da administração direta seja da administração indireta e das respetivas pessoas coletivas públicas,” acrescentou Bexiga, para depois concluir: “Por estas razões, o impedimento citado na sua comunicação não tem aqui aplicação.”

Na perspetiva de Freitas do Amaral, o argumento de Bexiga não colhe. “Em face do disposto na Constituição e no Código do Procedimento Administrativo, as autarquias locais são, obviamente, pessoas coletivas de direito público. Já é assim, pelo menos, desde a Constituição de 1911. Foi-o também à luz da de 1933. E é-o nos termos da atual Constituição da República Portuguesa, desde 1976. Só por ignorância ou má-fé se pode alegar o contrário,” sublinha Freitas do Amaral.

Bexiga tornou-se deputado em 2015, mantendo a atividade paralela de advogado e administrador da firma Ricardo Bexiga, Oliveira e Silva & Associados, na qual detém 60% do capital social. Em abril de 2016, a firma de Bexiga celebrou um contrato por ajuste direto com o Município de Valongo, por 62 mil euros, visando a aquisição de “serviços de advocacia e demais serviços de natureza jurídica”. Este já é o quarto contrato (totalizando mais de 200 mil euros) que Bexiga obtém do Município de Valongo desde que José Ribeiro, do PS, assumiu a presidência daquela autarquia em 2013.

A Subcomissão de Ética (SE) reúne hoje para apreciar sete casos de deputados à Assembleia da República (AR) que poderão ter infringido o Artigo 21º (Impedimentos) do Estatuto dos Deputados (ED). Na sequência de uma investigação do Jornal Económico, publicada na edição impressa de 17 de março, a SE requereu esclarecimentos a sete deputados (quatro do PS e três do PSD) que detêm participações superiores a 10% no capital social de empresas (ou sociedades de advogados) que, por sua vez, firmaram contratos por ajuste direto com entidades públicas, ao mesmo tempo que os respetivos sócios exercem o seu mandato na AR.

Além de esclarecimentos da parte dos visados, a SE delegou em quatro dos seus membros a tarefa de elaboração de pareceres sobre cada um dos casos. Esses quatro deputados relatores – Fernando Anastácio (PS), Pedro Delgado Alves (PS), Sara Madruga da Costa (PSD) e Paulo Rios de Oliveira (PSD) – já terão entregue os sete pareceres (o prazo de entrega terminou na sexta-feira, dia 31 de março) que serão analisados na reunião de hoje. Como o Jornal Económico avançou na sexta-feira, os deputados relatores e os deputados visados são colegas dos mesmos partidos (PS e PSD). Aliás, Oliveira é ao mesmo tempo deputado relator e um dos visados.

Recorde-se que em causa estão os seguintes deputados: José Rui Cruz (34% da Frutas Cruz II Lda.), Ricardo Bexiga (60% da Ricardo Bexiga, Oliveira e Silva & Associados), Luís Testa (15,39% da Costa, Calado Pina e Associados Lda., através do cônjuge) e Renato Sampaio (15% da Nuno Sampaio – Arquiteto Lda., através do cônjuge), do PS; Fernando Macedo (100% da Virgílio Macedo ROC Unipessoal), Luís Montenegro (50% da Sousa Pinheiro & Montenegro) e Paulo Rios de Oliveira (45% da Rios, Pinho & Cristo), do PSD.

De acordo com o referido Artigo 21º (Impedimentos), é vedado aos deputados “no exercício de atividade de comércio ou indústria, direta ou indiretamente, com o cônjuge não separado de pessoas e bens, por si ou entidade em que detenha participação relevante e designadamente superior a 10% do capital social, celebrar contratos com o Estado e outras pessoas coletivas de direito público, participar em concursos de fornecimento de bens ou serviços, empreitadas ou concessões.”

Estão previstas sanções para estes casos? Segundo o ED, ao verificar que a norma do Artigo 21º foi infringida, a SE poderá notificar o deputado para, no prazo de 30 dias, “pôr termo a tal situação.” Mais, poderá sancioná-lo com “advertência e suspensão do mandato enquanto durar o vício, e por período nunca inferior a 50 dias, bem como a obrigatoriedade de reposição da quantia correspondente à totalidade da remuneração que o titular tenha auferido pelo exercício de funções públicas, desde o início da situação de impedimento.”

“Não tinha forma de o prever”

Ao ser eleito deputado em 2015, Luís Testa (PS) declarou no registo de interesses que tem participações em duas empresas: 33,3% da Up2Com e 21,18% da CCP e Associados. Contudo, não referiu que o cônjuge (em comunhão de adquiridos), Maria Arménia Moreira Testa, detém 15,39% de uma outra empresa – Costa, Calado, Pina e Associados Lda. – que celebrou um contrato por ajuste direto com o Município de Portel, em julho de 2016 (quando Testa já era deputado), visando a “publicitação de eventos, feiras e iniciativas.”

Embora não tenha respondido às questões colocadas pelo Jornal Económico, o deputado Luís Testa (PS) apressou-se a reagir no dia da publicação do artigo (17 de março). “Eu admito que, a ser verdade que esta sociedade tenha celebrado um contrato com uma entidade pública, possa incorrer neste regime de incompatibilidade. Mas, eu também não tinha forma de o prever. A sociedade é que poderá, eventualmente, ter cometido um desrespeito à lei das incompatibilidades, sem meu conhecimento. E portanto, eu não tinha forma de prever que esta sociedade poderia ter celebrado qualquer contrato desta natureza,” alegou Testa, em declarações à Rádio Renascença.

“Eu próprio já pedi à minha mulher que notificasse esta sociedade onde ela tem uma participação ultraminoritária, para dizer que de facto havia disponibilidade, das duas uma: ou alienar a quota ou para que a quota fosse amortizada por parte da sociedade. Nós nunca recebemos qualquer tipo de dividendo por parte desta sociedade e isso pode ser demonstrado através das nossas declarações de rendimentos,” garantiu Testa.

Perante a disponibilidade de Testa para corrigir a situação, assim reconhecendo que violou o Artigo 21º (Impedimentos) do ED, fica a dúvida sobre se a SE irá ou não sancionar o deputado infrator. Nesse sentido, importa salientar “a obrigatoriedade de reposição da quantia correspondente à totalidade da remuneração que o titular tenha auferido pelo exercício de funções públicas, desde o início da situação de impedimento,” estipulada na norma do ED.

A importância de conferir as datas

Quem também não respondeu às questões colocadas pelo Jornal Económico – mas optou por reagir no dia da publicação do artigo – foi Renato Sampaio (PS), ligado ao gabinete de arquitetura do filho. “A minha mulher é sócia do meu filho numa sociedade de arquitetura, mas só tem 8%. Portanto, não tenho nada a esconder e, portanto, está tudo dentro da legalidade,” assegurou Renato Sampaio, citado pela Rádio Renascença.

De facto, no registo de interesses que entregou em junho de 2011, o deputado Renato Sampaio indicou que o cônjuge, Maria Sampaio, detinha uma participação de 15% do capital social da empresa Nuno Sampaio – Arquiteto Lda., sendo os restantes 85% atribuídos ao respetivo filho, Nuno Sampaio. Mais recentemente, no registo de interesses que entregou em outubro de 2015, Renato Sampaio alterou a distribuição do capital social da empresa: 8% para o cônjuge, 92% para o filho.

No entanto, o Jornal Económico consultou o mais recente relatório comercial da empresa (datado de meados de 2016, já com o balanço fechado do ano anterior) e as quotas permanecem inalteradas: 15% para Maria Sampaio, 85% para Nuno Sampaio. Aliás, Maria Sampaio continua a ser apontada como gerente da empresa, a par do filho. E mesmo que a distribuição do capital social tenha sido modificada já em 2016 ou 2017, a verdade é que a maior parte (11 de um total de 15) dos contratos por ajuste direto sinalizados remontam ao período de tempo entre novembro de 2009 e junho de 2015, quando o registo de interesses do deputado Renato Sampaio indicou sempre uma participação de 15% da empresa (através do cônjuge).

Resta saber se a SE vai aceitar a justificação de Renato Sampaio ou conferir a data da efetiva alteração da estrutura acionista da empresa do filho e ter em conta os 11 contratos firmados (no mínimo) antes dessa alteração. Mais uma vez, está em causa “a obrigatoriedade de reposição da quantia correspondente à totalidade da remuneração que o titular tenha auferido pelo exercício de funções públicas, desde o início da situação de impedimento,” de acordo com o ED.

Desde 2009, enquanto Renato Sampaio se manteve sempre na AR como deputado, a empresa Nuno Sampaio – Arquiteto Lda. já obteve 15 contratos por ajuste direto de entidades públicas (Parque Escolar, Administração Regional de Saúde do Norte, Município de Castelo Branco, etc.), faturando um valor global superior a 716 mil euros. O contrato mais avultado remonta a março de 2010, quando a Parque Escolar adjudicou a “elaboração do projeto de arquitetura” de uma escola em Castelo de Paiva por mais de 204 mil euros, sem concurso público.

Trata-se da Escola Básica e Secundária de Castelo de Paiva que custou cerca de 20 milhões de euros e foi concluída em abril de 2016. Menos de um ano depois, já apresentava vários problemas estruturais (como informou recentemente a SIC Notícias). Em janeiro de 2017, a Associação de Pais do Agrupamento de Escolas de Castelo de Paiva denunciou que o sistema de aquecimento não estava a funcionar em várias salas de aula da nova escola, além de “avarias na cantina” e mau funcionamento “do sistema hidráulico das janelas do pavilhão, o que permite a entrada do frio em toda a extensão daquele equipamento,” entre outros defeitos.

De resto, nem todos os projetos públicos atribuídos à Nuno Sampaio – Arquiteto Lda. estão registados no portal Base ou em “Diário da República”. A título de exemplo, o projeto expositivo do novo Museu Nacional dos Coches (que deverá ser inaugurado no dia 20 de maio) é da autoria dos arquitetos Paulo Mendes da Rocha e Nuno Sampaio. O projeto arquitetónico do novo museu foi encomendado a Paulo Mendes da Rocha, MMBB Arquitetos e Bak Gordon Arquitetos, mas Nuno Sampaio acabou por ser integrado na conceção do projeto expositivo.

Questionado sobre esta matéria, Nuno Sampaio dispôs-se a explicar o sucedido. “O arquiteto Paulo Mendes da Rocha, para a elaboração do projeto do novo Museu Nacional dos Coches, formou uma equipa nas diversas áreas do projeto (arquitetura, engenharias, projecto expositivo e design), em Portugal e no Brasil, para que com ele pudessem realizar o respetivo projeto. É sempre assim quando um arquiteto intervém fora do seu território, procura uma equipa de projeto local para apoio na realização. O projeto de arquitetura, tal como referiu, foi realizado por Paulo Mendes da Rocha, MMBB Arquitetos (Brasil) e Bak Gordon Arquitetos (Portugal), equipa formada pelo próprio Mendes da Rocha,” descreveu Nuno Sampaio.

“Eu, tal como a restante equipa, fui convidado pelo Mendes da Rocha, neste caso para elaborar o projeto expositivo. Fui, com ele, co-autor do projeto que elaborámos juntos. Relativamente a este caso, ao projeto expositivo, tratou-se de contratação entre privados,” assegurou o arquiteto. Quanto à data da contratação e aos valores envolvidos, Nuno Sampaio optou por não responder.

Em busca dos contratos públicos referentes aos projetos arquitetónico e expositivo do novo Museu Nacional dos Coches, o Jornal Económico contactou diversas entidades, nomeadamente o Ministério da Cultura, mas não obteve respostas. Com a exceção da Direção-Geral do Património Cultural que informou desde logo que “a contratualização dos projetos” em causa “foi feita em 2008 pelo Turismo de Portugal e pela Parque Expo.” Quanto ao valor pago pela conceção do projeto expositivo, “a museografia foi adjudicada por um valor de 1.118.008,32 euros, acrescido de IVA, sendo o valor bruto de 1.3 milhões de euros. Os custos são os correspondentes à escala e nível de exigência inerente a um empreendimento desta natureza.”

Importa salientar que Renato Sampaio é deputado à AR, ininterruptamente, desde outubro de 1999. Por coincidência, a empresa de arquitetura de Nuno Sampaio (e Maria Sampaio) iniciou a sua atividade cerca de seis meses depois, em abril de 2000.

Regime de exceção para as sociedades de advogados?

Três dos casos sob averiguação envolvem sociedades de advogados: Montenegro, Bexiga e Oliveira. “Estou 100% seguro de que não há nenhuma incompatibilidade ou impedimento,” garantiu Montenegro, no dia em que foi publicada a investigação do Jornal Económico. Na véspera, fonte próxima do líder parlamentar do PSD já tinha revelado a tese de defesa, segundo a qual o Artigo 21º do ED não se aplica a sociedades de advogados, na medida em que são “sociedades civis” que não se enquadram na “atividade de comércio ou indústria.”

No entanto, vários juristas contactados pelo Jornal Económico refutaram essa tese (artigo publicado na edição impressa de 31 de março). Na perspetiva de João Nogueira de Almeida, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, “a atividade de advogado, seja em nome individual, seja por intermédio de sociedades, configura o exercício de uma atividade de prestação de serviços, de natureza económica, caindo assim na proibição constante do Artigo 21º do ED.”

Por sua vez, Nuno Piçarra, professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, aponta no mesmo sentido, embora de uma forma menos peremptória: “Não estranharia que o Artigo 21º tenha sido redigido de modo a excluir do seu âmbito de aplicação o exercício da atividade de advocacia, a qual talvez não possa, em rigor, qualificar-se como ‘atividade de comércio ou indústria, ‘stricto sensu’. Mesmo assim, parece-me pouco convincente, neste contexto, o argumento segundo o qual as sociedades de advogados são sociedades civis para excluir a celebração de contratos com entidades públicas, por deputados que são sócios de firmas de advocacia privada, do âmbito da proibição.”

Piçarra conclui: “Não me parece objetivamente indefensável uma interpretação extensiva desta disposição, de modo a vedar aos deputados a celebração desses contratos. Essa interpretação extensiva parece-me, de resto, conforme à Constituição.”

Entretanto, o Jornal Económico obteve também a apreciação de Diogo Freitas do Amaral, professor catedrático jubilado da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, sobre esta dúvida jurídica. “As sociedades de advogados não são sociedades comerciais, dedicadas ao ‘exercício do comércio ou da indústria’, mas sim sociedades civis, com regime próprio e que têm por objeto o desempenho de uma profissão liberal. Não estão, pois, abrangidas pelo Artigo 21º do ED. Mas deviam estar: como pode um deputado ser independente no exercício do seu mandato se puder ter contratos com o Estado, assinados com o Governo, ou com entidades sujeitas à superintendência e tutela administrativa do Governo ? Impõe-se uma urgente alteração daquela norma,” considera Freitas do Amaral.

As autarquias não têm “nada a ver com o aparelho do Estado”

Outro dos visados, Bexiga, ao ser confrontado com os dados da investigação do Jornal Económico, apresentou uma tese de defesa alternativa. Em vez de invocar a alegada isenção das sociedades de advogados, Bexiga argumentou que o Município de Valongo (que adjudicou um contrato por ajuste direto à firma Ricardo Bexiga, Oliveira e Silva & Associados, em abril de 2016, quando o sócio Bexiga estava em plenas funções na AR) “é uma pessoa coletiva territorial dotada de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas, ao abrigo do princípio da autonomia local. Pertence por isso à administração autónoma e não à administração do Estado e das suas pessoas coletivas, prosseguindo interesses próprios dos respetivos cidadãos e não interesses do Estado.”

“As autarquias são as entidades em que se organizam as comunidades locais, nada tendo a ver com o aparelho do Estado, seja da administração direta seja da administração indireta e das respetivas pessoas coletivas públicas,” acrescentou Bexiga, para depois concluir: “Por estas razões, o impedimento citado na sua comunicação não tem aqui aplicação.”

Na perspetiva de Freitas do Amaral, o argumento de Bexiga não colhe. “Em face do disposto na Constituição e no Código do Procedimento Administrativo, as autarquias locais são, obviamente, pessoas coletivas de direito público. Já é assim, pelo menos, desde a Constituição de 1911. Foi-o também à luz da de 1933. E é-o nos termos da atual Constituição da República Portuguesa, desde 1976. Só por ignorância ou má-fé se pode alegar o contrário,” sublinha Freitas do Amaral.

Bexiga tornou-se deputado em 2015, mantendo a atividade paralela de advogado e administrador da firma Ricardo Bexiga, Oliveira e Silva & Associados, na qual detém 60% do capital social. Em abril de 2016, a firma de Bexiga celebrou um contrato por ajuste direto com o Município de Valongo, por 62 mil euros, visando a aquisição de “serviços de advocacia e demais serviços de natureza jurídica”. Este já é o quarto contrato (totalizando mais de 200 mil euros) que Bexiga obtém do Município de Valongo desde que José Ribeiro, do PS, assumiu a presidência daquela autarquia em 2013.

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