Comemorações da República

13-02-2017
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Comemorações da República Fantasmas do Centenário por César Príncipe [*] Encerraram-se as comemorações da implantação da República. Os actos oficiais e oficiosos foram cinzentos ou sectários. Os historiadores de almanaque, com direito a tempo de pena e de antena, centraram as considerações no anti-clericalismo, na agitação laboral, na instabilidade institucional, no golpismo, no bombismo, no envolvimento na Grande Guerra. À maneira das procissões de 1918, só faltou invocar a pneumónica como sinal divino contra A Velhice do Padre Eterno. O repertório anti-republicano insere-se na ofensiva contra os valores democráticos: uma coisa é não ignorar vacilações, discriminações, abusos, desvios; outra coisa é concluir ou levar a concluir que se tratou de um ciclo intrinsecamente falhado, escamoteando que a Primeira República herdou um Estado de privilégios de sangue, assente na servidão metropolitana e colonial, levado à pré-bancarrota pelo parasitismo da realeza e da nobreza, apostado no analfabetismo em massa, no manejo de uma série de travões civilizacionais. Além de arcar com o preço desta herança e haver padecido de contradições e limitações (desde logo, as decorrentes do perfil burguês da nossa Revolução de Outubro), a Primeira República deparou com a vindicta das forças temporariamente derrotadas: as monarco-confessionais e castrenses, as do atavismo agrário e do proteccionismo mercantil, as da agiotagem de casaca e da incipiência da indústria, que alimentaram sedições, convulsões e campanhas negras. Bastará assinalar que a política republicana não seria acentuadamente anti-clerical se Portugal não fosse um secular feudo de batinas. O anti-clericalismo foi uma réplica ao clericalismo. Lembremos também que o anti-clericalismo não foi um exclusivo da Primeira República, ao contrário do que arenga a ignorância categórica: desde a fundação da nacionalidade que vários reis tiveram conflitos episódicos ou prolongados com a Igreja (papas, cardeais, bispos, clero regular, ordens templárias e monásticas), enquanto outros monarcas e governos (Salazar ostensivamente) associaram a espada à cruz para fortalecer os interesses das partes, cumulando a Igreja de benesses patrimoniais, subvencionais e fiscais e facultando-lhe dispositivos de influência. Não obstante os circunstancialismos e as decepções, o saldo da Primeira República é transferível para os activos do progresso e da democracia: introduziu inovação no aparelho de Estado e numa série de actividades económicas, representou um avanço nos direitos universais e nas liberdades públicas e individuais, abriu espaço ao associativismo popular e à auto-regulação operária, ampliou a rede educativa, criou uma estética da mudança, alargou o mapa não monárquico e não teocrático, deixando sementes para a tenaz luta contra o fascismo e contribuindo à distância para um modelo superior de libertação: a Revolução de Abril. Revolução que também tem sido alvo de desgaste de imagem e desvios do percurso libertário e igualitário. A Primeira República sofreu o maior golpe em 28 de Maio de 1926. O recolher obrigatório da cidadania foi prorrogado por 48 anos. A Terceira República sofreu o maior golpe em 25 de Novembro de 1975. Desde então, a democracia empobreceu nas quatro vertentes: política, económica, social, cultural. Propomos um ângulo de visão, não apenas do período republicano inaugural, mas dos três períodos, através de Seis Retratos de Seis Fantasmas: os que mais assombraram as expectativas de 1910/1974.

A Monarquia vigorou de 1128 a 1910. A República mantém-se há um século, havendo atravessado o Período da Implantação (1910-1926), o Período da Fascização (1926-1974), o Período da Consolidação (1974-2011). Durante este arco temporal, os chamados destinos da pátria tiveram ao leme timoneiros de várias matrizes e de diversos matizes, com destaque para ditadores iluminados pela Providência e bonzos da democracia. Seleccionaremos seis posters da contra-revolução, tendo por base a moldura de pensamento e os indicadores de práticas anti-progresso. Neste arco histórico, a República ficou marcada por duas revoluções, inicialmente bem sucedidas (1910/1974) e três contra-revoluções, geralmente melhor sucedidas (1917/1926/1975). O critério do portfólio baseia-se no nível de frustração das aspirações populares e subversão dos valores constitucionais de 1911/1976. Compulsados os tombos, qual não foi a surpresa: os fantasmas-mores da República têm bastante em comum, desde logo, um S: Sidónio, Salazar, Spínola, Soares, Sá, Silva. Curtos reinados e outras regências irromperam (inclusive da família S /Santana, Sócrates) mas os eleitos são dignos de um Álbum das Glórias Portuguesas (Bordalo).

Do primeiro ao último observa-se uma linha político-parental. Além da consonância na consoante, outras afinidades retocam a retratística. Na dinastia S , as liberdades e os direitos das maiorias sofreram acentuadas coarctações ou supressões. Uns achar-se-ão identificados com esta concepção de exclusão e de privilégio. Haverá também numerosos portugueses com razão de pergunta: que reais entidades realmente serviram ou servem estes actores da res publica ? Que redes autóctones e internacionais os amparam? Quem transformou um Estado de Cidadãos num Estado de Clientes, um Estado de Direito num Estado de Direita? No Estado não há isenção. Há opção. No nosso juízo, o Grupo dos Seis fez a sua opção. Acentuou os traços do Estado patronal-classista, obedecendo a uma palavra de ordem: o máximo poder aos poderosos. Com tal linhagem de raiz e realinhamento oligárquico, a República perdeu suporte nacional e radicalidade crítica e passou a rever em baixa os objectivos de um desenvolvimento socialmente equilibrado e constitucionalmente escorado. Os predadores de grande porte reconquistaram e expandiram os territórios de caça, desalojaram os defensores da polis, asseguraram a proliferação e a impunidade da plutocracia. A venda a retalho da soberania nacional, a legislação à peça e à medida de grupos de assalto sistémico, a primazia do privado na ponderação do público, a aposta no défice cívico, a escolarização de elites vorazes, o autoritarismo de caserna, cátedra, casta e camarilha – ultrajam a ética republicana e ofendem as práticas constitucionais. Dividiremos, pois, a História da República em períodos dinásticos. Não assentes em perpetuações heráldicas mas em ciclos do Estado Electivo, de facto, ao serviço da economia majestática e da finança imperial.

PERÍODO SIDONISTA Filho de Sidónio Marrocos Pais, notário e secretário judicial e de Rita Silva Pais, doméstica, Sidónio Pais foi oficial do Exército, professor, deputado, diplomata, ministro do Fomento, das Finanças, dos Negócios Estrangeiros, da Guerra, além de presidente da República. Na fase coimbrã, aderiu a uma loja maçónica, demonstrando ser um investidor no que prometia dar. Em 1918, instigou a perseguição a maçons e o assalto a lojas do ramo. Em 5 Dezembro de 1917, encabeçara um golpe contra o governo republicano eleito, proclamando uma República Nova. As novidades vieram de rajada: suspendeu a Constituição que, como deputado constituinte, aprovara; passou a governar por decreto; ignorou a competência legislativa e fiscalizadora do Parlamento; revogou a separação da Igreja do Estado; impôs o estado de sítio; abarrotou as prisões; encheu os tribunais de processos políticos; forçou uma série de personalidades ao exílio, entre elas, o presidente deposto, Bernardino Machado; reinfestou a administração pública de monárquicos.

A visão renovadora era tão estreita que perseguiu monárquicos que manifestavam alguma reserva, entre eles, Aristides de Sousa Mendes, que viria a destacar-se como cônsul em Bordéus, definitivamente ostracizado por Salazar. O auto-fascínio de Sidónio roçou o patético: extinguiu os ministérios do organograma governamental. Nem em ministros delegava ou confiava. Com a passadeira livre, alçou-se a presidente da República e a chefe do Governo. Só admitiu secretários. Fernando Pessoa, numa jaculatória sebastianista, elevou o major a Presidente-Rei . Reinou um ano. Seguir-se-ia um reinado de 48 anos. Sidónio ensaiou uma ditadura de longo prazo. Ambição interrompida por duas balas na estação do Rossio, ao pôr o pé no comboio para o Porto.

O beatério fez romagens, juncou o túmulo de flores, jurou desforra, encomendou missas, reivindicou a canonização. Haveria sinais da esfera celeste: a aparição do Major foi precedida da aparição do Anjo em 1916 e caucionada por aparições da Virgem em 1917. O ambiente estava a pedir um Salvador. Os púlpitos e os jornais de idêntico verbo santificaram o lente-artilheiro, desde a primeira hora. António Sardinha, adepto da Teologia da Opressão, não deixou de ver, na aparição de Sidónio, a intercessão da Virgem Maria . Quanto à Medicina, Egas Moniz, prémio Nobel, tipificou a sidonite como desvario messiânico . Seja como for, o messias do Alto Minho explorou a conjuntura messiânico-mariana. Não lhe faltando a lamiré dos céus, também contou com uma Igreja de raiz inquisitorial e senhorial, um campesinato servil, manhoso e de alfabeto rudimentar, um aparelho burocrático tocado por séculos de venalidade e amestrado em vénias e genuflexões, um patronato fabril e financeiro inquieto com o despertar da consciência do trabalho. Os cadetes de Sidónio também irromperam, emprestando garbo e guarnição ao Salvador . Uma chuva de louros e de pétalas jorrou do céu lusitano durante a passagem e após o passamento de Sidónio: ele era O Grande Português, O Libertador , ombreava com Nuno Álvares Pereira, Infante D. Henrique e Vasco da Gama, D. João I, D. Sebastião e D. João IV, ele foi coroado Napoleão Bonaparte, ele foi consagrado Santo Apóstolo do Ideal e Salvador da Pátria, Predestinado Condutor de Povos, Protector dos Humildes, Bem-Amado e Grande Morto. Rematando a sidoniolatria, Sidónio também provocava outros efeitos magnéticos. Causava desmaios. Por aquele tempo, sem telenovelas luso-tropicais ou revistas cor-de-rosa, as meninas da sociedade e as senhoras de bom porte cultivavam fantasias de quartel.

É inquestionável que, perante este florilégio virtuoso, a República se veja na obrigação de integrar o ciclo de Sidónio nas celebrações do centenário. No propósito de contribuir para os festejos, não se sugere uma avenida em cada cidade e vila com o seu nome. Salazar já tratou da perenização toponímica em 1948, como cuidou de trasladar os despojos para o Mosteiro dos Jerónimos em 1953 e daqui para a Igreja de Santa Engrácia em 1966. Parece-nos que a melhor maneira de resgatar o sidonismo dos assombramentos da República será com um alerta. Os sidónios não acabaram em 1918. Regressaram em 1926. Regressarão sempre, porque é intolerável, para os sidonistas, que os pequenos portugueses de Fernão Lopes e de Soeiro Pereira Gomes tomem conta das ruas e moldem as leis. Assim tem sido. Assim tenderá a ser. SP/Sidónio Pais, caudilho da República Nova e SP/Silva Pais, torcionário do Estado Novo, são dois exemplos do crime político organizado, dois instrumentos da luta de classes. Ambos majores, ambos S, ambos P. Que nos desculpem os bons majores, os bons sidónios, os bons silvas e os bons pais. Quanto a Sidónio, está desculpado e reabilitado, aguardando-se folga de orçamento para um museu na sua terra. Cavaco Silva já se inteirou do projecto. O potencial é promissor. Viana do Castelo e Caminha disputam a paternidade do pastel Sidónio. No meio da querela da doçaria regional, um novo factor competitivo começa a delinear-se: o culto do D. Sebastião de Caminha rivalizará com o da lampreia. O Alto Minho pode perder o comboio, a agricultura e a indústria mas deve apegar-se ao pastel de feijão. Portugal (do Minho aos Açores) organizará excursões à Romaria da Agonia e ao Museu do Santo Apóstolo do Ideal. Estamos a regressar, em passo acelerado, à sopa do Sidónio. Até o Regimento de Cavalaria de Braga disponibilizou homens e viaturas para distribuir 600 rações de combate à fome. Imaginem que Salgueiro Maia, em vez de se dirigir para o Terreiro do Paço e o Largo do Carmo, lhe dava para a Revolução da Marmita. O dia 25 de Abril ter-se-ia limitado a um peditório na Rua da Misericórdia.

POVO A SOPA

O Governo sente que tem de procurar o verdadeiro apoio no sentir e na opinião quase unânime do povo português.

Inauguração da Cozinha da Assistência 5 de Dezembro, Algés, 29/07/1918

PERÍODO SALAZARISTA Filho de António Oliveira e Maria do Resgate, camponeses, António de Oliveira Salazar foi seminarista, professor, deputado, ministro das Finanças, ministro dos Negócios Estrangeiros, Ministro das Colónias, Ministro da Guerra, presidente do Conselho. Como chefe do Governo tutelava os restantes órgãos políticos, policiais, militares, administrativos. Já Sidónio dispensara os ministros. Salazar tolerou-os para repartir tarefas absorventes e manter aparências de colegialidade. Paulo Rodrigues ilustrou lapidarmente o estatuto de ministro: eu apenas sou a caneta de Salazar. O presidente da República, Supremo Magistrado da Nação, foi reduzido a criatura de aparato. Castraram-no e puseram-lhe uma etiqueta: Venerando Chefe de Estado. Salazar depressa verticalizou e usurpou funções e decisões. Na fase de se mostrar aos caçadores de talentos, dramatizou a retórica, elencando imperativos para meter a República nos eixos. Os círculos empresariais e clericais consideram-no o homem certo para operar a transição da ditadura militar para a ditadura civil. O empertigado lente usava botas de campónio e exibia borlas. A nata do conservadorismo jogava nas virtudes da submissão das organizações e das pessoas. Tinha, no entanto, aprendido com o desfecho sidonista. Ao contrário de Sidónio, militar e professor, Salazar encenava a separação dos dois poderes, a abertura de um ciclo da normalização, falando de cátedra para a sociedade, após o pronunciamento das casernas: se soubesses quanto custa mandar, antes preferirias obedecer toda a vida. Com esta filosofia de Estado, verdadeiro RDC/Regulamento de Disciplina Civil, impôs a fábula de predestinado, que Cardoso Pires reduziu a Dinossauro Excelentíssimo.

A cobertura legalista culminou com o embuste da Constituição de 1933. No rasto do ditador de Caminha, que personificou a República Nova, o ditador de Santa Comba personificou o Estado Novo, inspirado na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler. Salazar decretou três dias de luto em honra do führer. Salazar convivia diariamente com a fotografia do duce na secretária. Salazar fez diversos exercícios de mão estendida. Na vigência deste regime policial-confessional, foram suspensas as principais liberdades e garantias; encarcerados dezenas de milhares de cidadãos, centenas em campos de concentração, dezenas assassinados; outros deportados ou exilados; muitos saneados da administração Pública ou despedidos das empresas por pressão da polícia política e da política do Estado Policial. A ditadura apostou na miséria controlada, na ignorância planificada, na propaganda massiva, no terror selectivo, no medo difuso.

Estabeleceu, também, como prioridade ideológica, a celebração da Concordata e do Acordo Missionário com a Santa Sé, retomando o conúbio interrompido pela legalidade laica. Reservou assento na Assembleia Nacional à barretina cardinalícia. O patriarca desempenhava um papel na cenografia do poder. Estado e Igreja tornaram-se parceiros da Domesticação Social/ Política do Espírito. A ditadura, sustentada no tripé económico-financeiro, religioso-propagandístico, militar-policial, impôs o condicionamento mental e industrial, protegeu meia dúzia de grupos/ famílias, conteve a educação média-superior, deixou afundar o país na crise social, na emigração clandestina, na guerra colonial. O regime, que começou por se auto-exaltar como regenerador das finanças públicas e restaurador da credibilidade externa, terminou com 45% do orçamento sorvido pelo problema africano, fazendo de Portugal um estado-pária, orgulhosamente só. Supostamente só também vivia o ditador, mas, de facto, na órbita de uma governanta enciumada e rude. O falso misógino, apresentado como casado com a Pátria, terá sido também um abocanhador de esposas de viris membros do Governo, de viúvas em transe patriótico, de meninagem de orfanato e de bem. Se SP/Sidónio Pais fora vendido como macho-modelo, galã-botifarra, devoto de Aparições da Virgem, OS/Oliveira Salazar conseguiu adaptar o Direito de Pernada, cuidando de pôr o Secretariado de Propaganda a vender Deus, Pátria e Família aos tementes de Deus, devotos da Pátria, defensores da Família.

Regressemos, porém, a outras tramas, ao epílogo da História. Sidónio tombou às mãos de um pistoleiro. Salazar estatelou-se, sem o amparo de uma cadeira, no Forte de Santo António, em 1968. Eis o maior milagre antonino: uma cadeira cometeu um atentado. Crime onomástico. Um antónio ajustou contas com outro. O enviado de Deus sofreu um hematoma intracraniano subdural, jamais se restabelecendo, não cedendo o hematoma à vaga de preces, intervenções cirúrgicas, conferências de sumidades. Com a Revolução de Abril, a efígie, que havia decorado milhares de paredes, ao lado do crucifixo, foi removida. Após intermitentes ensaios de reactivação do culto, a RTP abriu um processo de beatificação em 2007. A estação de 5 de Outubro, Televisão do Estado Republicano, colocou o maior pervertor da República a plebiscito. Os Grandes Portugueses foram a jogo. A lógica das telecomunicações fez o resto. O Excelentíssimo bateu todos os poetas, santos e heróis. Título à altura de quem liderou um Império e deu lições ao mundo.

Tentemos, porém, olhar Sua Excelência com alguma distância. Quem, de facto, em 838 anos de Monarquia e 100 anos de República, mereceria o galardão? Cumpre ao Estado, pacificada a celeuma, um gesto definitivo: acabar com o arrastamento da polémica do Museu de Salazar. Aproveite-se o frémito ou o rescaldo das comemorações. Baixemos a tensão política. Cultivemos o sentimento reparador. Demos lugar à magnanimidade da Ideologia e à objectividade da Paleontologia. Salazar foi categórico: Sei muito bem o que quero - e para onde vou. Respeitemos à letra a divisa e a determinação. Um homem providencial nunca se engana. Encarreguemos das honras fúnebres uma empresa de eventos do Novo Estado. Traslademos o Grande Português, o homo santacombensis, para o Museu da Lourinhã. O próximo 10 de Junho seria uma data de consenso, copiada que foi do Calendário Salazariano. Milhões de potenciais telespectadores sufragariam o préstito. A comunidade científica rejubilaria com um congresso internacional sobre fósseis. O cerimonial ocuparia a agenda mediática. Durante meio ano, a Democracia deixaria de importunar a governação. Viveríamos em Necrocracia. Até os 800 mil desempregados teriam uma oportunidade, cumprindo Serviço Cívico: ladeando o cortejo, batendo palmas a recibo verde, agitando a bandeira que sai à rua nos desafios de futebol, cantando o Hino dos Egrégios. O Último Enterro do Excelentíssimo daria um argumento a Manoel de Oliveira e um Leão de Ouro em Veneza. Igualmente seria de instituir um Prémio de Pintura e Escultura, tendo por mote Paula Rego: Salazar vomitando a Pátria ou A Pátria vomitando Salazar.

PARTICIPAÇÃO NO PRÉSTITO

Todos não somos demais para continuar Portugal.

Manifestação, Terreiro do Paço, 28/05/1941

PERÍODO SPINOLISTA Filho de António Sebastião Spínola, chefe de gabinete de Salazar e de Maria Gabriela Alves, doméstica, genro de um comandante-geral da GNR, António Spínola seguiu a carreira castrense. Germanófilo, integrou, como observador, a Divisão Azul, corpo de tropas nazis que participou na invasão da URSS/cerco de Leninegrado, 1941. Como oficial da GNR, intercambiou modelos e experiências de actuação com a Guardia Civil franquista. Foi comandante na Guerra Colonial em Angola (1961-1963), governador e comandante-chefe na Guiné-Bissau (1968-1973). Apercebeu-se de que o problema africano não tinha solução militar. Procurou substituir Américo Tomás, presidente da República, movendo os cordelinhos de uma operação sem dor. Tentou a mudança mínima, sempre no quadro do regime. Montou, para o efeito, uma máquina de pressão-persuasão, utilizando canais político-militares e de comunicação social. Escreveu um livro de advertência, Portugal e o Futuro, 1974. Mas o núcleo mais impermeável do regime não acolheu as recomendações da via spinolista da evolução na continuidade. Foi destituído de vice-chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas.

Com a Revolução dos Capitães, Spínola reentra, como actor principal, no palco do novo poder, a fim de o regular e controlar. O presidente do Conselho, Marcelo Caetano, refugiado no Quartel do Carmo, solicita a sua presença para o ritual de rendição. É-lhe confiada a presidência da Junta de Salvação Nacional. É nomeado presidente da República pela JSN. O general com guarda-roupa de generalíssimo procura liderar o processo, contendo a mudança nos limites de um golpe palaciano. Impõe igualmente reservas ao programa do MFA, censurando, entre outras expressões, os termos democracia e fascismo. E postula que, em vez de democracia política, se escreva acção do governo. Faz força para poupar a PIDE/DGS, contraria a independência das colónias, defendendo a totalidade intercontinental, empresta a sua capa a grupos económicos beneficiários e servidores da ditadura. Logo no dia 29 de Abril, recebe, na Cova da Moura, José Manuel de Mello, Ricardo Espírito Santo e Miguel Quina, um triunvirato de capitães da indústria e da finança. Com a sociedade civil em dinâmica emancipadora, o cabo-de-guerra sente o tapete a fugir debaixo das botas e conspira. Sob a sua égide, é desencadeada a intentona da maioria silenciosa de 28 de Setembro de 1974. Frustrado o levantamento, abandona o cargo de presidente da República, dois dias depois. Prossegue o reviralho na acção armada de 11 de Março de 1975. Falhado o putsch de Março, escapuliu-se para Espanha. Estende o mapa da conspiração, buscando suportes no Brasil, na Suíça, na Alemanha. É banido das Forças Armadas. Patrocina a criação do ELP/Exército de Libertação de Portugal, organização de cariz terrorista, chefiada por Barbieri Cardoso, subdirector da ex-PIDE/DGS. Tutela, de seguida, o MDLP/Movimento Democrático de Libertação de Portugal, com o mesmo programa. Ambas as organizações se treinam e acoitam na Espanha de Franco. Contam com cumplicidades militares, partidárias, empresariais, clericais. Mário Soares legendou a maquinação incendiária e sangrenta da extrema-direita como indignação genuína. Segundo revelação de Guenter Wallraff (Imprensa, Março de 2010), jornalista que o entrevistou, fazendo-se passar por traficante de armas, AS tencionava eliminar fisicamente os adversários. O saldo de terror aponta para mais de uma centena de atentados a instalações da Esquerda partidária, sindical, social, cultural, a residências e viaturas, bem como à embaixada de Cuba. Registaram-se quatro vítimas mortais (sindicalistas e funcionários diplomáticos).

Após o golpe de 25 de Novembro de 1975, AS é reintegrado nas Forças Armadas; dignificado como chanceler das Antigas Ordens Militares, condecorado com a Grã-Cruz da Ordem Militar da Torre e Espada, elevado à dignidade de Marechal. Mais recentemente, a pretexto do centenário do nascimento, que coincide com o da República, a Câmara de Lisboa, presidida pelo socialista António Costa engalanou uma avenida com o seu nome. À cerimónia presidiu Cavaco Silva, que considerou a homenagem um acto de grande justiça , ele que, enquanto primeiro-ministro, não considerou um acto de simples justiça atribuir uma pensão à viúva de Salgueiro Maia. Política de reabilitação de inimigos e infiltrados da Revolução e de ostracização de capitães e companheiros de Abril, na senda de Mário Soares, que também dá pela alcunha de socialista, ele, compagnon do general de pingalim, a quem forneceu retórica e cobertura nas conspirações e nas reparações. Assim se reintegra mais um Grande Português na normalidade democrática. Ele que só falou em abertura política na fase terminal da ditadura. Ele que só levantou a voz para que ouvissem a sua voz. Ele que nunca se incomodou com a maior silenciosa subjugada pelo fascismo. Ele que só descobriu o Bom Povo Português depois da revolução de Abril haver despertado o Mau Povo Português. Bom seria se porventura despertasse para defender as forças acobertadas atrás do general que olhava o povo de monóculo, que mirava o povo de binóculo, que observava o povo de telescópio.

SETEMBRO NEGRO

A maioria silenciosa do povo português terá de despertar e de se defender.

Reconhecimento da Independência da Guiné, Lisboa, 10/09/2011

PERÍODO SOARISTA Filho de um padre e professor, João Soares, que chegou a ministro da I República e de Elisa Nobre, que se rendeu aos encantos laicos do clérigo, Mário Soares chegou a ministro, primeiro-ministro, presidente da República, eurodeputado. Também foi comunista fugaz, militante do MUD Juvenil/1945. Depressa se apercebeu de que não era homem para grandes ideais. Mais ganharia em ser homem com algumas ideias. Muito ganharia mesmo em ter uma grande ideia: instaurar um novo culto mariano, rivalizando com a devoção a Maria, festejada desde o séc. XII e padroeira de Portugal desde 1646. Ambição que só realizaria tornando-se trunfo de reserva da burguesia nacional e das potências ocidentais. Foi construindo, consequentemente, um palmarés de anti-fascista sóbrio e socialista gold. O antigo regime depressa descodificou o seu estofo de opositor. Aplicou-lhe certas medidas de clausura e desterro, mas evitou penas de eterna segurança ou torturas que lhe desfizessem o nó da gravata. Descontado um apertão do tempo em que foi avaliado como hipotético revolucionário, a inteligência fascista e os seus algozes cedo se aperceberam de que o licenciado Soares não protagonizaria uma evasão temerária dos curros, não organizaria um levantamento de rancho nos quartéis, uma greve do salário mínimo no Barreiro ou da fome máxima no Alentejo, sequer um dia de pesado luto estudantil ou uma manifestação do 1.º de Maio. Os repressores tinham igualmente em linha de desconto que o licenciado fazia parte do elenco alternativo, conservado em banho-maria pelos Aliados do Atlântico Norte.

Havia mútua contenção. O regime até aliviou a secura protocolar. A relação tornou-se gradualmente cavalheiresca. A determinada altura, o licenciado passou a Senhor Doutor. Soares retribuiu. Da fixação de residência em São Tomé (1968-1969), trouxe o conforto do pide simpático. Pides de boas-maneiras nunca foram destacados para custodiar as vítimas dos espancamentos por turnos, do isolamento prolongado, em Peniche, Caxias, no Heroísmo ou nos Campos de Concentração do Tarrafal, Machava ou São Nicolau. Um agente de estimação não tem preço. Soares não poderia mostrar-se senão grato durante toda a vida. Em 1981, no Tribunal de Santa Clara, no decurso do julgamento dos assassinos de Humberto Delgado, cavaqueou efusivamente com Agostinho Tienza e Pereira de Carvalho, ex-dirigentes da PIDE/DGS, ante uma sala atónita, incluindo o colectivo de magistrados. Recorde-se que Soares foi advogado da família do general sem medo. Recorde-se que Pereira de Carvalho foi o dirigente policial que recebeu MS, em 1970, na sede de António Maria Cardoso, dando-lhe oito horas para regressar a Paris, evitando, com esta abertura marcelista, detê-lo. Recorde-se que, na sequência da Revolução do Cravos, tempo de exaltação dos mártires do fascismo, devotos marianos plantaram a figura de Sua Excelência no parlatório da Prisão de Peniche, evocando a passagem do resistente pela masmorra. Sucede que o filho do padre João não afrontou o fascismo ao ponto de merecer tão severa hospedagem. É natural que, consumado o projecto de instalação de uma Pousada de Portugal no corpo da fortaleza, o Pai da Democracia se abalance a reservar uma suite presidencial. Peniche era para casos particularmente sérios. E a respeito da comedida oposição muito se poderia rever. Recorde-se, a fechar o florilégio, que MS manteve contactos com o Governo de Marcelo, tentando uma abertura para a sua pessoa e os seus cortesãos nas costas do conjunto da Oposição Democrática. Recorde-se que, em 1969, depois de haver subscrito uma plataforma de unidade contra o regime, rompeu o acordo e avançou com candidaturas independentes às Legislativas desse ano. Recorde-se o direito à indignação de Armando Bacelar: Não lhe tremeu a mão, sr. dr.!

Após a Revolução de Abril, Mário Nobre Soares depressa deu sinais de descolagem da frente de esquerda. Cinco dias passados sobre o Dia da Liberdade, protagonizou o incidente do 1.º de Maio, abrindo caminho ao empurrão para apanhar um banho de classe trabalhadora. A agenda divisionista prosseguiria, desde os complots político-militares à sabotagem da Unidade Sindical, até à sabotagem e liquidação da Reforma Agrária. Esta contou com a deserção do Conselho de Ministros por parte dos socialistas, aproveitando o PPD para tomar o lugar de esquerda do PS, aprovando a alteração do regime de propriedade e exploração do latifúndio. Dentro do seu partido, além de se auto-suspender, num gesto de desafronta majestática, cortou com os maiores amigos, desde Manuel Serra a Salgado Zenha, de Rui Mateus a Manuel Alegre, nunca havendo perdoado a quem obstaculizasse o seu caminho. Foi transformando amigos em inimigos e inimigos em amigos. Foi cultivando cumplicidades de alto estrondo. Lembre-se a caução do terrorismo de Spínola, o indulto a Ramiro Moreira, operacional do terrorismo, a condecoração do cónego Melo, mentor do terrorismo. Lembre-se que, em 1972, no livro Le Portugal bailloné /Portugal Amordaçado, acusou a Igreja de concubinato com regime de Salazar e, em 1975, solicitou ao patriarca de Lisboa, António Ribeiro, que mobilizasse as paróquias para a manifestação da Fonte Luminosa. Acordo religiosamente respeitado. Lembre-se também o seu apoio ao candidato Soares Carneiro, personagem da direita casernícola, contra Ramalho Eanes. Assinale-se o perfil de Estado nas referências a Cavaco Silva, Você não tem biografia, a Francisco Balsemão, um mestre-escola desastrado, a Nicole Fontaine, dona de casa. São também conhecidos outros episódios: verberou um juiz de Coimbra por não acomodar as leis num caso que lhe dizia respeito; o jornalista Lopes Araújo/RTP foi exilado para os Açores por mandar para o ar uma reportagem de protesto popular; deu um raspanete, estilo enxota-cão, defronte da Comunicação Social, a um agente da GNR, da sua escolta: Ó sr. Guarda, desapareça!; recebeu representantes de 270 associações de emigrantes/França/RFA, descalçando os sapatos e pondo os pés em cima da Mesa de Diálogo. Foi assim Mário. É assim Soares. Para manter a corte, no activo partidário, governamental e presidencial, distribuiu cargos, favores, comendas e viagens; na fase de Senador da República, criou a Fundação Mário Soares, ligada por um cordão umbilical à fazenda pública, por onde já correram milhões de euros. Ideologicamente, não só proclamou, para que as centrais do capitalismo ouvissem, que meteu o socialismo na gaveta, como, na prática, a marca de água do seu exercício de poder se timbrou por cumplicidades, compromissos e alianças à Direita (1978/CDS/1983/PPD/PSD). O que nunca o impediu de dar larga a estribilhos esquerdizantes, adulando a rua, a arraia, nas horas de incerteza e de namoros multitudinários. A nível internacional, o homo nafarrensis mereceu o cognome de homem dos americanos. Só se lhe conhecem duas entidades a que jurou respeito e obediência: a ele próprio e aos USA. De resto, os USA, sempre que uma ditadura esgota o prazo de validade, por regra, têm preparado um soares para a transição de rédea curta. Basta rever o mapa da geopolítica. Ainda no que toca a alinhamentos internacionais, é de listar que, entre os seus favoritos e as suas amizades, se encontram personagens de referência: espiões-golpistas, genocidas-saqueadores, patrocinadores de esquadrões da morte, traidores de revoluções, usurpadores do Estado, corruptos foragidos à Justiça, como Frank Carlucci, Filipe González, Jonas Savimbi, Eden Pastora, Nicolau Ceaucescu, Andrés Pérez, Betino Craxi.

Na esfera económico-social, norteou-se pela recuperação capitalista, destruindo a Reforma Agrária, iniciando o processo de devolução de empresas (Mundet/Facar), dando o tiro de partida das privatizações e desnacionalizações e do proteccionismo de grupos, fazendo emergir, em contraponto, os salários em atraso, o apertar o cinto, a mãozinha do FMI/ lay off. Um empresário ultraconservador, Salvador Caetano, vendo-se na emergência de justificar o apoio a MS/Mário Soares contra FA/Freitas do Amaral, candidato natural da Direita, fez jurisprudência do deve-haver: Devo-lhe uns favores. Na mesma linha, o seu Governo financiou a catedral do megalómano e ultraconservador D. Rafael, bispo de Bragança. Foi neste quadro capitulacionista, classista e negocista que Soares fechou para balanço o seu 25 de Abril, mandou às favas as conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras , engavetou o socialismo e anunciou a laicos e republicanos as aparições marianas da Europa connosco, o milagre das rosas com código de barras. Projecto que o poder real (económico-financeiro) formatou e que o poder formal (político-mediático) vendeu a eleitores, contribuintes e consumidores. Fraude, entretanto, às escâncaras: o poder económico-financeiro entrou no período de pilhagem abrupta de estados, empresas, salários e pensões e o poder político-mediático aí está para aplicar e revender o plano como medidas de austeridade para conter o défice. Défice provocado pelo poder económico-financeiro. Soares via, aplaudia e decidia em nome da esquerda democrática, em prol da Europa connosco e da Sua Glória.

Encerra-se o percurso com uma citação que poderá servir de lápide em qualquer cemitério ideológico. É óbvio que MS é credor de muitos preitos: é indubitavelmente digno de uma arca no Panteão de Santa Engrácia, de uma estatueta votiva num aparador da Casa Branca e de uma réplica de Pai da Democracia no Museu da República de Nafarros.

SUPER-MARXISTA

Eu sou contra o capitalismo.

L`Express, 10/07/1972

PERÍODO SACARNEIRISTA Filho de José Gualberto Sá Carneiro, advogado, que foi deputado da União Nacional de Salazar (única formação representada na Assembleia Nacional) e de Maria Francisca da Costa Leite, que foi viscondessa de Lumbrales e vereadora da Câmara Municipal do Porto, num tempo em que o poder local não era eleito e sobrinho de João da Costa Leite Lumbrales, que foi ministro das principais pastas de Salazar, presidente da Legião e da União Nacional. Este o cordão político-umbilical de Sá Carneiro, Francisco, que franqueou a porta da política institucional, em 1969, pela mão da ANP/Acção Nacional Popular de Marcelo Caetano, ex-UN/União Nacional, integrando a Ala Liberal. Com os companheiros de jornada, procurou, na senda de outras personalidades da evolução na continuidade (nomeadamente de membros da Igreja e das Forças Armadas, da Alta Finança e da Grande Indústria), persuadir o regime a conformar-se com uma abertura que salvaguardasse o fundamental. Nesta ambivalência, a sua Ala apresentou, em 1971, um projecto de revisão da Constituição de 1933. Também gizou um projecto de Lei de Imprensa. SC teve um desempenho frenético na XI Legislatura: 85 intervenções. Até citou Maurice Duverger, prudente constitucionalista francês. Até citou a elegante Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Até levantou a voz contra as arbitrariedades de que eram alvo os presos políticos. Mas o Estado Policial não atendeu a recomendações nem a rogos nem a denúncias. O investimento na Ala Liberal pressupunha exibir um corpo cénico. O presidente do Conselho e arauto da Primavera, Marcelo Caetano, confessaria ao semanário Tempo (1980) que contratara os liberais para um número de animação e simulação: Eu convidei um grupo de gente nova justamente para animar a Assembleia e não dar sempre a impressão de unanimidade. Eles estavam lá para isso. O animoso Sá Carneiro, de resto, manejava uma retórica parlamentar colada ao salazarismo-marcelismo (1970): Muito se falou da novidade desta Assembleia, na realidade profundamente renovada na sua composição E, no entanto, nem a ideia nem a experiência eram novas, pois de longe vinha a defesa, pelo menos teórica, da presença nesta sala, para aumento da liberdade da Assembleia, "de pessoas independentes e desligadas de disciplinas partidárias, com os olhos postos apenas na sua competência, independência de critério e idoneidade moral, bom senso e espírito patriótico", como referia, em 1953, o dr. Salazar. Após algum frenesim, SC resignou, incapaz de educar a ditadura salazarista dentro da ditadura marcelista. Porém, enquanto Miller Guerra se afastava do hemiciclo, agredido a soco pela ala dura, SC despedia-se por carta e votação. Protocolarmente, como seria de esperar de um visconde de Lumbrales. Com todas as formalidades, como seria de esperar de um jurista da ordem estabelecida. As 85 alocuções foram as suas Conversas em Família. Afinal, muito os unia e pouco os dividia. Uma Tentativa de Participação Política (1973), livro do saldar de contas do compromisso histórico do sacarneirismo nascente com o marcelismo decadente, colocava o seu retrato na galeria da pequena dissidência e no cartório da herança da outra senhora. É que havia outras maneiras e vias de participação política, mas SC não tencionava enveredar pelos caminhos nem ombrear com os custos da Oposição Democrática. Contentava-se com uma abertura onde ele coubesse. Mostrou-se em 1969 e retirou-se em 1973. Ficou de atalaia. Em 1974 já discursava à Nação com nova sigla.

Comprovado o êxito da Revolução dos Cravos, no mês seguinte, fundou, com um escol portuense, o PPD, depois PSD ou PPD/PSD, segundo o pendor populista e adaptacionista das lideranças e das circunstâncias. Com um partido no papel e um passado de liberal, ganhou lustro para ministro sem pasta no I Governo Provisório, chefiado por Adelino da Palma Carlos. Andava exultante com a partilha e o perfume do poder: o que tentara e falhara na ditadura conseguia-o em democracia. Em Junho, mostrava-se eufórico perante a Imprensa brasileira: a harmonia conjugal reinava no Governo. Álvaro Cunhal? Mário Soares? Movimento das Forças Armadas? Tem sido efectivamente uma experiência entusiástica, extremamente enriquecedora Temos uma base comum: o programa do Governo do MFA. Temos um desejo comum: institucionalizar a Democracia. Temos um receio comum: o de que as forças da reacção aproveitem qualquer ingenuidade Mas a aceleração do processo revolucionário demonstraria que também se acelerava o processo reaccionário. Enquanto SC vincava, no Atlântico Sul, a base comum, o desejo comum e o receio comum, no Atlântico Norte, a sua base era outra, o seu desejo era outro, o seu receio era outro. As forças do antigamente conspiravam, tendo como placa giratória o primeiro-ministro. Palma Carlos, ligado às grandes corporações (chegou ao 25 de Abril com assento em 20 das maiores empresas), tentou antecipar as eleições para a Constituinte, no denominado golpe constitucional /Manutenção Militar (com Spínola e outros generais da Junta de Salvação Nacional). Passou a produzir legislação de emergência com o propósito de formatar o novo regime. Sentindo a crescer a desconfiança e a rejeição à sua volta, nomeou Sá Carneiro vice-primeiro-ministro (cargo não previsto), colocando-o em vantagem na linha sucessória e SC lestamente mudou as bagagens para S. Bento. Três dias depois, recebeu ordem de despejo do MFA. Base comum ? Não se deslocou ele, com Spínola aos Açores, à revelia dos outros parceiros do Governo e dos Movimentos de Libertação, a fim de negociar com Nixon, presidente dos USA, o destino das colónias? E que modelo de descolonização transportava Sá Carneiro na mente e na mala diplomática? Em 1970, já se avistara com Marcelo Caetano, presidente do Conselho, que recordou (1980): Sá Carneiro Disse estar admirado de eu ter podido avançar tanto em relação ao Ultramar, a tal ponto que no projecto apresentado pelo grupo liberal nada se propunha a mais nesse capítulo.

Foi assim: sempre a animar a diferença e a simular o consenso. Em diversos tempos. Em todos os temas. Em Novembro de 1974, no Congresso do PPD dava vivas ao socialismo. Também a respeito da Constituição (1976/Comércio do Porto) desfazia dúvidas e reafirmava fidelidades: O problema da Constituição não se põe. A partir do momento em que a Constituição está feita é para ser cumprida. SC aplaudiu as nacionalizações, a Reforma Agrária, o controlo operário. Em 1979, atirou para a praça um projecto de revisão, Uma Constituição para os Anos 80, que partia a ossatura e pulverizava a lógica do Texto Fundamental, negando tudo o que proclamara três anos antes. Muita coisa clamou e proclamou. Desencadeou fracturas fora e dentro do partido. Ausentou-se e regressou com ganas reformistas e guinadas restauracionistas. Teve como tesoureiro partidário e confidente o terrorista Ramiro Moreira. Escolheu o general Soares Carneiro, comandante do Campo de Internamento de S. Nicolau (Angola) para candidato à Presidência da República. Sempre a forçar o presente a regressar ao passado. O filme de Sá Carneiro rebobinava nos estúdios da outra senhora. Kaulza de Arriaga, general ultra-direitista, revelaria (1980/ O Retornado ): Em 1972, recusei o convite para me candidatar à Presidência da República pela então ala liberal da Assembleia Nacional, chefiada ou co-chefiada por Sá Carneiro. Sá Carneiro, lançador de candidaturas de generais fascistas em 1972 e 1980, esconjurou a candidatura de Eanes, general democrata, em 1980, SC que também apoiara gostosamente o general Spínola e a contragosto o general Costa Gomes, em 1974. SC/ Diário de Notícias (1979): Bom, essa tradição de militares na Presidência da República é do período do salazarismo e do regime de Marcelo Caetano.

Precisamente em 1980, SC/Sá Carneiro pereceu ao levantar voo. Dirigia-se a um comício de SC/Soares Carneiro no Coliseu portuense. Sofreu um desastre ou um atentado, conforme as orações fúnebres. O PPP/PSD (pela mão do partido, do poder central e local) encheu de fotografias os gabinetes e de monumentos as praças e implantou um vasto culto toponímico. Até o aeroporto de Pedras Rubras foi rebaptizado com a sua graça. Os passageiros e tripulantes são convidados a meditar na tragédia sempre que aterram e descolam. Também a tumba processual de Camarate é oportuna e metodicamente reaberta. Nos 100 anos da República, apenas Sidónio Pais mereceu semelhante onda necrófila. Coincidências: também Sidónio Pais pereceu em Lisboa, a caminho do Porto. Em 1918, SP pôs o pé no estribo do comboio. Em 1980, SC subiu a escada da aeronave. Também SP e SC se destacaram pelo ímpeto e pela obsessão, usando o manobrismo e a volubilidade como arma num país de muita história e de pouca memória.

EPITÁFIO DE UM PRIMEIRO-MINISTRO

Não quero ser primeiro-ministro.

Gulbenkian, 25 de Abril de 1976

PERÍODO SILVACAVAQUISTA Filho de Teodoro Silva e Maria Cavaco, da pequena burguesia rural e comercial louletana (ligada ao cultivo de frutos secos e à venda de combustíveis), Aníbal Cavaco Silva estudou em Boliqueime, Faro, Lisboa e York e leccionou em Lisboa. Passou pela tropa como contabilista. Foi bolseiro e investigador de Economia e Finanças da Fundação Gulbenkian e director de Estatística e Estudos Económicos do Banco de Portugal. Mais foi ou continua a ser: deputado, ministro das Finanças e do Plano, primeiro-ministro, presidente da República. Foi ainda secretário-geral do PSD. Uma data emerge na aceleração e projecção da carreira: 1985. Um facto súbito oferece a oportunidade: falecimento de Mota Pinto. Um evento serve de rampa: Congresso do PSD. Um local assinala o triunfo: Casino da Figueira da Foz. Bateu Rui Machete e João Salgueiro, graças à mão de Eurico de Melo, vice-rei do PSD/Norte, diligente e proficiente angariador de fundos, que se tornou ministro de Estado e da Administração Interna e vice-primeiro-ministro e ministro da Defesa, havendo abandonado este posto em condições obscuras, passando de sustentáculo partidário e pilar governamental a militante silencioso e eurodeputado invisível.

No exercício das funções governativas e presidenciais, o homo boliqueimensis deixou uma marca de executor do neo-liberalismo como economia financeirizada e de passadismo como pauta ideológica. Doutorado pelo thatcherismo-reaganismo, esforçou-se, a partir de 1986, por aplicar a receita testada pela Escola de Chicago no Chile de Pinochet, a partir de 1973: como em Portugal o regime constitucional e o condicionamento democrático não permitiam uma solução casernícola, CS foi pressionando a Lei Fundamental. Barrado, em 1987, por uma moção de censura, dissolvida a AR e convocadas eleições, CS obtém a maioria absoluta. Repetirá a absoluta, em 1991, então coligado. Este suporte confere-lhe campo de subversão para dar largas a uma concepção de Thatcher de calças e Reagan sem chapéu. Entrado Portugal, no seu consulado, na CEE, CS drenaria, durante dez anos, o manancial de fundos para obras públicas, parte delas de aparato ou de desbarato, fazendo crescer o polvo de betão à sombra da árvore das europatacas. Deixem-me trabalhar! Os fundos que não jorraram para infra-estruturas, frequentemente megalómanas ou desconectadas de um Plano Estratégico de Desenvolvimento, foram engordar o sector particular em nome do sector privado, enquanto se desmantelava a indústria pesada e mecânica, se abatia drasticamente o efectivo pesqueiro e se pagava para não produzir na agricultura. Deixem-me trabalhar! Este fontismo fim-de-século XX engordou uma geração de empreiteiros, presenteou uma geração de empreendedores absentistas e fez despontar uma geração de banqueiros cavaquistas. Desde o ouro do Brasil que algumas estirpes não nadavam tanto em dinheiro fácil. Cavaco é o Magnânimo da Europa dos Fundos Perdidos. Mas, ao menos, D. João V, o rei do Mosteiro de Mafra e da Ópera Italiana, não perdia tempo a subir a coqueiros: apreciava saias de freira. Ia ao primor de montar suite de luxe à madre Paula no Convento de Odivelas. Descontado o devocionário paulista, a política de Estado não comportará grandes diferenças. Terão ambos algo de positivo no percurso. D. João V também fez obra, representada pelo emblemático Aqueduto das Águas Livres. Contudo, o que nacionalmente falhou superou o bem realizado. O fausto é muitas vezes prenúncio de bancarrota. João também tinha Secretariado de Propaganda para impressionar a populaça e os salamaleques dos cortesãos. João fazia gala em deslumbrar o papa romano e o imperador chinês. Falecido o monarca da Palhavã e da Patriarcal, dos solenes pontificais, dos coches e dos deboches, não havia disponibilidades de tesouraria para um funeral luzidio, à altura do Rei-Sol Português.

Além da distribuição do euromaná, Cavaco Silva notabilizou-se a privatizar empresas públicas, inclusive por ajuste directo e a preço mínimo, acentuou o desequilíbrio do estatuto laboral face ao patronal, procedeu à revisão da Lei de Imprensa, abrindo a Rádio e a Televisão a grupos mediáticos afectos, retirou o poder vinculativo aos Conselhos de Redacção, criou os regimes fiscais de IRS/IRC, beneficiando a banca e a generalidade das aplicações aforristas e bolsistas. Deixem-me trabalhar! No quer toca ao modelo de Estado, contribuiu, como ninguém, para o que mais tarde classificaria como monstro: para as clientelas partidárias e colaboracionistas, a ética como ramo de negócio, as sobreposições de funções e competências. Miguel Cadilhe, que foi ministro das Finanças do Cavaquistão, reconheceu CS como o verdadeiro pai do monstro, Quanto ao pretenso excesso de funcionários públicos, CS recomendou em tempos a implacável lei da natureza: deixá-los morrer. Mas alguns portugueses tiveram direito a berço dourado. No magnânimo reino do Cavaquistão, fomentou-se o culto dos vencedores, desde logo, dos JEP`s/Jovens de Elevado Potencial. E foi-se revelando o potencial de Oliveiras e Costas, Dias Loureiros, Duartes Limas. O cavaquismo foi uma fábrica de novos-ricos. Alguns dos sinais institucionais desse novo-riquismo traduziram-se na aquisição de uma frota de aviões executivos Falcon, nas comitivas régias e nas despesas colossais da Presidência da República. Deixem-me trabalhar! O Novo SPN/Secretariado de Propaganda Nacional, esse vendia e revendia Portugal como um oásis no meio da desolação e com brios de bom aluno europeu num clube de cábulas. Portugal integrava ou brevemente integraria o pelotão da frente. E agora que jazemos em 2011, no término das evocações republicanas ou da coisa pública, em que se salda o país-ficção do homem do leme ? Bastará passar os olhos pelo mapa continental e insular: as tempestades de areia toldaram o oásis. Verificou-se o incumprimento das regras de contabilidade da Euro-Escola e da Universidade de York e do Instituto Comercial de Lisboa, confirmou-se o endividamento crónico e insustentável, agravou-se o retrocesso económico, alastrou a mancha da pobreza, decretou-se o saque fiscal e social da classe trabalhadora e da classe média. E tão calamitoso como a calamidade económico-social é o drama de Portugal ter vindo a perder soberania e independência de modo célere ao cair no ciclo infernal da dívida e da recessão, nas garras dos prestamistas, dos agiotas, dos batoteiros: da economia de casino. O CS de 2011 é idêntico ao CS de 1985: foi eleito num casino e muito lhe deve Portugal por se haver transformado um casino, onde alguns são senhores das máquinas e das fichas e do tapete verde e outros pagam as paradas do BPN e do BPP e das parcerias público-privadas e das derrapagens orçamentais e dos paraísos fiscais e dos vencimentos provocatórios e das reformas obscenas. Cavaco Silva não pode dizer que não passou por aqui ou que não sabia o que se passava por aqui. Deixem-me trabalhar! Não houve outro timoneiro (com excepção de Salazar) com tal latitude e amplitude de mandato. Também não pode dizer que é humano e errou. Exerceu o magistério da infalibilidade: nunca me engano e raramente tenho dúvidas. E nem precisava de recorrer à Imprensa para se inteirar dos acontecimentos: não leio jornais. York dixit. Chicago diktat.

Já no itinerário democrático, CS homenageou Spínola e agraciou ex-Pides – compreendendo-se que, na ditadura, se tivesse confessado à PIDE, por escrito, integrado no salazarismo. Vocacionado para se integrar na ditadura, negar a pensão à viúva a Salgueiro Maia, Capitão de Abril, foi um acto de continuidade. Como foi um acto de continuidade a Petrogal (empresa pública sob tutela do X Governo Constitucional/CS) haver nomeado Ramiro Moreira para alto cargo em Madrid, para onde se evadira, após condenação a 21 anos de cadeia. Lembre-se que era, na altura, ministro dos Negócios Estrangeiros Pedro Pires de Miranda, ex-presidente da Petrogal, eminência que sentiu necessidade de abandonar a terra lusa no 25 de Abril e no 11 de Março. CS foi apodado de ditador por Belmiro de Azevedo, seu apoiante. CS foi acusado por Miguel Júdice, seu apoiante, de haver destruído o PSD original, de haver aumentado o peso do Estado e de ser autoritário. Acrescentaremos que tratava os ministros por adjuntos. Sidónio Pais só tolerava secretários. Já no Plano Nacional de Leitura, o pai do colossal deslize das contas do Centro Cultural de Belém leu uns livros de contabilidade, economia e finanças. Mesmo assim, troca competitividade por competividade. No restante, confunde Tomás Moro com Thomaz Moore e desconhece os cantos dos Lusíadas. Terá mandado ler ao inquisidor Lara o Evangelho de Saramago?

Apesar do colossal défice literário, nada impede CS de ter um futuro risonho como ficcionista do mundo rural, mundo que tanto ajudou a desertificar e a liquidar. Segundo CS, terão ficado imunes à PAC algumas vacas de elevado potencial. Dir-se-á: que sorte ser boy em Portugal e vaca nos Açores. Isso mesmo. CS redimir-se-á das agruras agrárias. Deliciar-nos-á com o Monólogo da Graciosa. Gil Vicente, esteja onde estiver, orgulhar-se-á por reler, em 2011, o seu Auto de 1502. O novel talento é um português dos grandes em época de ânimos abatidos e credores à perna. Ninguém estranhe a narrativa e o êxtase do narrador: o destino de Portugal sempre esteve dependente do gado: do bravo e do manso. As vacas, então, sempre deram provas de férreo portuguesismo e acrisolado patriotismo. Quem não se recordará da Batalha da Salga, em 1581, dominados por Castela, só faltando submeter a Ilha Terceira? Oitenta vacas desceram dos verdejantes pastos, investiram contra os afoitos desembarcados, desbarataram a invencível armada de Filipe II. Onde falta a carga de cavalaria sempre resta a carga de vacaria. Que fique a lição para Merkel e Sarkozy: as vacas nem sempre se desfazem em sorrisos. No entanto, ver vacas consoladas é um privilégio. Como suma honra é pertencer a uma raça cuja Língua se enriquece cruzando a épica da Terceira e o pitoresco da Graciosa. A alma do Portugal Profundo emerge. Atentemos na importância do vaquismo e do cavaquismo na História da Defesa e da Literatura.

AUTO DO VAQUEIRO

Ontem eu reparava no sorriso das vacas. Estavam satisfeitíssimas olhando o pasto que começava a ficar verdejante.

Imprensa / Rádio/Televisão, 21/09/2011. [*] Escritor/Jornalista

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Comemorações da República Fantasmas do Centenário por César Príncipe [*] Encerraram-se as comemorações da implantação da República. Os actos oficiais e oficiosos foram cinzentos ou sectários. Os historiadores de almanaque, com direito a tempo de pena e de antena, centraram as considerações no anti-clericalismo, na agitação laboral, na instabilidade institucional, no golpismo, no bombismo, no envolvimento na Grande Guerra. À maneira das procissões de 1918, só faltou invocar a pneumónica como sinal divino contra A Velhice do Padre Eterno. O repertório anti-republicano insere-se na ofensiva contra os valores democráticos: uma coisa é não ignorar vacilações, discriminações, abusos, desvios; outra coisa é concluir ou levar a concluir que se tratou de um ciclo intrinsecamente falhado, escamoteando que a Primeira República herdou um Estado de privilégios de sangue, assente na servidão metropolitana e colonial, levado à pré-bancarrota pelo parasitismo da realeza e da nobreza, apostado no analfabetismo em massa, no manejo de uma série de travões civilizacionais. Além de arcar com o preço desta herança e haver padecido de contradições e limitações (desde logo, as decorrentes do perfil burguês da nossa Revolução de Outubro), a Primeira República deparou com a vindicta das forças temporariamente derrotadas: as monarco-confessionais e castrenses, as do atavismo agrário e do proteccionismo mercantil, as da agiotagem de casaca e da incipiência da indústria, que alimentaram sedições, convulsões e campanhas negras. Bastará assinalar que a política republicana não seria acentuadamente anti-clerical se Portugal não fosse um secular feudo de batinas. O anti-clericalismo foi uma réplica ao clericalismo. Lembremos também que o anti-clericalismo não foi um exclusivo da Primeira República, ao contrário do que arenga a ignorância categórica: desde a fundação da nacionalidade que vários reis tiveram conflitos episódicos ou prolongados com a Igreja (papas, cardeais, bispos, clero regular, ordens templárias e monásticas), enquanto outros monarcas e governos (Salazar ostensivamente) associaram a espada à cruz para fortalecer os interesses das partes, cumulando a Igreja de benesses patrimoniais, subvencionais e fiscais e facultando-lhe dispositivos de influência. Não obstante os circunstancialismos e as decepções, o saldo da Primeira República é transferível para os activos do progresso e da democracia: introduziu inovação no aparelho de Estado e numa série de actividades económicas, representou um avanço nos direitos universais e nas liberdades públicas e individuais, abriu espaço ao associativismo popular e à auto-regulação operária, ampliou a rede educativa, criou uma estética da mudança, alargou o mapa não monárquico e não teocrático, deixando sementes para a tenaz luta contra o fascismo e contribuindo à distância para um modelo superior de libertação: a Revolução de Abril. Revolução que também tem sido alvo de desgaste de imagem e desvios do percurso libertário e igualitário. A Primeira República sofreu o maior golpe em 28 de Maio de 1926. O recolher obrigatório da cidadania foi prorrogado por 48 anos. A Terceira República sofreu o maior golpe em 25 de Novembro de 1975. Desde então, a democracia empobreceu nas quatro vertentes: política, económica, social, cultural. Propomos um ângulo de visão, não apenas do período republicano inaugural, mas dos três períodos, através de Seis Retratos de Seis Fantasmas: os que mais assombraram as expectativas de 1910/1974.

A Monarquia vigorou de 1128 a 1910. A República mantém-se há um século, havendo atravessado o Período da Implantação (1910-1926), o Período da Fascização (1926-1974), o Período da Consolidação (1974-2011). Durante este arco temporal, os chamados destinos da pátria tiveram ao leme timoneiros de várias matrizes e de diversos matizes, com destaque para ditadores iluminados pela Providência e bonzos da democracia. Seleccionaremos seis posters da contra-revolução, tendo por base a moldura de pensamento e os indicadores de práticas anti-progresso. Neste arco histórico, a República ficou marcada por duas revoluções, inicialmente bem sucedidas (1910/1974) e três contra-revoluções, geralmente melhor sucedidas (1917/1926/1975). O critério do portfólio baseia-se no nível de frustração das aspirações populares e subversão dos valores constitucionais de 1911/1976. Compulsados os tombos, qual não foi a surpresa: os fantasmas-mores da República têm bastante em comum, desde logo, um S: Sidónio, Salazar, Spínola, Soares, Sá, Silva. Curtos reinados e outras regências irromperam (inclusive da família S /Santana, Sócrates) mas os eleitos são dignos de um Álbum das Glórias Portuguesas (Bordalo).

Do primeiro ao último observa-se uma linha político-parental. Além da consonância na consoante, outras afinidades retocam a retratística. Na dinastia S , as liberdades e os direitos das maiorias sofreram acentuadas coarctações ou supressões. Uns achar-se-ão identificados com esta concepção de exclusão e de privilégio. Haverá também numerosos portugueses com razão de pergunta: que reais entidades realmente serviram ou servem estes actores da res publica ? Que redes autóctones e internacionais os amparam? Quem transformou um Estado de Cidadãos num Estado de Clientes, um Estado de Direito num Estado de Direita? No Estado não há isenção. Há opção. No nosso juízo, o Grupo dos Seis fez a sua opção. Acentuou os traços do Estado patronal-classista, obedecendo a uma palavra de ordem: o máximo poder aos poderosos. Com tal linhagem de raiz e realinhamento oligárquico, a República perdeu suporte nacional e radicalidade crítica e passou a rever em baixa os objectivos de um desenvolvimento socialmente equilibrado e constitucionalmente escorado. Os predadores de grande porte reconquistaram e expandiram os territórios de caça, desalojaram os defensores da polis, asseguraram a proliferação e a impunidade da plutocracia. A venda a retalho da soberania nacional, a legislação à peça e à medida de grupos de assalto sistémico, a primazia do privado na ponderação do público, a aposta no défice cívico, a escolarização de elites vorazes, o autoritarismo de caserna, cátedra, casta e camarilha – ultrajam a ética republicana e ofendem as práticas constitucionais. Dividiremos, pois, a História da República em períodos dinásticos. Não assentes em perpetuações heráldicas mas em ciclos do Estado Electivo, de facto, ao serviço da economia majestática e da finança imperial.

PERÍODO SIDONISTA Filho de Sidónio Marrocos Pais, notário e secretário judicial e de Rita Silva Pais, doméstica, Sidónio Pais foi oficial do Exército, professor, deputado, diplomata, ministro do Fomento, das Finanças, dos Negócios Estrangeiros, da Guerra, além de presidente da República. Na fase coimbrã, aderiu a uma loja maçónica, demonstrando ser um investidor no que prometia dar. Em 1918, instigou a perseguição a maçons e o assalto a lojas do ramo. Em 5 Dezembro de 1917, encabeçara um golpe contra o governo republicano eleito, proclamando uma República Nova. As novidades vieram de rajada: suspendeu a Constituição que, como deputado constituinte, aprovara; passou a governar por decreto; ignorou a competência legislativa e fiscalizadora do Parlamento; revogou a separação da Igreja do Estado; impôs o estado de sítio; abarrotou as prisões; encheu os tribunais de processos políticos; forçou uma série de personalidades ao exílio, entre elas, o presidente deposto, Bernardino Machado; reinfestou a administração pública de monárquicos.

A visão renovadora era tão estreita que perseguiu monárquicos que manifestavam alguma reserva, entre eles, Aristides de Sousa Mendes, que viria a destacar-se como cônsul em Bordéus, definitivamente ostracizado por Salazar. O auto-fascínio de Sidónio roçou o patético: extinguiu os ministérios do organograma governamental. Nem em ministros delegava ou confiava. Com a passadeira livre, alçou-se a presidente da República e a chefe do Governo. Só admitiu secretários. Fernando Pessoa, numa jaculatória sebastianista, elevou o major a Presidente-Rei . Reinou um ano. Seguir-se-ia um reinado de 48 anos. Sidónio ensaiou uma ditadura de longo prazo. Ambição interrompida por duas balas na estação do Rossio, ao pôr o pé no comboio para o Porto.

O beatério fez romagens, juncou o túmulo de flores, jurou desforra, encomendou missas, reivindicou a canonização. Haveria sinais da esfera celeste: a aparição do Major foi precedida da aparição do Anjo em 1916 e caucionada por aparições da Virgem em 1917. O ambiente estava a pedir um Salvador. Os púlpitos e os jornais de idêntico verbo santificaram o lente-artilheiro, desde a primeira hora. António Sardinha, adepto da Teologia da Opressão, não deixou de ver, na aparição de Sidónio, a intercessão da Virgem Maria . Quanto à Medicina, Egas Moniz, prémio Nobel, tipificou a sidonite como desvario messiânico . Seja como for, o messias do Alto Minho explorou a conjuntura messiânico-mariana. Não lhe faltando a lamiré dos céus, também contou com uma Igreja de raiz inquisitorial e senhorial, um campesinato servil, manhoso e de alfabeto rudimentar, um aparelho burocrático tocado por séculos de venalidade e amestrado em vénias e genuflexões, um patronato fabril e financeiro inquieto com o despertar da consciência do trabalho. Os cadetes de Sidónio também irromperam, emprestando garbo e guarnição ao Salvador . Uma chuva de louros e de pétalas jorrou do céu lusitano durante a passagem e após o passamento de Sidónio: ele era O Grande Português, O Libertador , ombreava com Nuno Álvares Pereira, Infante D. Henrique e Vasco da Gama, D. João I, D. Sebastião e D. João IV, ele foi coroado Napoleão Bonaparte, ele foi consagrado Santo Apóstolo do Ideal e Salvador da Pátria, Predestinado Condutor de Povos, Protector dos Humildes, Bem-Amado e Grande Morto. Rematando a sidoniolatria, Sidónio também provocava outros efeitos magnéticos. Causava desmaios. Por aquele tempo, sem telenovelas luso-tropicais ou revistas cor-de-rosa, as meninas da sociedade e as senhoras de bom porte cultivavam fantasias de quartel.

É inquestionável que, perante este florilégio virtuoso, a República se veja na obrigação de integrar o ciclo de Sidónio nas celebrações do centenário. No propósito de contribuir para os festejos, não se sugere uma avenida em cada cidade e vila com o seu nome. Salazar já tratou da perenização toponímica em 1948, como cuidou de trasladar os despojos para o Mosteiro dos Jerónimos em 1953 e daqui para a Igreja de Santa Engrácia em 1966. Parece-nos que a melhor maneira de resgatar o sidonismo dos assombramentos da República será com um alerta. Os sidónios não acabaram em 1918. Regressaram em 1926. Regressarão sempre, porque é intolerável, para os sidonistas, que os pequenos portugueses de Fernão Lopes e de Soeiro Pereira Gomes tomem conta das ruas e moldem as leis. Assim tem sido. Assim tenderá a ser. SP/Sidónio Pais, caudilho da República Nova e SP/Silva Pais, torcionário do Estado Novo, são dois exemplos do crime político organizado, dois instrumentos da luta de classes. Ambos majores, ambos S, ambos P. Que nos desculpem os bons majores, os bons sidónios, os bons silvas e os bons pais. Quanto a Sidónio, está desculpado e reabilitado, aguardando-se folga de orçamento para um museu na sua terra. Cavaco Silva já se inteirou do projecto. O potencial é promissor. Viana do Castelo e Caminha disputam a paternidade do pastel Sidónio. No meio da querela da doçaria regional, um novo factor competitivo começa a delinear-se: o culto do D. Sebastião de Caminha rivalizará com o da lampreia. O Alto Minho pode perder o comboio, a agricultura e a indústria mas deve apegar-se ao pastel de feijão. Portugal (do Minho aos Açores) organizará excursões à Romaria da Agonia e ao Museu do Santo Apóstolo do Ideal. Estamos a regressar, em passo acelerado, à sopa do Sidónio. Até o Regimento de Cavalaria de Braga disponibilizou homens e viaturas para distribuir 600 rações de combate à fome. Imaginem que Salgueiro Maia, em vez de se dirigir para o Terreiro do Paço e o Largo do Carmo, lhe dava para a Revolução da Marmita. O dia 25 de Abril ter-se-ia limitado a um peditório na Rua da Misericórdia.

POVO A SOPA

O Governo sente que tem de procurar o verdadeiro apoio no sentir e na opinião quase unânime do povo português.

Inauguração da Cozinha da Assistência 5 de Dezembro, Algés, 29/07/1918

PERÍODO SALAZARISTA Filho de António Oliveira e Maria do Resgate, camponeses, António de Oliveira Salazar foi seminarista, professor, deputado, ministro das Finanças, ministro dos Negócios Estrangeiros, Ministro das Colónias, Ministro da Guerra, presidente do Conselho. Como chefe do Governo tutelava os restantes órgãos políticos, policiais, militares, administrativos. Já Sidónio dispensara os ministros. Salazar tolerou-os para repartir tarefas absorventes e manter aparências de colegialidade. Paulo Rodrigues ilustrou lapidarmente o estatuto de ministro: eu apenas sou a caneta de Salazar. O presidente da República, Supremo Magistrado da Nação, foi reduzido a criatura de aparato. Castraram-no e puseram-lhe uma etiqueta: Venerando Chefe de Estado. Salazar depressa verticalizou e usurpou funções e decisões. Na fase de se mostrar aos caçadores de talentos, dramatizou a retórica, elencando imperativos para meter a República nos eixos. Os círculos empresariais e clericais consideram-no o homem certo para operar a transição da ditadura militar para a ditadura civil. O empertigado lente usava botas de campónio e exibia borlas. A nata do conservadorismo jogava nas virtudes da submissão das organizações e das pessoas. Tinha, no entanto, aprendido com o desfecho sidonista. Ao contrário de Sidónio, militar e professor, Salazar encenava a separação dos dois poderes, a abertura de um ciclo da normalização, falando de cátedra para a sociedade, após o pronunciamento das casernas: se soubesses quanto custa mandar, antes preferirias obedecer toda a vida. Com esta filosofia de Estado, verdadeiro RDC/Regulamento de Disciplina Civil, impôs a fábula de predestinado, que Cardoso Pires reduziu a Dinossauro Excelentíssimo.

A cobertura legalista culminou com o embuste da Constituição de 1933. No rasto do ditador de Caminha, que personificou a República Nova, o ditador de Santa Comba personificou o Estado Novo, inspirado na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler. Salazar decretou três dias de luto em honra do führer. Salazar convivia diariamente com a fotografia do duce na secretária. Salazar fez diversos exercícios de mão estendida. Na vigência deste regime policial-confessional, foram suspensas as principais liberdades e garantias; encarcerados dezenas de milhares de cidadãos, centenas em campos de concentração, dezenas assassinados; outros deportados ou exilados; muitos saneados da administração Pública ou despedidos das empresas por pressão da polícia política e da política do Estado Policial. A ditadura apostou na miséria controlada, na ignorância planificada, na propaganda massiva, no terror selectivo, no medo difuso.

Estabeleceu, também, como prioridade ideológica, a celebração da Concordata e do Acordo Missionário com a Santa Sé, retomando o conúbio interrompido pela legalidade laica. Reservou assento na Assembleia Nacional à barretina cardinalícia. O patriarca desempenhava um papel na cenografia do poder. Estado e Igreja tornaram-se parceiros da Domesticação Social/ Política do Espírito. A ditadura, sustentada no tripé económico-financeiro, religioso-propagandístico, militar-policial, impôs o condicionamento mental e industrial, protegeu meia dúzia de grupos/ famílias, conteve a educação média-superior, deixou afundar o país na crise social, na emigração clandestina, na guerra colonial. O regime, que começou por se auto-exaltar como regenerador das finanças públicas e restaurador da credibilidade externa, terminou com 45% do orçamento sorvido pelo problema africano, fazendo de Portugal um estado-pária, orgulhosamente só. Supostamente só também vivia o ditador, mas, de facto, na órbita de uma governanta enciumada e rude. O falso misógino, apresentado como casado com a Pátria, terá sido também um abocanhador de esposas de viris membros do Governo, de viúvas em transe patriótico, de meninagem de orfanato e de bem. Se SP/Sidónio Pais fora vendido como macho-modelo, galã-botifarra, devoto de Aparições da Virgem, OS/Oliveira Salazar conseguiu adaptar o Direito de Pernada, cuidando de pôr o Secretariado de Propaganda a vender Deus, Pátria e Família aos tementes de Deus, devotos da Pátria, defensores da Família.

Regressemos, porém, a outras tramas, ao epílogo da História. Sidónio tombou às mãos de um pistoleiro. Salazar estatelou-se, sem o amparo de uma cadeira, no Forte de Santo António, em 1968. Eis o maior milagre antonino: uma cadeira cometeu um atentado. Crime onomástico. Um antónio ajustou contas com outro. O enviado de Deus sofreu um hematoma intracraniano subdural, jamais se restabelecendo, não cedendo o hematoma à vaga de preces, intervenções cirúrgicas, conferências de sumidades. Com a Revolução de Abril, a efígie, que havia decorado milhares de paredes, ao lado do crucifixo, foi removida. Após intermitentes ensaios de reactivação do culto, a RTP abriu um processo de beatificação em 2007. A estação de 5 de Outubro, Televisão do Estado Republicano, colocou o maior pervertor da República a plebiscito. Os Grandes Portugueses foram a jogo. A lógica das telecomunicações fez o resto. O Excelentíssimo bateu todos os poetas, santos e heróis. Título à altura de quem liderou um Império e deu lições ao mundo.

Tentemos, porém, olhar Sua Excelência com alguma distância. Quem, de facto, em 838 anos de Monarquia e 100 anos de República, mereceria o galardão? Cumpre ao Estado, pacificada a celeuma, um gesto definitivo: acabar com o arrastamento da polémica do Museu de Salazar. Aproveite-se o frémito ou o rescaldo das comemorações. Baixemos a tensão política. Cultivemos o sentimento reparador. Demos lugar à magnanimidade da Ideologia e à objectividade da Paleontologia. Salazar foi categórico: Sei muito bem o que quero - e para onde vou. Respeitemos à letra a divisa e a determinação. Um homem providencial nunca se engana. Encarreguemos das honras fúnebres uma empresa de eventos do Novo Estado. Traslademos o Grande Português, o homo santacombensis, para o Museu da Lourinhã. O próximo 10 de Junho seria uma data de consenso, copiada que foi do Calendário Salazariano. Milhões de potenciais telespectadores sufragariam o préstito. A comunidade científica rejubilaria com um congresso internacional sobre fósseis. O cerimonial ocuparia a agenda mediática. Durante meio ano, a Democracia deixaria de importunar a governação. Viveríamos em Necrocracia. Até os 800 mil desempregados teriam uma oportunidade, cumprindo Serviço Cívico: ladeando o cortejo, batendo palmas a recibo verde, agitando a bandeira que sai à rua nos desafios de futebol, cantando o Hino dos Egrégios. O Último Enterro do Excelentíssimo daria um argumento a Manoel de Oliveira e um Leão de Ouro em Veneza. Igualmente seria de instituir um Prémio de Pintura e Escultura, tendo por mote Paula Rego: Salazar vomitando a Pátria ou A Pátria vomitando Salazar.

PARTICIPAÇÃO NO PRÉSTITO

Todos não somos demais para continuar Portugal.

Manifestação, Terreiro do Paço, 28/05/1941

PERÍODO SPINOLISTA Filho de António Sebastião Spínola, chefe de gabinete de Salazar e de Maria Gabriela Alves, doméstica, genro de um comandante-geral da GNR, António Spínola seguiu a carreira castrense. Germanófilo, integrou, como observador, a Divisão Azul, corpo de tropas nazis que participou na invasão da URSS/cerco de Leninegrado, 1941. Como oficial da GNR, intercambiou modelos e experiências de actuação com a Guardia Civil franquista. Foi comandante na Guerra Colonial em Angola (1961-1963), governador e comandante-chefe na Guiné-Bissau (1968-1973). Apercebeu-se de que o problema africano não tinha solução militar. Procurou substituir Américo Tomás, presidente da República, movendo os cordelinhos de uma operação sem dor. Tentou a mudança mínima, sempre no quadro do regime. Montou, para o efeito, uma máquina de pressão-persuasão, utilizando canais político-militares e de comunicação social. Escreveu um livro de advertência, Portugal e o Futuro, 1974. Mas o núcleo mais impermeável do regime não acolheu as recomendações da via spinolista da evolução na continuidade. Foi destituído de vice-chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas.

Com a Revolução dos Capitães, Spínola reentra, como actor principal, no palco do novo poder, a fim de o regular e controlar. O presidente do Conselho, Marcelo Caetano, refugiado no Quartel do Carmo, solicita a sua presença para o ritual de rendição. É-lhe confiada a presidência da Junta de Salvação Nacional. É nomeado presidente da República pela JSN. O general com guarda-roupa de generalíssimo procura liderar o processo, contendo a mudança nos limites de um golpe palaciano. Impõe igualmente reservas ao programa do MFA, censurando, entre outras expressões, os termos democracia e fascismo. E postula que, em vez de democracia política, se escreva acção do governo. Faz força para poupar a PIDE/DGS, contraria a independência das colónias, defendendo a totalidade intercontinental, empresta a sua capa a grupos económicos beneficiários e servidores da ditadura. Logo no dia 29 de Abril, recebe, na Cova da Moura, José Manuel de Mello, Ricardo Espírito Santo e Miguel Quina, um triunvirato de capitães da indústria e da finança. Com a sociedade civil em dinâmica emancipadora, o cabo-de-guerra sente o tapete a fugir debaixo das botas e conspira. Sob a sua égide, é desencadeada a intentona da maioria silenciosa de 28 de Setembro de 1974. Frustrado o levantamento, abandona o cargo de presidente da República, dois dias depois. Prossegue o reviralho na acção armada de 11 de Março de 1975. Falhado o putsch de Março, escapuliu-se para Espanha. Estende o mapa da conspiração, buscando suportes no Brasil, na Suíça, na Alemanha. É banido das Forças Armadas. Patrocina a criação do ELP/Exército de Libertação de Portugal, organização de cariz terrorista, chefiada por Barbieri Cardoso, subdirector da ex-PIDE/DGS. Tutela, de seguida, o MDLP/Movimento Democrático de Libertação de Portugal, com o mesmo programa. Ambas as organizações se treinam e acoitam na Espanha de Franco. Contam com cumplicidades militares, partidárias, empresariais, clericais. Mário Soares legendou a maquinação incendiária e sangrenta da extrema-direita como indignação genuína. Segundo revelação de Guenter Wallraff (Imprensa, Março de 2010), jornalista que o entrevistou, fazendo-se passar por traficante de armas, AS tencionava eliminar fisicamente os adversários. O saldo de terror aponta para mais de uma centena de atentados a instalações da Esquerda partidária, sindical, social, cultural, a residências e viaturas, bem como à embaixada de Cuba. Registaram-se quatro vítimas mortais (sindicalistas e funcionários diplomáticos).

Após o golpe de 25 de Novembro de 1975, AS é reintegrado nas Forças Armadas; dignificado como chanceler das Antigas Ordens Militares, condecorado com a Grã-Cruz da Ordem Militar da Torre e Espada, elevado à dignidade de Marechal. Mais recentemente, a pretexto do centenário do nascimento, que coincide com o da República, a Câmara de Lisboa, presidida pelo socialista António Costa engalanou uma avenida com o seu nome. À cerimónia presidiu Cavaco Silva, que considerou a homenagem um acto de grande justiça , ele que, enquanto primeiro-ministro, não considerou um acto de simples justiça atribuir uma pensão à viúva de Salgueiro Maia. Política de reabilitação de inimigos e infiltrados da Revolução e de ostracização de capitães e companheiros de Abril, na senda de Mário Soares, que também dá pela alcunha de socialista, ele, compagnon do general de pingalim, a quem forneceu retórica e cobertura nas conspirações e nas reparações. Assim se reintegra mais um Grande Português na normalidade democrática. Ele que só falou em abertura política na fase terminal da ditadura. Ele que só levantou a voz para que ouvissem a sua voz. Ele que nunca se incomodou com a maior silenciosa subjugada pelo fascismo. Ele que só descobriu o Bom Povo Português depois da revolução de Abril haver despertado o Mau Povo Português. Bom seria se porventura despertasse para defender as forças acobertadas atrás do general que olhava o povo de monóculo, que mirava o povo de binóculo, que observava o povo de telescópio.

SETEMBRO NEGRO

A maioria silenciosa do povo português terá de despertar e de se defender.

Reconhecimento da Independência da Guiné, Lisboa, 10/09/2011

PERÍODO SOARISTA Filho de um padre e professor, João Soares, que chegou a ministro da I República e de Elisa Nobre, que se rendeu aos encantos laicos do clérigo, Mário Soares chegou a ministro, primeiro-ministro, presidente da República, eurodeputado. Também foi comunista fugaz, militante do MUD Juvenil/1945. Depressa se apercebeu de que não era homem para grandes ideais. Mais ganharia em ser homem com algumas ideias. Muito ganharia mesmo em ter uma grande ideia: instaurar um novo culto mariano, rivalizando com a devoção a Maria, festejada desde o séc. XII e padroeira de Portugal desde 1646. Ambição que só realizaria tornando-se trunfo de reserva da burguesia nacional e das potências ocidentais. Foi construindo, consequentemente, um palmarés de anti-fascista sóbrio e socialista gold. O antigo regime depressa descodificou o seu estofo de opositor. Aplicou-lhe certas medidas de clausura e desterro, mas evitou penas de eterna segurança ou torturas que lhe desfizessem o nó da gravata. Descontado um apertão do tempo em que foi avaliado como hipotético revolucionário, a inteligência fascista e os seus algozes cedo se aperceberam de que o licenciado Soares não protagonizaria uma evasão temerária dos curros, não organizaria um levantamento de rancho nos quartéis, uma greve do salário mínimo no Barreiro ou da fome máxima no Alentejo, sequer um dia de pesado luto estudantil ou uma manifestação do 1.º de Maio. Os repressores tinham igualmente em linha de desconto que o licenciado fazia parte do elenco alternativo, conservado em banho-maria pelos Aliados do Atlântico Norte.

Havia mútua contenção. O regime até aliviou a secura protocolar. A relação tornou-se gradualmente cavalheiresca. A determinada altura, o licenciado passou a Senhor Doutor. Soares retribuiu. Da fixação de residência em São Tomé (1968-1969), trouxe o conforto do pide simpático. Pides de boas-maneiras nunca foram destacados para custodiar as vítimas dos espancamentos por turnos, do isolamento prolongado, em Peniche, Caxias, no Heroísmo ou nos Campos de Concentração do Tarrafal, Machava ou São Nicolau. Um agente de estimação não tem preço. Soares não poderia mostrar-se senão grato durante toda a vida. Em 1981, no Tribunal de Santa Clara, no decurso do julgamento dos assassinos de Humberto Delgado, cavaqueou efusivamente com Agostinho Tienza e Pereira de Carvalho, ex-dirigentes da PIDE/DGS, ante uma sala atónita, incluindo o colectivo de magistrados. Recorde-se que Soares foi advogado da família do general sem medo. Recorde-se que Pereira de Carvalho foi o dirigente policial que recebeu MS, em 1970, na sede de António Maria Cardoso, dando-lhe oito horas para regressar a Paris, evitando, com esta abertura marcelista, detê-lo. Recorde-se que, na sequência da Revolução do Cravos, tempo de exaltação dos mártires do fascismo, devotos marianos plantaram a figura de Sua Excelência no parlatório da Prisão de Peniche, evocando a passagem do resistente pela masmorra. Sucede que o filho do padre João não afrontou o fascismo ao ponto de merecer tão severa hospedagem. É natural que, consumado o projecto de instalação de uma Pousada de Portugal no corpo da fortaleza, o Pai da Democracia se abalance a reservar uma suite presidencial. Peniche era para casos particularmente sérios. E a respeito da comedida oposição muito se poderia rever. Recorde-se, a fechar o florilégio, que MS manteve contactos com o Governo de Marcelo, tentando uma abertura para a sua pessoa e os seus cortesãos nas costas do conjunto da Oposição Democrática. Recorde-se que, em 1969, depois de haver subscrito uma plataforma de unidade contra o regime, rompeu o acordo e avançou com candidaturas independentes às Legislativas desse ano. Recorde-se o direito à indignação de Armando Bacelar: Não lhe tremeu a mão, sr. dr.!

Após a Revolução de Abril, Mário Nobre Soares depressa deu sinais de descolagem da frente de esquerda. Cinco dias passados sobre o Dia da Liberdade, protagonizou o incidente do 1.º de Maio, abrindo caminho ao empurrão para apanhar um banho de classe trabalhadora. A agenda divisionista prosseguiria, desde os complots político-militares à sabotagem da Unidade Sindical, até à sabotagem e liquidação da Reforma Agrária. Esta contou com a deserção do Conselho de Ministros por parte dos socialistas, aproveitando o PPD para tomar o lugar de esquerda do PS, aprovando a alteração do regime de propriedade e exploração do latifúndio. Dentro do seu partido, além de se auto-suspender, num gesto de desafronta majestática, cortou com os maiores amigos, desde Manuel Serra a Salgado Zenha, de Rui Mateus a Manuel Alegre, nunca havendo perdoado a quem obstaculizasse o seu caminho. Foi transformando amigos em inimigos e inimigos em amigos. Foi cultivando cumplicidades de alto estrondo. Lembre-se a caução do terrorismo de Spínola, o indulto a Ramiro Moreira, operacional do terrorismo, a condecoração do cónego Melo, mentor do terrorismo. Lembre-se que, em 1972, no livro Le Portugal bailloné /Portugal Amordaçado, acusou a Igreja de concubinato com regime de Salazar e, em 1975, solicitou ao patriarca de Lisboa, António Ribeiro, que mobilizasse as paróquias para a manifestação da Fonte Luminosa. Acordo religiosamente respeitado. Lembre-se também o seu apoio ao candidato Soares Carneiro, personagem da direita casernícola, contra Ramalho Eanes. Assinale-se o perfil de Estado nas referências a Cavaco Silva, Você não tem biografia, a Francisco Balsemão, um mestre-escola desastrado, a Nicole Fontaine, dona de casa. São também conhecidos outros episódios: verberou um juiz de Coimbra por não acomodar as leis num caso que lhe dizia respeito; o jornalista Lopes Araújo/RTP foi exilado para os Açores por mandar para o ar uma reportagem de protesto popular; deu um raspanete, estilo enxota-cão, defronte da Comunicação Social, a um agente da GNR, da sua escolta: Ó sr. Guarda, desapareça!; recebeu representantes de 270 associações de emigrantes/França/RFA, descalçando os sapatos e pondo os pés em cima da Mesa de Diálogo. Foi assim Mário. É assim Soares. Para manter a corte, no activo partidário, governamental e presidencial, distribuiu cargos, favores, comendas e viagens; na fase de Senador da República, criou a Fundação Mário Soares, ligada por um cordão umbilical à fazenda pública, por onde já correram milhões de euros. Ideologicamente, não só proclamou, para que as centrais do capitalismo ouvissem, que meteu o socialismo na gaveta, como, na prática, a marca de água do seu exercício de poder se timbrou por cumplicidades, compromissos e alianças à Direita (1978/CDS/1983/PPD/PSD). O que nunca o impediu de dar larga a estribilhos esquerdizantes, adulando a rua, a arraia, nas horas de incerteza e de namoros multitudinários. A nível internacional, o homo nafarrensis mereceu o cognome de homem dos americanos. Só se lhe conhecem duas entidades a que jurou respeito e obediência: a ele próprio e aos USA. De resto, os USA, sempre que uma ditadura esgota o prazo de validade, por regra, têm preparado um soares para a transição de rédea curta. Basta rever o mapa da geopolítica. Ainda no que toca a alinhamentos internacionais, é de listar que, entre os seus favoritos e as suas amizades, se encontram personagens de referência: espiões-golpistas, genocidas-saqueadores, patrocinadores de esquadrões da morte, traidores de revoluções, usurpadores do Estado, corruptos foragidos à Justiça, como Frank Carlucci, Filipe González, Jonas Savimbi, Eden Pastora, Nicolau Ceaucescu, Andrés Pérez, Betino Craxi.

Na esfera económico-social, norteou-se pela recuperação capitalista, destruindo a Reforma Agrária, iniciando o processo de devolução de empresas (Mundet/Facar), dando o tiro de partida das privatizações e desnacionalizações e do proteccionismo de grupos, fazendo emergir, em contraponto, os salários em atraso, o apertar o cinto, a mãozinha do FMI/ lay off. Um empresário ultraconservador, Salvador Caetano, vendo-se na emergência de justificar o apoio a MS/Mário Soares contra FA/Freitas do Amaral, candidato natural da Direita, fez jurisprudência do deve-haver: Devo-lhe uns favores. Na mesma linha, o seu Governo financiou a catedral do megalómano e ultraconservador D. Rafael, bispo de Bragança. Foi neste quadro capitulacionista, classista e negocista que Soares fechou para balanço o seu 25 de Abril, mandou às favas as conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras , engavetou o socialismo e anunciou a laicos e republicanos as aparições marianas da Europa connosco, o milagre das rosas com código de barras. Projecto que o poder real (económico-financeiro) formatou e que o poder formal (político-mediático) vendeu a eleitores, contribuintes e consumidores. Fraude, entretanto, às escâncaras: o poder económico-financeiro entrou no período de pilhagem abrupta de estados, empresas, salários e pensões e o poder político-mediático aí está para aplicar e revender o plano como medidas de austeridade para conter o défice. Défice provocado pelo poder económico-financeiro. Soares via, aplaudia e decidia em nome da esquerda democrática, em prol da Europa connosco e da Sua Glória.

Encerra-se o percurso com uma citação que poderá servir de lápide em qualquer cemitério ideológico. É óbvio que MS é credor de muitos preitos: é indubitavelmente digno de uma arca no Panteão de Santa Engrácia, de uma estatueta votiva num aparador da Casa Branca e de uma réplica de Pai da Democracia no Museu da República de Nafarros.

SUPER-MARXISTA

Eu sou contra o capitalismo.

L`Express, 10/07/1972

PERÍODO SACARNEIRISTA Filho de José Gualberto Sá Carneiro, advogado, que foi deputado da União Nacional de Salazar (única formação representada na Assembleia Nacional) e de Maria Francisca da Costa Leite, que foi viscondessa de Lumbrales e vereadora da Câmara Municipal do Porto, num tempo em que o poder local não era eleito e sobrinho de João da Costa Leite Lumbrales, que foi ministro das principais pastas de Salazar, presidente da Legião e da União Nacional. Este o cordão político-umbilical de Sá Carneiro, Francisco, que franqueou a porta da política institucional, em 1969, pela mão da ANP/Acção Nacional Popular de Marcelo Caetano, ex-UN/União Nacional, integrando a Ala Liberal. Com os companheiros de jornada, procurou, na senda de outras personalidades da evolução na continuidade (nomeadamente de membros da Igreja e das Forças Armadas, da Alta Finança e da Grande Indústria), persuadir o regime a conformar-se com uma abertura que salvaguardasse o fundamental. Nesta ambivalência, a sua Ala apresentou, em 1971, um projecto de revisão da Constituição de 1933. Também gizou um projecto de Lei de Imprensa. SC teve um desempenho frenético na XI Legislatura: 85 intervenções. Até citou Maurice Duverger, prudente constitucionalista francês. Até citou a elegante Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Até levantou a voz contra as arbitrariedades de que eram alvo os presos políticos. Mas o Estado Policial não atendeu a recomendações nem a rogos nem a denúncias. O investimento na Ala Liberal pressupunha exibir um corpo cénico. O presidente do Conselho e arauto da Primavera, Marcelo Caetano, confessaria ao semanário Tempo (1980) que contratara os liberais para um número de animação e simulação: Eu convidei um grupo de gente nova justamente para animar a Assembleia e não dar sempre a impressão de unanimidade. Eles estavam lá para isso. O animoso Sá Carneiro, de resto, manejava uma retórica parlamentar colada ao salazarismo-marcelismo (1970): Muito se falou da novidade desta Assembleia, na realidade profundamente renovada na sua composição E, no entanto, nem a ideia nem a experiência eram novas, pois de longe vinha a defesa, pelo menos teórica, da presença nesta sala, para aumento da liberdade da Assembleia, "de pessoas independentes e desligadas de disciplinas partidárias, com os olhos postos apenas na sua competência, independência de critério e idoneidade moral, bom senso e espírito patriótico", como referia, em 1953, o dr. Salazar. Após algum frenesim, SC resignou, incapaz de educar a ditadura salazarista dentro da ditadura marcelista. Porém, enquanto Miller Guerra se afastava do hemiciclo, agredido a soco pela ala dura, SC despedia-se por carta e votação. Protocolarmente, como seria de esperar de um visconde de Lumbrales. Com todas as formalidades, como seria de esperar de um jurista da ordem estabelecida. As 85 alocuções foram as suas Conversas em Família. Afinal, muito os unia e pouco os dividia. Uma Tentativa de Participação Política (1973), livro do saldar de contas do compromisso histórico do sacarneirismo nascente com o marcelismo decadente, colocava o seu retrato na galeria da pequena dissidência e no cartório da herança da outra senhora. É que havia outras maneiras e vias de participação política, mas SC não tencionava enveredar pelos caminhos nem ombrear com os custos da Oposição Democrática. Contentava-se com uma abertura onde ele coubesse. Mostrou-se em 1969 e retirou-se em 1973. Ficou de atalaia. Em 1974 já discursava à Nação com nova sigla.

Comprovado o êxito da Revolução dos Cravos, no mês seguinte, fundou, com um escol portuense, o PPD, depois PSD ou PPD/PSD, segundo o pendor populista e adaptacionista das lideranças e das circunstâncias. Com um partido no papel e um passado de liberal, ganhou lustro para ministro sem pasta no I Governo Provisório, chefiado por Adelino da Palma Carlos. Andava exultante com a partilha e o perfume do poder: o que tentara e falhara na ditadura conseguia-o em democracia. Em Junho, mostrava-se eufórico perante a Imprensa brasileira: a harmonia conjugal reinava no Governo. Álvaro Cunhal? Mário Soares? Movimento das Forças Armadas? Tem sido efectivamente uma experiência entusiástica, extremamente enriquecedora Temos uma base comum: o programa do Governo do MFA. Temos um desejo comum: institucionalizar a Democracia. Temos um receio comum: o de que as forças da reacção aproveitem qualquer ingenuidade Mas a aceleração do processo revolucionário demonstraria que também se acelerava o processo reaccionário. Enquanto SC vincava, no Atlântico Sul, a base comum, o desejo comum e o receio comum, no Atlântico Norte, a sua base era outra, o seu desejo era outro, o seu receio era outro. As forças do antigamente conspiravam, tendo como placa giratória o primeiro-ministro. Palma Carlos, ligado às grandes corporações (chegou ao 25 de Abril com assento em 20 das maiores empresas), tentou antecipar as eleições para a Constituinte, no denominado golpe constitucional /Manutenção Militar (com Spínola e outros generais da Junta de Salvação Nacional). Passou a produzir legislação de emergência com o propósito de formatar o novo regime. Sentindo a crescer a desconfiança e a rejeição à sua volta, nomeou Sá Carneiro vice-primeiro-ministro (cargo não previsto), colocando-o em vantagem na linha sucessória e SC lestamente mudou as bagagens para S. Bento. Três dias depois, recebeu ordem de despejo do MFA. Base comum ? Não se deslocou ele, com Spínola aos Açores, à revelia dos outros parceiros do Governo e dos Movimentos de Libertação, a fim de negociar com Nixon, presidente dos USA, o destino das colónias? E que modelo de descolonização transportava Sá Carneiro na mente e na mala diplomática? Em 1970, já se avistara com Marcelo Caetano, presidente do Conselho, que recordou (1980): Sá Carneiro Disse estar admirado de eu ter podido avançar tanto em relação ao Ultramar, a tal ponto que no projecto apresentado pelo grupo liberal nada se propunha a mais nesse capítulo.

Foi assim: sempre a animar a diferença e a simular o consenso. Em diversos tempos. Em todos os temas. Em Novembro de 1974, no Congresso do PPD dava vivas ao socialismo. Também a respeito da Constituição (1976/Comércio do Porto) desfazia dúvidas e reafirmava fidelidades: O problema da Constituição não se põe. A partir do momento em que a Constituição está feita é para ser cumprida. SC aplaudiu as nacionalizações, a Reforma Agrária, o controlo operário. Em 1979, atirou para a praça um projecto de revisão, Uma Constituição para os Anos 80, que partia a ossatura e pulverizava a lógica do Texto Fundamental, negando tudo o que proclamara três anos antes. Muita coisa clamou e proclamou. Desencadeou fracturas fora e dentro do partido. Ausentou-se e regressou com ganas reformistas e guinadas restauracionistas. Teve como tesoureiro partidário e confidente o terrorista Ramiro Moreira. Escolheu o general Soares Carneiro, comandante do Campo de Internamento de S. Nicolau (Angola) para candidato à Presidência da República. Sempre a forçar o presente a regressar ao passado. O filme de Sá Carneiro rebobinava nos estúdios da outra senhora. Kaulza de Arriaga, general ultra-direitista, revelaria (1980/ O Retornado ): Em 1972, recusei o convite para me candidatar à Presidência da República pela então ala liberal da Assembleia Nacional, chefiada ou co-chefiada por Sá Carneiro. Sá Carneiro, lançador de candidaturas de generais fascistas em 1972 e 1980, esconjurou a candidatura de Eanes, general democrata, em 1980, SC que também apoiara gostosamente o general Spínola e a contragosto o general Costa Gomes, em 1974. SC/ Diário de Notícias (1979): Bom, essa tradição de militares na Presidência da República é do período do salazarismo e do regime de Marcelo Caetano.

Precisamente em 1980, SC/Sá Carneiro pereceu ao levantar voo. Dirigia-se a um comício de SC/Soares Carneiro no Coliseu portuense. Sofreu um desastre ou um atentado, conforme as orações fúnebres. O PPP/PSD (pela mão do partido, do poder central e local) encheu de fotografias os gabinetes e de monumentos as praças e implantou um vasto culto toponímico. Até o aeroporto de Pedras Rubras foi rebaptizado com a sua graça. Os passageiros e tripulantes são convidados a meditar na tragédia sempre que aterram e descolam. Também a tumba processual de Camarate é oportuna e metodicamente reaberta. Nos 100 anos da República, apenas Sidónio Pais mereceu semelhante onda necrófila. Coincidências: também Sidónio Pais pereceu em Lisboa, a caminho do Porto. Em 1918, SP pôs o pé no estribo do comboio. Em 1980, SC subiu a escada da aeronave. Também SP e SC se destacaram pelo ímpeto e pela obsessão, usando o manobrismo e a volubilidade como arma num país de muita história e de pouca memória.

EPITÁFIO DE UM PRIMEIRO-MINISTRO

Não quero ser primeiro-ministro.

Gulbenkian, 25 de Abril de 1976

PERÍODO SILVACAVAQUISTA Filho de Teodoro Silva e Maria Cavaco, da pequena burguesia rural e comercial louletana (ligada ao cultivo de frutos secos e à venda de combustíveis), Aníbal Cavaco Silva estudou em Boliqueime, Faro, Lisboa e York e leccionou em Lisboa. Passou pela tropa como contabilista. Foi bolseiro e investigador de Economia e Finanças da Fundação Gulbenkian e director de Estatística e Estudos Económicos do Banco de Portugal. Mais foi ou continua a ser: deputado, ministro das Finanças e do Plano, primeiro-ministro, presidente da República. Foi ainda secretário-geral do PSD. Uma data emerge na aceleração e projecção da carreira: 1985. Um facto súbito oferece a oportunidade: falecimento de Mota Pinto. Um evento serve de rampa: Congresso do PSD. Um local assinala o triunfo: Casino da Figueira da Foz. Bateu Rui Machete e João Salgueiro, graças à mão de Eurico de Melo, vice-rei do PSD/Norte, diligente e proficiente angariador de fundos, que se tornou ministro de Estado e da Administração Interna e vice-primeiro-ministro e ministro da Defesa, havendo abandonado este posto em condições obscuras, passando de sustentáculo partidário e pilar governamental a militante silencioso e eurodeputado invisível.

No exercício das funções governativas e presidenciais, o homo boliqueimensis deixou uma marca de executor do neo-liberalismo como economia financeirizada e de passadismo como pauta ideológica. Doutorado pelo thatcherismo-reaganismo, esforçou-se, a partir de 1986, por aplicar a receita testada pela Escola de Chicago no Chile de Pinochet, a partir de 1973: como em Portugal o regime constitucional e o condicionamento democrático não permitiam uma solução casernícola, CS foi pressionando a Lei Fundamental. Barrado, em 1987, por uma moção de censura, dissolvida a AR e convocadas eleições, CS obtém a maioria absoluta. Repetirá a absoluta, em 1991, então coligado. Este suporte confere-lhe campo de subversão para dar largas a uma concepção de Thatcher de calças e Reagan sem chapéu. Entrado Portugal, no seu consulado, na CEE, CS drenaria, durante dez anos, o manancial de fundos para obras públicas, parte delas de aparato ou de desbarato, fazendo crescer o polvo de betão à sombra da árvore das europatacas. Deixem-me trabalhar! Os fundos que não jorraram para infra-estruturas, frequentemente megalómanas ou desconectadas de um Plano Estratégico de Desenvolvimento, foram engordar o sector particular em nome do sector privado, enquanto se desmantelava a indústria pesada e mecânica, se abatia drasticamente o efectivo pesqueiro e se pagava para não produzir na agricultura. Deixem-me trabalhar! Este fontismo fim-de-século XX engordou uma geração de empreiteiros, presenteou uma geração de empreendedores absentistas e fez despontar uma geração de banqueiros cavaquistas. Desde o ouro do Brasil que algumas estirpes não nadavam tanto em dinheiro fácil. Cavaco é o Magnânimo da Europa dos Fundos Perdidos. Mas, ao menos, D. João V, o rei do Mosteiro de Mafra e da Ópera Italiana, não perdia tempo a subir a coqueiros: apreciava saias de freira. Ia ao primor de montar suite de luxe à madre Paula no Convento de Odivelas. Descontado o devocionário paulista, a política de Estado não comportará grandes diferenças. Terão ambos algo de positivo no percurso. D. João V também fez obra, representada pelo emblemático Aqueduto das Águas Livres. Contudo, o que nacionalmente falhou superou o bem realizado. O fausto é muitas vezes prenúncio de bancarrota. João também tinha Secretariado de Propaganda para impressionar a populaça e os salamaleques dos cortesãos. João fazia gala em deslumbrar o papa romano e o imperador chinês. Falecido o monarca da Palhavã e da Patriarcal, dos solenes pontificais, dos coches e dos deboches, não havia disponibilidades de tesouraria para um funeral luzidio, à altura do Rei-Sol Português.

Além da distribuição do euromaná, Cavaco Silva notabilizou-se a privatizar empresas públicas, inclusive por ajuste directo e a preço mínimo, acentuou o desequilíbrio do estatuto laboral face ao patronal, procedeu à revisão da Lei de Imprensa, abrindo a Rádio e a Televisão a grupos mediáticos afectos, retirou o poder vinculativo aos Conselhos de Redacção, criou os regimes fiscais de IRS/IRC, beneficiando a banca e a generalidade das aplicações aforristas e bolsistas. Deixem-me trabalhar! No quer toca ao modelo de Estado, contribuiu, como ninguém, para o que mais tarde classificaria como monstro: para as clientelas partidárias e colaboracionistas, a ética como ramo de negócio, as sobreposições de funções e competências. Miguel Cadilhe, que foi ministro das Finanças do Cavaquistão, reconheceu CS como o verdadeiro pai do monstro, Quanto ao pretenso excesso de funcionários públicos, CS recomendou em tempos a implacável lei da natureza: deixá-los morrer. Mas alguns portugueses tiveram direito a berço dourado. No magnânimo reino do Cavaquistão, fomentou-se o culto dos vencedores, desde logo, dos JEP`s/Jovens de Elevado Potencial. E foi-se revelando o potencial de Oliveiras e Costas, Dias Loureiros, Duartes Limas. O cavaquismo foi uma fábrica de novos-ricos. Alguns dos sinais institucionais desse novo-riquismo traduziram-se na aquisição de uma frota de aviões executivos Falcon, nas comitivas régias e nas despesas colossais da Presidência da República. Deixem-me trabalhar! O Novo SPN/Secretariado de Propaganda Nacional, esse vendia e revendia Portugal como um oásis no meio da desolação e com brios de bom aluno europeu num clube de cábulas. Portugal integrava ou brevemente integraria o pelotão da frente. E agora que jazemos em 2011, no término das evocações republicanas ou da coisa pública, em que se salda o país-ficção do homem do leme ? Bastará passar os olhos pelo mapa continental e insular: as tempestades de areia toldaram o oásis. Verificou-se o incumprimento das regras de contabilidade da Euro-Escola e da Universidade de York e do Instituto Comercial de Lisboa, confirmou-se o endividamento crónico e insustentável, agravou-se o retrocesso económico, alastrou a mancha da pobreza, decretou-se o saque fiscal e social da classe trabalhadora e da classe média. E tão calamitoso como a calamidade económico-social é o drama de Portugal ter vindo a perder soberania e independência de modo célere ao cair no ciclo infernal da dívida e da recessão, nas garras dos prestamistas, dos agiotas, dos batoteiros: da economia de casino. O CS de 2011 é idêntico ao CS de 1985: foi eleito num casino e muito lhe deve Portugal por se haver transformado um casino, onde alguns são senhores das máquinas e das fichas e do tapete verde e outros pagam as paradas do BPN e do BPP e das parcerias público-privadas e das derrapagens orçamentais e dos paraísos fiscais e dos vencimentos provocatórios e das reformas obscenas. Cavaco Silva não pode dizer que não passou por aqui ou que não sabia o que se passava por aqui. Deixem-me trabalhar! Não houve outro timoneiro (com excepção de Salazar) com tal latitude e amplitude de mandato. Também não pode dizer que é humano e errou. Exerceu o magistério da infalibilidade: nunca me engano e raramente tenho dúvidas. E nem precisava de recorrer à Imprensa para se inteirar dos acontecimentos: não leio jornais. York dixit. Chicago diktat.

Já no itinerário democrático, CS homenageou Spínola e agraciou ex-Pides – compreendendo-se que, na ditadura, se tivesse confessado à PIDE, por escrito, integrado no salazarismo. Vocacionado para se integrar na ditadura, negar a pensão à viúva a Salgueiro Maia, Capitão de Abril, foi um acto de continuidade. Como foi um acto de continuidade a Petrogal (empresa pública sob tutela do X Governo Constitucional/CS) haver nomeado Ramiro Moreira para alto cargo em Madrid, para onde se evadira, após condenação a 21 anos de cadeia. Lembre-se que era, na altura, ministro dos Negócios Estrangeiros Pedro Pires de Miranda, ex-presidente da Petrogal, eminência que sentiu necessidade de abandonar a terra lusa no 25 de Abril e no 11 de Março. CS foi apodado de ditador por Belmiro de Azevedo, seu apoiante. CS foi acusado por Miguel Júdice, seu apoiante, de haver destruído o PSD original, de haver aumentado o peso do Estado e de ser autoritário. Acrescentaremos que tratava os ministros por adjuntos. Sidónio Pais só tolerava secretários. Já no Plano Nacional de Leitura, o pai do colossal deslize das contas do Centro Cultural de Belém leu uns livros de contabilidade, economia e finanças. Mesmo assim, troca competitividade por competividade. No restante, confunde Tomás Moro com Thomaz Moore e desconhece os cantos dos Lusíadas. Terá mandado ler ao inquisidor Lara o Evangelho de Saramago?

Apesar do colossal défice literário, nada impede CS de ter um futuro risonho como ficcionista do mundo rural, mundo que tanto ajudou a desertificar e a liquidar. Segundo CS, terão ficado imunes à PAC algumas vacas de elevado potencial. Dir-se-á: que sorte ser boy em Portugal e vaca nos Açores. Isso mesmo. CS redimir-se-á das agruras agrárias. Deliciar-nos-á com o Monólogo da Graciosa. Gil Vicente, esteja onde estiver, orgulhar-se-á por reler, em 2011, o seu Auto de 1502. O novel talento é um português dos grandes em época de ânimos abatidos e credores à perna. Ninguém estranhe a narrativa e o êxtase do narrador: o destino de Portugal sempre esteve dependente do gado: do bravo e do manso. As vacas, então, sempre deram provas de férreo portuguesismo e acrisolado patriotismo. Quem não se recordará da Batalha da Salga, em 1581, dominados por Castela, só faltando submeter a Ilha Terceira? Oitenta vacas desceram dos verdejantes pastos, investiram contra os afoitos desembarcados, desbarataram a invencível armada de Filipe II. Onde falta a carga de cavalaria sempre resta a carga de vacaria. Que fique a lição para Merkel e Sarkozy: as vacas nem sempre se desfazem em sorrisos. No entanto, ver vacas consoladas é um privilégio. Como suma honra é pertencer a uma raça cuja Língua se enriquece cruzando a épica da Terceira e o pitoresco da Graciosa. A alma do Portugal Profundo emerge. Atentemos na importância do vaquismo e do cavaquismo na História da Defesa e da Literatura.

AUTO DO VAQUEIRO

Ontem eu reparava no sorriso das vacas. Estavam satisfeitíssimas olhando o pasto que começava a ficar verdejante.

Imprensa / Rádio/Televisão, 21/09/2011. [*] Escritor/Jornalista

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