Ladrões de Bicicletas: Prova de mérito

22-05-2019
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Foi há mais de uma semana, mas vale a pena regressar às declarações de António Costa sobre os refugiados e a limpeza das matas. É que além de Costa ter estado realmente mal nesta ocasião, independentemente das provas dadas que possui em matéria de humanismo e acolhimento de imigrantes, há alguns aspectos desta questão que ainda não foram referidos.

António Costa esteve mal, para começar, porque há um subtexto que perpassa das suas palavras e que Costa não pode ignorar. Mesmo que pretendesse apenas exemplificar algumas das áreas em que existe necessidade de mão-de-obra em Portugal, como foi posteriormente alegado, as suas declarações não deixam de reforçar a visão utilitária do problema. Ora, o critério utilitário, a ideia de que os refugiados podem ser úteis para Portugal e para os portugueses, não é um argumento legítimo, ou pelo menos não deveria sê-lo. O acolhimento de refugiados deve ser motivado, acima de tudo, por questões de solidariedade e salvaguarda dos direitos humanos. Secundariamente, deve sê-lo por considerações de reciprocidade e respeito pelas convenções internacionais de que Portugal é signatário, incluindo a Declaração Universal
dos Direitos Humanos. Mas não deve sê-lo por critérios utilitários, pois isso reforça a ideia, ética e politicamente
condenável, de que se porventura essa utilidade imediata não existir, se por acaso não existirem “coisas para eles fazerem”, desaparecem as razões para que os devamos acolher.

Mas há um segundo motivo, mais subtil, para que esta intervenção seja tão infeliz. De forma consciente ou inconsciente, a intervenção de António Costa inscreve-se numa tradição discursiva em que a limpeza da mata constitui o arquétipo da contrapartida que deve ser prestada por quem queira merecer apoios do Estado. Repare-se como os últimos governos – tanto do PSD/CDS como do PS – têm obrigado desempregados e beneficiários do RSI a dedicarem-se também eles à limpeza das florestas sob pena de perderem os respectivos apoios sociais. Na lei e no discurso político, a limpeza da mata, trabalho físico duro e consequentemente apropriado à expiação da “culpa” de se receber um apoio social, tem vindo a tornar-se uma espécie de prova de mérito dos “bons pobres” – se quisermos, uma condição de recursos do merecimento.

Esta visão desvaloriza o trabalho, subverte os direitos e reforça a ideologia punitiva que vira remediados contra pobres. Alinhar com esta linha discursiva é algo que esperamos da direita, mas não de quem se considere socialista.

(publicado no caderno de economia do Expresso de 12/09/2015)

Foi há mais de uma semana, mas vale a pena regressar às declarações de António Costa sobre os refugiados e a limpeza das matas. É que além de Costa ter estado realmente mal nesta ocasião, independentemente das provas dadas que possui em matéria de humanismo e acolhimento de imigrantes, há alguns aspectos desta questão que ainda não foram referidos.

António Costa esteve mal, para começar, porque há um subtexto que perpassa das suas palavras e que Costa não pode ignorar. Mesmo que pretendesse apenas exemplificar algumas das áreas em que existe necessidade de mão-de-obra em Portugal, como foi posteriormente alegado, as suas declarações não deixam de reforçar a visão utilitária do problema. Ora, o critério utilitário, a ideia de que os refugiados podem ser úteis para Portugal e para os portugueses, não é um argumento legítimo, ou pelo menos não deveria sê-lo. O acolhimento de refugiados deve ser motivado, acima de tudo, por questões de solidariedade e salvaguarda dos direitos humanos. Secundariamente, deve sê-lo por considerações de reciprocidade e respeito pelas convenções internacionais de que Portugal é signatário, incluindo a Declaração Universal
dos Direitos Humanos. Mas não deve sê-lo por critérios utilitários, pois isso reforça a ideia, ética e politicamente
condenável, de que se porventura essa utilidade imediata não existir, se por acaso não existirem “coisas para eles fazerem”, desaparecem as razões para que os devamos acolher.

Mas há um segundo motivo, mais subtil, para que esta intervenção seja tão infeliz. De forma consciente ou inconsciente, a intervenção de António Costa inscreve-se numa tradição discursiva em que a limpeza da mata constitui o arquétipo da contrapartida que deve ser prestada por quem queira merecer apoios do Estado. Repare-se como os últimos governos – tanto do PSD/CDS como do PS – têm obrigado desempregados e beneficiários do RSI a dedicarem-se também eles à limpeza das florestas sob pena de perderem os respectivos apoios sociais. Na lei e no discurso político, a limpeza da mata, trabalho físico duro e consequentemente apropriado à expiação da “culpa” de se receber um apoio social, tem vindo a tornar-se uma espécie de prova de mérito dos “bons pobres” – se quisermos, uma condição de recursos do merecimento.

Esta visão desvaloriza o trabalho, subverte os direitos e reforça a ideologia punitiva que vira remediados contra pobres. Alinhar com esta linha discursiva é algo que esperamos da direita, mas não de quem se considere socialista.

(publicado no caderno de economia do Expresso de 12/09/2015)

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