“As mulheres ficam sempre na sombra”

02-12-2015
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Esta entrevista foi iniciada há um ano. Repentinamente, Maria Barroso interrompeu a conversa, anunciando que tinha de sair para realizar exames urgentes devido a um inesperado problema de saúde. Soubemos mais tarde que lhe havia sido diagnosticado um cancro da mama. Perdida a oportunidade de falarmos sobre "Fé" para a edição de Natal de 2008, com uma mulher que espantou Portugal ao reencontrar a Igreja, decidimos voltar agora a lançar-lhe o desafio com um tema próximo, "Luz". Recebeu-nos novamente no seu gabinete da Fundação Pro Dignitate, da qual é presidente. Desta vez, com o tempo necessário para percorrermos uma vida impressionante. Frágil e franzina na aparência, a mulher de Mário Soares mantém uma energia surpreendente. A sua agenda rivaliza com a do ex-Presidente da República em compromissos no país e no estrangeiro. Maria de Jesus Simões Barroso Soares tem o apelido do marido, mas nunca abdicou do seu nome de solteira. Sempre trabalhou e mantém a mesma fibra que fez dela uma mulher de combate. Com uma identidade própria.

Há um ano, esta entrevista foi interrompida porque estava a fazer os exames que lhe acabaram por diagnosticar um cancro na mama.

Foi uma coisa absolutamente inesperada.

Sentiu medo?

Não. Fiquei angustiada, mas encarei a possibilidade de me ir embora com uma certa tranquilidade.

Tranquilidade que lhe foi dada pela fé?

Sim, deu-me força para aguentar.

Tranquilidade que também pode ser dada pela longa experiência de vida, pela noção de que cumpriu um caminho?

Também.

Tirar um peito é uma das maiores provações pela qual uma mulher poderá passar na sua relação com o corpo. Para si foi complicado?

Foi doloroso. Mas tive de aceitar. Há pouco tempo tive um outro momento difícil, estive até hospitalizada, mas consegui vencer outra vez. E cá estou. Vou vivendo. Não sei até quando, mas cá estou. E com o desejo de não me meter em casa, sentada diante da televisão, mas de contribuir, modestamente com certeza, para ajudar a modificar o mundo em que vivemos. Por poucochinho que seja, se puder ajudar, fico muito contente.

A sua aproximação à fé deu-se há 20 anos, num contexto muito especial da sua vida, quando o seu filho João sofreu o trágico acidente de aviação na Jamba, ficando entre a vida e a morte.

É verdade, foi nessa altura, mas não gosto de falar da minha vida íntima.

Perceber como foi esse caminho espiritual é um testemunho importante.

Era de noite, o meu marido já se tinha deitado, e eu estava a fazer as malas, porque no dia seguinte partíamos numa visita de Estado à Holanda e à Hungria. Foi curioso... Nessa noite, não conseguia dormir. A certa altura, a minha filha telefonou a dar a notícia de que o João tinha tido um gravíssimo desastre na Jamba, em Angola, e que estava muito mal. Fui a correr acordar o meu marido, e ele pôs-se logo a telefonar para vários sítios. E soube que o João tinha sido levado para a África do Sul, para um hospital em Pretória. Eu e a minha nora - na altura mulher dele e mãe de três filhos, que são três netos maravilhosos - fomos as duas para a África do Sul, acompanhadas por um sobrinho médico, o Eduardo Barroso. Ficámos na embaixada. No hospital, fui ver o meu filho e os outros que com ele sofreram esse desastre. Quase não reconheci o meu filho.

Ficaram lá muito tempo...

E todos os dias perguntava ao médico que tratava o João: "Como está o meu filho?" Ele dizia-me sempre: "Um bocadinho melhor, mas continua muito doente. Peça a Deus."

Seguiu esse conselho?

Segui. Aliás, mal recebi a notícia, pedi a uma amiga: "Vá ter com o senhor padre da igreja do Campo Grande e peça-lhe que reze pelo meu filho!" Porque eu estava angustiadíssima.

Foi um afastamento de muitos anos.

Pode haver um fenómeno- e foi o que sucedeu-que nos toque, que nos fira, que provoque uma angústia, um desejo de nos agarrarmos a qualquer coisa que nos dê força para aguentar.

O seu filho esteve às portas da morte, mas recuperou totalmente. Acredita que foi um milagre?

Como contei, o médico dizia-me todos os dias: "O seu filho está gravemente doente. Peça a Deus." E eu pedi. E depois pensei: "Deus ajudou-me." Não quero falar mais sobre isso, mas foi o que aconteceu. Deus deu-me uma alegria e uma força interior muito grande. De tal maneira que eu olho para o problema de ter de desaparecer com uma grande serenidade.

Mas já tinha sido crente?

Quando era miúda, tinha uma avó muito religiosa, que se chamava Maria da Rainha Santa, que me levava à igreja e ensinava-me o padre-nosso, a ave-maria, a salve-rainha, todas essas orações... Fiz um reencontro com a fé. E fiquei feliz.

Como é um reencontro com a fé? Não a tinha ou estava adormecida?

Estava adormecida.

Não pensava em Deus?

Não.

Tinha deixado de acreditar?

Sim, houve um período... Quando ainda andava no Liceu Felipa de Lencastre, falei com o meu pai sobre isso. Ele tranquilizou-me. Disse-me: "O que tu tens é de agir de acordo com determinados valores e com a tua consciência. Porque se Deus existe, segue isso tudo e serás bem vista por ele."

Como se deu esse afastamento da fé?

Foi o estar metida em movimentos políticos... Afastei-me, esqueci-me...

Teve também a ver com o facto de, no tempo da ditadura, a Igreja estar ao lado do regime?

Sim. Havia uma discrepância muito grande entre a doutrina de Cristo que pregava a Igreja então em Portugal e a sua prática. Parte da Igreja apoiou Salazar, aceitando medidas injustas e desumanas e permitindo que a polícia política se instalasse e cometesse os crimes que cometeu em relação à oposição. Nunca me esqueço de que a última vez que o meu pai foi preso foi na véspera de fazer 74 anos. E no dia do aniversário foi sujeito à tortura do sono. Teve uma síncope e ia morrendo.

A sua reconversão surpreendeu o seu marido? Ele sempre fez questão de se assumir como laico.

Sim. Surpreendeu todos os meus familiares, mas aceitaram, porque são democratas. Mas, por exemplo, o meu sogro, João Soares, era profundamente crente, tinha sido padre e conseguiu uma licença da Santa Sé para poder casar com a mãe do meu marido. Foi crente até ao fim e deixou no seu testamento que mandássemos rezar missas nas Cortes, perto de Leiria, onde viveu. Cumpri tudo isso com muito gosto.

Foi batizada em criança?

Os meus pais batizaram uma parte dos seus filhos... Sou batizada. Mas insisto que não quero falar mais sobre isso - entra de tal maneira na minha intimidade e eu não quero tornar público aquilo que devo conservar religiosamente dentro de mim.

As suas decisões refletem a sua vontade ou são em função do casal?

Não estive sempre em concordância com o meu marido, mas as decisões que tomei foram de acordo com o pensamento dos dois. Porque se não, não estaria casada há 60 anos.

O grande protagonista foi ele.

Sim, claro. Ele tinha uma estatura muito superior à minha. Ele tinha uma vida política muito intensa, e eu tinha a família, os filhos... Além disso, sabem muito bem que quando os homens têm uma grande projeção as mulheres ficam mais na sombra.

Como é que vê esse lugar de sombra?

Faz-se o que se pode, funcionando dentro das nossas possibilidades.

Mas o percurso de Mário Soares não teria sido possível sem a ter na retaguarda a cuidar dos filhos e do Colégio Moderno, o colégio da família.

Em parte, mas só em parte, sim.

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Acredita que para a História fica o reconhecimento dos portugueses desse seu papel fundamental?

Não seria fundamental. Ele venceu por si, pela sua inteligência, pelas suas grandes qualidades. Eu ajudei tanto quanto podia. Principalmente quando ele estava no exílio. Facilitei-lhe a vida tanto quanto podia facilitar, porque tratava dos filhos e do colégio... E isto sem poder ser legalmente professora - fui só dois anos ao abrigo de uma disposição legal que permitia que o diretor se responsabilizasse pelo candidato ao diploma do Ensino Particular. Depois telefonaram ao meu sogro a dizer que eu não podia lecionar, porque me era negado esse diploma. Trabalhava na clandestinidade, na sombra...

Sempre trabalhou...

Trabalhei brutalmente. Quando tinha internato no colégio, metia-me no carro, com uma empregada ao lado, e ia às cinco da manhã à praça comprar o peixe, os legumes, etc. - era onde iam os revendedores e, portanto, era tudo mais barato. Era um trabalho duro, difícil.

Qual considera ter sido a sua profissão?

Eu representei e gostava muito. Mas fui impedida de o fazer por muito tempo. Fui educadora e também gostava muito. Fiz o que podia. Trabalhei de acordo com a minha consciência.

Mas a sua profissão qual foi?

Gostei muito de ser educadora, de lidar com os jovens e de poder participar na sua educação e na sua formação. Considerava que era essencial. É um trabalho apaixonante. Hoje é a minha filha que exerce essa função - e o Colégio Moderno está em lugar de grande destaque no ranking das melhores escolas.

Foi devido ao colégio que desistiu de ser deputada?

Não podia dar a assistência que devia e resolvi desistir. Porque o colégio era muito importante, foi fundado pelo meu sogro há muitos anos e é uma instituição respeitada por toda a sociedade. Além disso, gostava muito do contacto com os jovens, de acompanhar o seu desenvolvimento, assistir e perceber quais eram os seus problemas. Isso enriquecia-me do ponto de vista humano.

Foi uma conselheira privilegiada do seu marido?

Sempre lhe disse qual era a minha opinião, concordando ou discordando. Mas não fui a grande conselheira do meu marido. Tínhamos amigos que eram grandes figuras da política e a quem ele ouvia.

Mas ele pedia a sua opinião?

Às vezes. E conversávamos livremente sobre os problemas.

Exercia também a sua magistratura de influência?

Tanto quanto podia... tanto quanto podia... Mas foi muito pouca.

Tem, no entanto, o seu próprio legado. O que faz para o preservar? Escreve memórias?

Não. E incrivelmente perdi muitos papéis. Passo o meu testemunho participando em muitos congressos em Portugal e no estrangeiro.

Uma das suas áreas de interesse são as questões dos direitos das mulheres...

Sempre me interessei. Desde jovem.

O que aprendeu sobre a condição feminina?

Vi de perto o que foi a luta de mulheres de grande estatura cívica, como Maria Isabel Aboim Inglês, Maria Lamas, Elina Guimarães e Cesina Bermudes, entre outras. Participei, apaixonadamente, nessa luta. E, hoje, grande parte das pessoas nem sabe quem elas foram. Maria Isabel Aboim Inglês pertenceu à comissão central do MUD (Movimento de Unidade Democrática) e esteve presa várias vezes. Foi destituída de professora na Faculdade de Letras, fundou um colégio e, devido a uma pequena irregularidade, fecharam-lho, e ela acabou a ser modista. A minha filha chama-se Isabel por causa dela. Ela e o Chico Zenha [Francisco Salgado Zenha] foram os padrinhos da minha filha.

Como disse, essas mulheres foram esquecidas...

Mas com certeza! As mulheres ficam sempre na sombra.

O que lhe diz a sua experiência sobre essa condição de sombra?

Agora já há uma participação maior das mulheres na sociedade. No meu tempo não. Isto tem progredido bastante, embora ainda não o suficiente. Até já há mulheres Presidentes da República. Claro que a igualdade ainda não é total. Por exemplo, ainda há lugares em que a compensação financeira é inferior. E o acesso aos lugares de decisão é mais difícil do que para os homens. Mas lá chegaremos. Estou convencida de que lá chegaremos.

É a favor de quotas para as mulheres nas listas eleitorais?

Sou. Mas o meu marido foi contra. Dizia: "As mulheres sobem pelo seu valor." Sei que é uma forma artificial, mas é a única que consegue ajudar a transformar mentalidades. Sobretudo a dos homens, para um dia admitirem que as mulheres têm os mesmos direitos.

Para si, sempre foi claro que as mulheres têm os mesmos direitos dos homens ou foi uma aprendizagem de vida política?

Foi sempre claro. Sempre. Nasci numa casa de sete filhos, quatro rapazes e três raparigas, com uma mãe que era professora primária e um pai militar. A igualdade de direitos dentro de casa era muito importante. Sei que na maioria das casas daquele tempo não se passava assim, e a maior parte das mulheres era reduzida ao trabalho doméstico. Lembro-me de um amigo, Álvaro Salema, que foi um grande jornalista e que era ridicularizado pelo facto de ajudar a mulher a dar biberões e a mudar as fraldas dos filhos.

Mas, sendo o seu pai militar, havia essa partilha?

O meu pai ajudava muito a minha mãe. E havia muitos militares que tinham esse tipo de mentalidade. Portanto, desde jovem tive essa consciência. E também o sentido de responsabilidade social. Por isso, muitas vezes acontece-me andar pelo país e virem pessoas do povo dizer: "Deixe-me dar-lhe um beijinho, que gosto muito da senhora." Fico muito sensibilizada, porque não fiz nada de especial. O que fiz foi ter uma atitude que se inscrevia numa linha de continuidade da minha atuação desde a juventude. Tudo isso deu sinceridade às minhas ações, que o povo sentia quando fui a mulher do Presidente da República.

A expressão "povo" caiu em desuso, hoje referem-se aos "portugueses" e às "portuguesas"...

Mas nós somos o povo! E os políticos devem ter a preocupação de melhorar as condições do povo a que pertencem e de amenizar e apagar as desigualdades que existem. E isso está a acontecer. Temos, aliás, grandes figuras femininas que lutam por essa igualdade. É o caso da dra. Elza Pais, agora secretária de Estado, que tem desencadeado uma acção notabilíssima nesse sentido.

Na sua geração, mesmo os jovens da oposição, que andavam a lutar pela igualdade social, em casa praticavam muito pouco a igualdade de género. Considera que a ideia de igualdade também foi transposta para o seu casamento?

Sim, claro. E eu também transmiti aos meus filhos essa ideia de que é preciso igualdade entre homens e mulheres. É verdade que a minha mãe dizia muitas vezes que uma rapariga não deve fazer isto, não deve fazer aquilo, foi contra eu ir para o teatro... E o meu pai só me deixou fazer o curso de Arte Dramática do Conservatório com a condição de eu tirar um curso superior... e fui para Letras.

Nuno Botelho

O teatro era o seu maior sonho?

Sim. Gostava muito. Exprimi o meu grande sonho num exame que fiz no 5º ano ao responder: "Quero ser advogada para defender os pobres. E quero ser atriz porque quero representar."

A sua mãe era contra devido ao estilo de vida das pessoas do teatro?

Até chorava. O meu pai dizia: "Não. Eu tenho confiança na minha filha e acho que não são as profissões que fazem as pessoas, mas as pessoas que fazem as profissões."

No teatro, foi uma grande promessa do seu tempo. Gostava muito de representar?

Sim, imenso.

Mas não foi só o teatro que a notabilizou no seu tempo da Faculdade de Letras. Era uma declamadora que inflamava as plateias.

É verdade. Gostava muito de dizer poemas, sobretudo do "Novo Cancioneiro", que, como se sabe, tinha muitos textos revolucionários de Joaquim Namorado, Mário Dionísio, Manuel da Fonseca... O Sidónio Muralha, de quem tanto gostava de dizer o 'Soneto Imperfeito da Caminha Imperfeita': "Já não há mordaças, nem ameaças, nem algemas que possam impedir a nossa caminhada/ onde cada poema é uma bandeira desfraldada/ e os poetas são os próprios versos dos poemas..." Estão a ver? Eu dizia isto com toda a minha alma, e eram verdadeiros panfletos. Ia com o coro de Fernando Lopes Graça a Almada, ao Barreiro, onde havia as sociedades operárias, e ficavam todos muito eletrizados.

E que peças gostou especialmente de representar?

A "Benilde ou a Virgem-Mãe", de José Régio, e "A Casa de Bernarda Alba", de Garcia Lorca. Esta foi uma das últimas peças que representei, fazia a filha rebelde, claro, a Adela. Muitas vezes, os censores eram ignorantes e não se apercebiam do significado das coisas - como da personagem Bernarda Alba, a mãe, que encarnava a prepotência e era interpretada pela grande atriz Palmira Bastos... Andámos a representá-la pelo país. Quando o fizemos em Coimbra, estava lá toda a intelectualidade que era contra o regime - e havia uma cena muito emotiva, que terminava com a Adela aos gritos. No terceiro ato, essa figura dizia, quebrando a vara que a mãe trazia sempre com ela: "Veja o que eu faço à sua tirania." O teatro ia vindo abaixo com as palmas, bateram, bateram e começaram a chamar pelo meu nome... Eu era muito tímida, mas Palmira Bastos levou-me à frente, e a certa altura atiraram para o palco uma pasta com as fitas da Faculdade de Letras e uma capa. Foi uma noite lindíssima, foi a noite de teatro mais bonita que tive.

Mas pagou caro o êxito dessa noite...

Porque finalmente os censores perceberam a importância da peça. E já não deixaram que fosse representada no Porto. Depois vieram as férias grandes, e quando acabaram telefonei ao sr. Robles Monteiro, que era administrador do teatro e marido da Amélia Rey Colaço, para saber o horário de trabalho do dia seguinte. Disse-me com uma voz muito aflita: "Mariazinha, a Amélia precisa muito de falar consigo. Venha ao teatro!" Fui. E foi quando ela me disse: "Tenho muita pena, mas não me deixam contratá-la de novo!"

Foi um desgosto ouvir isso?

Uma coisa terrível. Dizia aos meus amigos: "Lutei pela dignificação do teatro, procurei representar o melhor possível e puseram-me fora!" No ano seguinte casei e fui fazer outras coisas.

Nos anos 60 voltou aos palcos...

Fiz duas peças com o Jacinto Ramos no Teatro Villaret. Gosto muito. Ainda hoje sei poemas inteiros de cor e que dizia há muitos anos.

Lê em voz alta, só para si?

Às vezes, sim. Recorro aos poetas para mostrar de uma forma bela aquilo que penso. Sucede-me com o Fernando Pessoa (com um Álvaro de Campos, por exemplo), o Régio, o Teixeira de Pascoaes... O que é natural, pois os poetas exprimem os nossos pensamentos de uma maneira privilegiada. Quando vem o Outono lembro-me logo do Camilo Pessanha, "Outono de seu riso magoado..."

O envelhecimento é uma tranquilidade? Ainda estão presentes algumas inquietações de vida inteira?

O envelhecimento é um acumular de experiências que fizemos durante a vida e que devemos transmitir aos mais novos, se pudermos. Isso é muito importante. Claro que, quando olho para o retrato que a minha filha tem em casa de quando representei a Benilde, tinha eu 20 anos, vejo a grande diferença que faço. Sinto que o tempo passou extraordinariamente rápido.

Ainda se sente, de algum modo, próxima dessa rapariga?

As ideias que tenho sobre o modo de encarar a vida, aquilo que sucede no mundo... vejo que há a mesma preocupação. Como já disse, toda a minha atuação está numa linha de continuidade de tudo o que fiz quando era jovem. Quando olho para a minha cara, vejo o envelhecimento que houve, mas sinto que é a ordem natural das coisas. Os africanos costumam dizer que quando um velho morre é uma biblioteca inteira que desaparece.

O que recorda com mais saudade?

Recordo com muita emoção os momentos que vivi com os meus pais e com os meus irmãos. Adorava-os. Recordo também todos os momentos que vivi com o meu marido quando éramos mais novos, o nascimento dos meus filhos, o regresso dele do exílio em São Tomé, o 25 de Abril, quando eu e o meu marido estávamos na Alemanha. Foram momentos muito especiais e emocionantes.

Esta entrevista foi iniciada há um ano. Repentinamente, Maria Barroso interrompeu a conversa, anunciando que tinha de sair para realizar exames urgentes devido a um inesperado problema de saúde. Soubemos mais tarde que lhe havia sido diagnosticado um cancro da mama. Perdida a oportunidade de falarmos sobre "Fé" para a edição de Natal de 2008, com uma mulher que espantou Portugal ao reencontrar a Igreja, decidimos voltar agora a lançar-lhe o desafio com um tema próximo, "Luz". Recebeu-nos novamente no seu gabinete da Fundação Pro Dignitate, da qual é presidente. Desta vez, com o tempo necessário para percorrermos uma vida impressionante. Frágil e franzina na aparência, a mulher de Mário Soares mantém uma energia surpreendente. A sua agenda rivaliza com a do ex-Presidente da República em compromissos no país e no estrangeiro. Maria de Jesus Simões Barroso Soares tem o apelido do marido, mas nunca abdicou do seu nome de solteira. Sempre trabalhou e mantém a mesma fibra que fez dela uma mulher de combate. Com uma identidade própria.

Há um ano, esta entrevista foi interrompida porque estava a fazer os exames que lhe acabaram por diagnosticar um cancro na mama.

Foi uma coisa absolutamente inesperada.

Sentiu medo?

Não. Fiquei angustiada, mas encarei a possibilidade de me ir embora com uma certa tranquilidade.

Tranquilidade que lhe foi dada pela fé?

Sim, deu-me força para aguentar.

Tranquilidade que também pode ser dada pela longa experiência de vida, pela noção de que cumpriu um caminho?

Também.

Tirar um peito é uma das maiores provações pela qual uma mulher poderá passar na sua relação com o corpo. Para si foi complicado?

Foi doloroso. Mas tive de aceitar. Há pouco tempo tive um outro momento difícil, estive até hospitalizada, mas consegui vencer outra vez. E cá estou. Vou vivendo. Não sei até quando, mas cá estou. E com o desejo de não me meter em casa, sentada diante da televisão, mas de contribuir, modestamente com certeza, para ajudar a modificar o mundo em que vivemos. Por poucochinho que seja, se puder ajudar, fico muito contente.

A sua aproximação à fé deu-se há 20 anos, num contexto muito especial da sua vida, quando o seu filho João sofreu o trágico acidente de aviação na Jamba, ficando entre a vida e a morte.

É verdade, foi nessa altura, mas não gosto de falar da minha vida íntima.

Perceber como foi esse caminho espiritual é um testemunho importante.

Era de noite, o meu marido já se tinha deitado, e eu estava a fazer as malas, porque no dia seguinte partíamos numa visita de Estado à Holanda e à Hungria. Foi curioso... Nessa noite, não conseguia dormir. A certa altura, a minha filha telefonou a dar a notícia de que o João tinha tido um gravíssimo desastre na Jamba, em Angola, e que estava muito mal. Fui a correr acordar o meu marido, e ele pôs-se logo a telefonar para vários sítios. E soube que o João tinha sido levado para a África do Sul, para um hospital em Pretória. Eu e a minha nora - na altura mulher dele e mãe de três filhos, que são três netos maravilhosos - fomos as duas para a África do Sul, acompanhadas por um sobrinho médico, o Eduardo Barroso. Ficámos na embaixada. No hospital, fui ver o meu filho e os outros que com ele sofreram esse desastre. Quase não reconheci o meu filho.

Ficaram lá muito tempo...

E todos os dias perguntava ao médico que tratava o João: "Como está o meu filho?" Ele dizia-me sempre: "Um bocadinho melhor, mas continua muito doente. Peça a Deus."

Seguiu esse conselho?

Segui. Aliás, mal recebi a notícia, pedi a uma amiga: "Vá ter com o senhor padre da igreja do Campo Grande e peça-lhe que reze pelo meu filho!" Porque eu estava angustiadíssima.

Foi um afastamento de muitos anos.

Pode haver um fenómeno- e foi o que sucedeu-que nos toque, que nos fira, que provoque uma angústia, um desejo de nos agarrarmos a qualquer coisa que nos dê força para aguentar.

O seu filho esteve às portas da morte, mas recuperou totalmente. Acredita que foi um milagre?

Como contei, o médico dizia-me todos os dias: "O seu filho está gravemente doente. Peça a Deus." E eu pedi. E depois pensei: "Deus ajudou-me." Não quero falar mais sobre isso, mas foi o que aconteceu. Deus deu-me uma alegria e uma força interior muito grande. De tal maneira que eu olho para o problema de ter de desaparecer com uma grande serenidade.

Mas já tinha sido crente?

Quando era miúda, tinha uma avó muito religiosa, que se chamava Maria da Rainha Santa, que me levava à igreja e ensinava-me o padre-nosso, a ave-maria, a salve-rainha, todas essas orações... Fiz um reencontro com a fé. E fiquei feliz.

Como é um reencontro com a fé? Não a tinha ou estava adormecida?

Estava adormecida.

Não pensava em Deus?

Não.

Tinha deixado de acreditar?

Sim, houve um período... Quando ainda andava no Liceu Felipa de Lencastre, falei com o meu pai sobre isso. Ele tranquilizou-me. Disse-me: "O que tu tens é de agir de acordo com determinados valores e com a tua consciência. Porque se Deus existe, segue isso tudo e serás bem vista por ele."

Como se deu esse afastamento da fé?

Foi o estar metida em movimentos políticos... Afastei-me, esqueci-me...

Teve também a ver com o facto de, no tempo da ditadura, a Igreja estar ao lado do regime?

Sim. Havia uma discrepância muito grande entre a doutrina de Cristo que pregava a Igreja então em Portugal e a sua prática. Parte da Igreja apoiou Salazar, aceitando medidas injustas e desumanas e permitindo que a polícia política se instalasse e cometesse os crimes que cometeu em relação à oposição. Nunca me esqueço de que a última vez que o meu pai foi preso foi na véspera de fazer 74 anos. E no dia do aniversário foi sujeito à tortura do sono. Teve uma síncope e ia morrendo.

A sua reconversão surpreendeu o seu marido? Ele sempre fez questão de se assumir como laico.

Sim. Surpreendeu todos os meus familiares, mas aceitaram, porque são democratas. Mas, por exemplo, o meu sogro, João Soares, era profundamente crente, tinha sido padre e conseguiu uma licença da Santa Sé para poder casar com a mãe do meu marido. Foi crente até ao fim e deixou no seu testamento que mandássemos rezar missas nas Cortes, perto de Leiria, onde viveu. Cumpri tudo isso com muito gosto.

Foi batizada em criança?

Os meus pais batizaram uma parte dos seus filhos... Sou batizada. Mas insisto que não quero falar mais sobre isso - entra de tal maneira na minha intimidade e eu não quero tornar público aquilo que devo conservar religiosamente dentro de mim.

As suas decisões refletem a sua vontade ou são em função do casal?

Não estive sempre em concordância com o meu marido, mas as decisões que tomei foram de acordo com o pensamento dos dois. Porque se não, não estaria casada há 60 anos.

O grande protagonista foi ele.

Sim, claro. Ele tinha uma estatura muito superior à minha. Ele tinha uma vida política muito intensa, e eu tinha a família, os filhos... Além disso, sabem muito bem que quando os homens têm uma grande projeção as mulheres ficam mais na sombra.

Como é que vê esse lugar de sombra?

Faz-se o que se pode, funcionando dentro das nossas possibilidades.

Mas o percurso de Mário Soares não teria sido possível sem a ter na retaguarda a cuidar dos filhos e do Colégio Moderno, o colégio da família.

Em parte, mas só em parte, sim.

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Acredita que para a História fica o reconhecimento dos portugueses desse seu papel fundamental?

Não seria fundamental. Ele venceu por si, pela sua inteligência, pelas suas grandes qualidades. Eu ajudei tanto quanto podia. Principalmente quando ele estava no exílio. Facilitei-lhe a vida tanto quanto podia facilitar, porque tratava dos filhos e do colégio... E isto sem poder ser legalmente professora - fui só dois anos ao abrigo de uma disposição legal que permitia que o diretor se responsabilizasse pelo candidato ao diploma do Ensino Particular. Depois telefonaram ao meu sogro a dizer que eu não podia lecionar, porque me era negado esse diploma. Trabalhava na clandestinidade, na sombra...

Sempre trabalhou...

Trabalhei brutalmente. Quando tinha internato no colégio, metia-me no carro, com uma empregada ao lado, e ia às cinco da manhã à praça comprar o peixe, os legumes, etc. - era onde iam os revendedores e, portanto, era tudo mais barato. Era um trabalho duro, difícil.

Qual considera ter sido a sua profissão?

Eu representei e gostava muito. Mas fui impedida de o fazer por muito tempo. Fui educadora e também gostava muito. Fiz o que podia. Trabalhei de acordo com a minha consciência.

Mas a sua profissão qual foi?

Gostei muito de ser educadora, de lidar com os jovens e de poder participar na sua educação e na sua formação. Considerava que era essencial. É um trabalho apaixonante. Hoje é a minha filha que exerce essa função - e o Colégio Moderno está em lugar de grande destaque no ranking das melhores escolas.

Foi devido ao colégio que desistiu de ser deputada?

Não podia dar a assistência que devia e resolvi desistir. Porque o colégio era muito importante, foi fundado pelo meu sogro há muitos anos e é uma instituição respeitada por toda a sociedade. Além disso, gostava muito do contacto com os jovens, de acompanhar o seu desenvolvimento, assistir e perceber quais eram os seus problemas. Isso enriquecia-me do ponto de vista humano.

Foi uma conselheira privilegiada do seu marido?

Sempre lhe disse qual era a minha opinião, concordando ou discordando. Mas não fui a grande conselheira do meu marido. Tínhamos amigos que eram grandes figuras da política e a quem ele ouvia.

Mas ele pedia a sua opinião?

Às vezes. E conversávamos livremente sobre os problemas.

Exercia também a sua magistratura de influência?

Tanto quanto podia... tanto quanto podia... Mas foi muito pouca.

Tem, no entanto, o seu próprio legado. O que faz para o preservar? Escreve memórias?

Não. E incrivelmente perdi muitos papéis. Passo o meu testemunho participando em muitos congressos em Portugal e no estrangeiro.

Uma das suas áreas de interesse são as questões dos direitos das mulheres...

Sempre me interessei. Desde jovem.

O que aprendeu sobre a condição feminina?

Vi de perto o que foi a luta de mulheres de grande estatura cívica, como Maria Isabel Aboim Inglês, Maria Lamas, Elina Guimarães e Cesina Bermudes, entre outras. Participei, apaixonadamente, nessa luta. E, hoje, grande parte das pessoas nem sabe quem elas foram. Maria Isabel Aboim Inglês pertenceu à comissão central do MUD (Movimento de Unidade Democrática) e esteve presa várias vezes. Foi destituída de professora na Faculdade de Letras, fundou um colégio e, devido a uma pequena irregularidade, fecharam-lho, e ela acabou a ser modista. A minha filha chama-se Isabel por causa dela. Ela e o Chico Zenha [Francisco Salgado Zenha] foram os padrinhos da minha filha.

Como disse, essas mulheres foram esquecidas...

Mas com certeza! As mulheres ficam sempre na sombra.

O que lhe diz a sua experiência sobre essa condição de sombra?

Agora já há uma participação maior das mulheres na sociedade. No meu tempo não. Isto tem progredido bastante, embora ainda não o suficiente. Até já há mulheres Presidentes da República. Claro que a igualdade ainda não é total. Por exemplo, ainda há lugares em que a compensação financeira é inferior. E o acesso aos lugares de decisão é mais difícil do que para os homens. Mas lá chegaremos. Estou convencida de que lá chegaremos.

É a favor de quotas para as mulheres nas listas eleitorais?

Sou. Mas o meu marido foi contra. Dizia: "As mulheres sobem pelo seu valor." Sei que é uma forma artificial, mas é a única que consegue ajudar a transformar mentalidades. Sobretudo a dos homens, para um dia admitirem que as mulheres têm os mesmos direitos.

Para si, sempre foi claro que as mulheres têm os mesmos direitos dos homens ou foi uma aprendizagem de vida política?

Foi sempre claro. Sempre. Nasci numa casa de sete filhos, quatro rapazes e três raparigas, com uma mãe que era professora primária e um pai militar. A igualdade de direitos dentro de casa era muito importante. Sei que na maioria das casas daquele tempo não se passava assim, e a maior parte das mulheres era reduzida ao trabalho doméstico. Lembro-me de um amigo, Álvaro Salema, que foi um grande jornalista e que era ridicularizado pelo facto de ajudar a mulher a dar biberões e a mudar as fraldas dos filhos.

Mas, sendo o seu pai militar, havia essa partilha?

O meu pai ajudava muito a minha mãe. E havia muitos militares que tinham esse tipo de mentalidade. Portanto, desde jovem tive essa consciência. E também o sentido de responsabilidade social. Por isso, muitas vezes acontece-me andar pelo país e virem pessoas do povo dizer: "Deixe-me dar-lhe um beijinho, que gosto muito da senhora." Fico muito sensibilizada, porque não fiz nada de especial. O que fiz foi ter uma atitude que se inscrevia numa linha de continuidade da minha atuação desde a juventude. Tudo isso deu sinceridade às minhas ações, que o povo sentia quando fui a mulher do Presidente da República.

A expressão "povo" caiu em desuso, hoje referem-se aos "portugueses" e às "portuguesas"...

Mas nós somos o povo! E os políticos devem ter a preocupação de melhorar as condições do povo a que pertencem e de amenizar e apagar as desigualdades que existem. E isso está a acontecer. Temos, aliás, grandes figuras femininas que lutam por essa igualdade. É o caso da dra. Elza Pais, agora secretária de Estado, que tem desencadeado uma acção notabilíssima nesse sentido.

Na sua geração, mesmo os jovens da oposição, que andavam a lutar pela igualdade social, em casa praticavam muito pouco a igualdade de género. Considera que a ideia de igualdade também foi transposta para o seu casamento?

Sim, claro. E eu também transmiti aos meus filhos essa ideia de que é preciso igualdade entre homens e mulheres. É verdade que a minha mãe dizia muitas vezes que uma rapariga não deve fazer isto, não deve fazer aquilo, foi contra eu ir para o teatro... E o meu pai só me deixou fazer o curso de Arte Dramática do Conservatório com a condição de eu tirar um curso superior... e fui para Letras.

Nuno Botelho

O teatro era o seu maior sonho?

Sim. Gostava muito. Exprimi o meu grande sonho num exame que fiz no 5º ano ao responder: "Quero ser advogada para defender os pobres. E quero ser atriz porque quero representar."

A sua mãe era contra devido ao estilo de vida das pessoas do teatro?

Até chorava. O meu pai dizia: "Não. Eu tenho confiança na minha filha e acho que não são as profissões que fazem as pessoas, mas as pessoas que fazem as profissões."

No teatro, foi uma grande promessa do seu tempo. Gostava muito de representar?

Sim, imenso.

Mas não foi só o teatro que a notabilizou no seu tempo da Faculdade de Letras. Era uma declamadora que inflamava as plateias.

É verdade. Gostava muito de dizer poemas, sobretudo do "Novo Cancioneiro", que, como se sabe, tinha muitos textos revolucionários de Joaquim Namorado, Mário Dionísio, Manuel da Fonseca... O Sidónio Muralha, de quem tanto gostava de dizer o 'Soneto Imperfeito da Caminha Imperfeita': "Já não há mordaças, nem ameaças, nem algemas que possam impedir a nossa caminhada/ onde cada poema é uma bandeira desfraldada/ e os poetas são os próprios versos dos poemas..." Estão a ver? Eu dizia isto com toda a minha alma, e eram verdadeiros panfletos. Ia com o coro de Fernando Lopes Graça a Almada, ao Barreiro, onde havia as sociedades operárias, e ficavam todos muito eletrizados.

E que peças gostou especialmente de representar?

A "Benilde ou a Virgem-Mãe", de José Régio, e "A Casa de Bernarda Alba", de Garcia Lorca. Esta foi uma das últimas peças que representei, fazia a filha rebelde, claro, a Adela. Muitas vezes, os censores eram ignorantes e não se apercebiam do significado das coisas - como da personagem Bernarda Alba, a mãe, que encarnava a prepotência e era interpretada pela grande atriz Palmira Bastos... Andámos a representá-la pelo país. Quando o fizemos em Coimbra, estava lá toda a intelectualidade que era contra o regime - e havia uma cena muito emotiva, que terminava com a Adela aos gritos. No terceiro ato, essa figura dizia, quebrando a vara que a mãe trazia sempre com ela: "Veja o que eu faço à sua tirania." O teatro ia vindo abaixo com as palmas, bateram, bateram e começaram a chamar pelo meu nome... Eu era muito tímida, mas Palmira Bastos levou-me à frente, e a certa altura atiraram para o palco uma pasta com as fitas da Faculdade de Letras e uma capa. Foi uma noite lindíssima, foi a noite de teatro mais bonita que tive.

Mas pagou caro o êxito dessa noite...

Porque finalmente os censores perceberam a importância da peça. E já não deixaram que fosse representada no Porto. Depois vieram as férias grandes, e quando acabaram telefonei ao sr. Robles Monteiro, que era administrador do teatro e marido da Amélia Rey Colaço, para saber o horário de trabalho do dia seguinte. Disse-me com uma voz muito aflita: "Mariazinha, a Amélia precisa muito de falar consigo. Venha ao teatro!" Fui. E foi quando ela me disse: "Tenho muita pena, mas não me deixam contratá-la de novo!"

Foi um desgosto ouvir isso?

Uma coisa terrível. Dizia aos meus amigos: "Lutei pela dignificação do teatro, procurei representar o melhor possível e puseram-me fora!" No ano seguinte casei e fui fazer outras coisas.

Nos anos 60 voltou aos palcos...

Fiz duas peças com o Jacinto Ramos no Teatro Villaret. Gosto muito. Ainda hoje sei poemas inteiros de cor e que dizia há muitos anos.

Lê em voz alta, só para si?

Às vezes, sim. Recorro aos poetas para mostrar de uma forma bela aquilo que penso. Sucede-me com o Fernando Pessoa (com um Álvaro de Campos, por exemplo), o Régio, o Teixeira de Pascoaes... O que é natural, pois os poetas exprimem os nossos pensamentos de uma maneira privilegiada. Quando vem o Outono lembro-me logo do Camilo Pessanha, "Outono de seu riso magoado..."

O envelhecimento é uma tranquilidade? Ainda estão presentes algumas inquietações de vida inteira?

O envelhecimento é um acumular de experiências que fizemos durante a vida e que devemos transmitir aos mais novos, se pudermos. Isso é muito importante. Claro que, quando olho para o retrato que a minha filha tem em casa de quando representei a Benilde, tinha eu 20 anos, vejo a grande diferença que faço. Sinto que o tempo passou extraordinariamente rápido.

Ainda se sente, de algum modo, próxima dessa rapariga?

As ideias que tenho sobre o modo de encarar a vida, aquilo que sucede no mundo... vejo que há a mesma preocupação. Como já disse, toda a minha atuação está numa linha de continuidade de tudo o que fiz quando era jovem. Quando olho para a minha cara, vejo o envelhecimento que houve, mas sinto que é a ordem natural das coisas. Os africanos costumam dizer que quando um velho morre é uma biblioteca inteira que desaparece.

O que recorda com mais saudade?

Recordo com muita emoção os momentos que vivi com os meus pais e com os meus irmãos. Adorava-os. Recordo também todos os momentos que vivi com o meu marido quando éramos mais novos, o nascimento dos meus filhos, o regresso dele do exílio em São Tomé, o 25 de Abril, quando eu e o meu marido estávamos na Alemanha. Foram momentos muito especiais e emocionantes.

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