O que aprendemos com a Comissão da Caixa? Os tiros no alvo e os tiros ao lado

19-07-2019
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O que aprendemos com a Comissão da Caixa? Os tiros no alvo e os tiros ao lado /premium

15 Julho 2019

Ana Suspiro

Edgar Caetano

Foi a II Comissão de Inquérito à Caixa e teve acesso a documentos como nunca antes. Mesmo assim, o relatório preliminar chega a vários factos, mas em grande medida fica-se pelas perceções.

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Foram mais de 136 horas de audições, nem todas transcritas a tempo para a elaboração da proposta de relatório, milhares de documentos, muitos dos quais marcados como confidenciais e cuja utilização pública teve de ser feita com pinças.A II Comissão de Inquérito à Caixa teve acesso a documentos como nunca antes depois da lei aprovada este ano pelo Parlamento que obrigou bancos e o supervisor bancário a remeterem relatórios, inspeções, pareceres e atas de reuniões que até então tinham recusado entregar em nome dos sigilo bancário e do segredo de supervisão. E foram ouvidos pela primeira vez não só diretores e segundas linhas da Caixa, mas também os clientes responsáveis pelos créditos mais problemáticos que ficaram por pagar
O relatório preliminar proposto pelo deputado João Almeida chega a vários factos, mas em algumas das questões mais polémicas acabou por ficar pelas perceções, tal como notou Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda, durante a apresentação dos calendários. Ainda assim, a linha de imputação de responsabilidades é mais ou menos clara: em primeiro lugar, a gestão da Caixa e depois a supervisão bancária “burocrática” do Banco de Portugal e o Estado acionista que tutelava o banco e nomeava os seus gestores. De fora deste elenco de responsabilidades ficaram os devedores, mas o projeto de relatório não os esquece nas consequências que defende a título de recomendações.

A CGD tem que apurar as responsabilidades dos processos ruinosos, e utilizar todos os meios legais para se ressarcir das perdas".

O que correu melhor
Esta foi a primeira comissão de inquérito a ter acesso a informação e documentos confidenciais que até agora bancos e supervisor se recusavam a entregar por causa do sigilo. Isso fez com que estes trabalhos tivessem bases muito mais sólidas para trabalhar do que a primeira comissão, no início de 2017. Desta feita, os deputados queixaram-se de que receberam muito material em cima da hora (ou depois da hora) e tiveram de bater o pé para conseguir alguns documentos — mas, globalmente, o resultado foi positivo.
Houve audições mais objetivas e factuais — e menos politizadas, embora fosse possível discernir, em alguns momentos, algumas “sensibilidades” a virem ao de cima. De um modo geral, também, houve perguntas bem fundamentadas e deputados atentos a respostas que não batiam certo com os factos que conheciam — foram exigentes no contraditório.Apesar do voluntarismo do PSD e da resistência do PS, e em certo grau do PCP, à realização de uma comissão de inquérito à Caixa, no final dos trabalhos, Duarte Pacheco (PSD) e João Paulo Correia (PS) concordaram na conclusão: Valeu a pena ter havido esta comissão de inquérito — até porque, como disse o presidente, Luís Leite Ramos, em entrevista ao Observador, houve figuras que foram chamadas a depor e que, para essas pessoas, “ser chamado a uma comissão parlamentar de inquérito é pior do que sentar-se num tribunal”.Ainda que a auditoria independente da consultora EY não tenha sido a base dos trabalhos da comissão, esse trabalho contribuiu para focar os deputados nos principais créditos problemáticos. A falta de tempo invocada por João Almeida como um condicionante negativo aos trabalhos da comissão acabou por ter, pelo menos, um efeito positivo: obrigar os deputados a concentrarem-se naquilo que consideravam verdadeiramente importante esclarecer, evitando desvios politizados por temas acessórios e um número excessivo de audições, como aconteceu em inquéritos mais recentes.Esta comissão beneficiou, também, de uma grande pluralidade dos protagonistas chamados. Sendo esta a segunda comissão de inquérito à recapitalização da Caixa na atual legislatura, muitos dos nomes evidentes a chamar já tinham sido ouvidos. Ainda que fosse incontornável voltar a chamar alguns deles — ex-ministros, ex-presidentes da Caixa, governador do Banco de Portugal — este inquérito teve o mérito de chegar aos níveis intermédios de decisão dentro da Caixa. Não só ex-administradores, mas também a diretores que tudo preparam e fundamentam para as decisões finais — e aos técnicos que fazem recomendações ou alertas. E foi possível perceber como esses inputs são seguidos ou ultrapassados e como se dividem. Ou em muitos casos como não se dividem, nem se assumem.Luís Leite Ramos considerou que, para alguns, ir para uma comissão de inquérito pública é pior do que se sentar num tribunal. A audição a Joe Berardo foi o melhor exemplo.
O desfile de clientes problemáticos pelo parlamento permitiu ao país perceber melhor como funciona o mundo dos negócios, ou pelo menos como funcionava antes da famigerada crise — que frequentemente foi apontada como a desculpa para tudo. Ficou exposta a facilidade com que os milhões trocavam de mãos e a desculpabilização dos que ficaram a dever porque os negócios correram mal — e que, apesar de não pagarem as dívidas, por sinal não estão a cometer nenhuma ilegalidade.A audição a Joe Berardo foi emblemática nesta matéria e, para muitos, um ponto de viragem pela reação pública que gerou. Mas não só: um dos destaques nas conclusões elaboradas por João Almeida foi que durante os trabalhos desta comissão, “verificaram-se importantes desenvolvimentos e ações do setor financeiro no sentido de recuperar os montantes em dívida”. Com que resultados práticos? Veremos.O que falhou na Caixa
A audição das segundas linhas de decisão permitiu perceber como funcionava o processo de decisão interno dentro da Caixa Geral de Depósitos e as falhas e debilidades que apresentava, sobretudo antes da subida dos níveis de exigência por força da regulação após a crise financeira. E essa foi uma fragilidade evidente em vários dos processos de concessão de crédito e ou decisões de negócios que vieram a gerar prejuízos.É nesta linha que aparecem os pareceres condicionados (ou, mesmo desfavoráveis) da direção do risco que foram ignorados ou ultrapassados, sem que isso tivesse ficado devidamente explicado e fundamentado no papel.Ainda que as decisões da administração de um banco sejam colegiais, tornou-se claro que houve protagonismo de alguns antigos administradores em alguns negócios que correram mal. O caso de Vale do Lobo, cujo dossiê com a proposta de crédito chegou aos serviços comerciais da Caixa via Armando Vara, é o mais evidente, mas não foi o único.A aparente ausência de discussão interna dentro dos órgãos decisores da Caixa, sejam os conselhos de crédito, seja o conselho de administração, é aliás sublinhada numas das conclusões propostas: “Segundo alguns depoimentos, a presença de alguns administradores (…) destinava-se à mera constituição de quórum, no pressuposto da confiança, sem evidência de debate ou confronto de posições, o que frustrou os resultados de alterações introduzidas na governance da CGD”.Esta situação potenciou situações detetadas ao longo das audições: ninguém se chegou à frente para assumir a paternidade das operações mais ruinosas, o que dificulta o apuramento de responsabilidades individuais — ainda que o relatório proposto por João Almeida nomeie Santos Ferreira, Armando Vara, Maldonado Gonelha e Francisco Bandeira como tendo “intervenção direta nos créditos mais problemáticos – e até institucionais de cada órgão. Isto além da constatação evidente feita por Teixeira dos Santos, ex-ministro das Finanças, de que “todos falhámos um pouco”.E para o autor do projeto de relatório, “foi evidente, nesta comissão, que a CGD não foi gerida de forma sã e prudente, na concessão de créditos analisados”. O PSD no debate do relatório foi mais longe com Duarte Pacheco a falar em “gestão potencialmente danosa” e comportamentos “potencialmente criminosos”, o que levou João Paulo Correia a avisar: Não cabe ao Parlamento fazer julgamentos.O relatório nomeia Carlos Santos Ferreira (na foto), Armando Vara, Maldonado Gonelha e Francisco Bandeira como tendo “intervenção direta nos créditos mais problemáticos”.
Mas houve coisas que correram mesmo mal e isso é assumido até por protagonistas que tiveram envolvidos nas decisões, ainda que descrito como “normal” para a época e desculpabilizado pela crise financeira. Uma delas foi a concessão de empréstimos para a compra de ações, aceitando como garantia esses títulos. A Caixa chegou a ter 4.600 milhões de euros de crédito suportado em ações, dos quais uma boa fatia estava enterrado no BCP. Um negócio especulativo que para a esquerda nunca deveria ter sido promovido pelo banco público. Mas sobretudo um negócio que correu mal e que pela natureza dos colaterais nem permitia a sua execução. E são várias as conclusões que o apontam:
“As operações de financiamento à aquisição de participações consistiram, e era previsível que assim fosse, um enorme risco sistémico, expondo largamente a CGD à evolução de outro banco”.
“Os financiamentos às aquisições de ações foram concedidos com elevados níveis de alavancagem”.
“A CGD colocou-se várias vezes numa situação em que ficou refém de si própria, credora e acionista de mutuários, o que condicionava os seus direitos nos casos de insolvência”.
E esta última nota reporta-se aos dois negócios que entram no top dos mais ruinosos, onde a Caixa entrou como acionista, sendo também a principal, na verdade quase única, financiadora: Vale do Lobo e a La Seda e Artlant, o nome do projeto de construção de uma fábrica em Sines que acabou por ser totalmente paga pelo banco público depois da empresa química catalã ter falido.O que falhou na supervisão
Para que os problemas na Caixa tenham atingido a dimensão que atingiram — e não só na Caixa, mas em vários bancos — contribuiu o facto de o Banco de Portugal, essencialmente no mandato de Vítor Constâncio, ter sido um supervisor meramente “burocrático”, acusam as conclusões do documento entregue na Assembleia da República esta segunda-feira.O relatório não foi ao ponto de dizer que Vítor Constâncio e a sua equipa eram meros “contabilistas de rácios de capital”, como apontou Mariana Mortágua numa das audições. Mas fica para registo futuro, nas conclusões desta comissão, que o Banco de Portugal nunca tentou  “olhar para além dos rácios de solvabilidade e níveis adequados de liquidez, de cada banco, e não percebendo o risco sistémico de algumas operações”.O caso mais paradigmático foi a exposição que a Caixa Geral de Depósitos chegou a ter ao concorrente BCP, via investidores como Joe Berardo, e que, como vários responsáveis explicaram nesta comissão, se tornou uma bomba-relógio: a Caixa não podia vender tudo no mercado caso contrário isso poderia levar o BCP — e, quiçá, o setor bancário português — a ter problemas muito graves nos mercados financeiros.Mas não foi só na antecipação desses “problemas sistémicos” que o Banco de Portugal falhou. O relatório aponta que o Banco de Portugal se preocupou “com o reforço dos modelos de governance, mas não com a sua operacionalidade”.Um dos pontos criticados aqui é que, a certa altura, pediu-se que houvesse mais administradores a participar nos conselhos de crédito. Mas de que valeu isso se, depois, estes gestores adicionais não questionavam nada, se iam lá só para fazer número, como disse Carlos Costa na entrevista que deu, a dada altura, à SIC?Carlos Costa começou por ser uma das figuras em destaque no início da comissão, mas o seu papel acabou por ser relegado para segundo plano.
O Banco de Portugal “também se dedicou ao registo pró-forma da idoneidade mas não avaliou o comportamento dos administradores, a concretização da segregação de poderes”. O relator, João Almeida, argumentou na apresentação do relatório que nunca houve uma verdadeira avaliação da idoneidade dos administradores da Caixa e de outros bancos.“A supervisão seguiu acriticamente as notas técnicas dos serviços do BdP, não exigindo mais informação do que aquela fornecida, demonstrando mais receio no confronto jurídico com os supervisionados do que com a possibilidade de erros ou fraudes”, acusa o relatório. Palavras duras para Vítor Constâncio, que veio à comissão de inquérito duas vezes e, tanto na primeira como na segunda audição, defendeu que nenhuma falha do supervisor possa ser imputada a uma má atuação do Banco de Portugal enquanto supervisor.Além disso, a comissão encontrou casos em que ficou evidente uma “dualidade de critérios” na atuação de casos semelhantes por parte do Banco de Portugal. “Veja-se Vale do Lobo, onde o BdP escreveu cartas a exigir detalhes da operação mas, depois, no caso do BCP, não exerceu o mesmo zelo; ou como foi usada a “moral suasion” para afastar Filipe Pinhal mas restringiu-se no caso de Francisco Bandeira ou Armando Vara o BdP veio invocar motivos legais para cumprir o seu papel”. Por outras palavras, “o mesmo BdP que invocava a inexistência de atribuição legal para atuar em certos casos, não deixava de o fazer noutros idênticos”.A audição a Filipe Pinhal foi uma das mais marcantes destes trabalhos, sobretudo pelas questões relacionadas com o BCP.
Eduardo Paz Ferreira, ex-presidente da comissão de auditoria da CGD, comentou na sua audição que “é necessário que a banca tenha uma gestão competente e íntegra e que existam mecanismos de fiscalização e supervisão de excelência”. Mas esta comissão revelou, a julgar pelas conclusões, que “o BdP teve uma confiança extrema nas linhas internas de defesa das instituições – direção de risco, auditoria, administração – e externas – revisores e auditores -, tanto que nem perante reparos, ênfases ou denúncias públicas, atuou com celeridade, colocando assim em causa a utilidade da sua supervisão”.A garantia que foi deixada por Carlos Costa, atual governador do Banco de Portugal, é que “o paradigma da atividade de supervisão alterou-se materialmente — e diria substancialmente — no pós-crise. A supervisão passou a ser mais intrusiva, mais cética, mais desafiante, mais pró-ativa, mais abrangente, mais adaptável e mais conclusiva.Ficou a ideia, no debate que houve na segunda-feira, que o PCP gostaria de ver palavras ainda mais duras contra o supervisor. Supervisão burocrática? “Podemos acrescentar outros adjetivos. Sonolenta e sem eficácia”.O que falhou na tutela
Numa comissão de inquérito onde o tema da interferência política foi constante, as conclusões propostas por João Almeida acabam por não a dar como provada. Apesar da aceleração do investimento da Artlant em Sines, com financiamentos da Caixa, “foi reveladora da vontade política de realizar o investimento” que originalmente era da La Seda, mas acabou por ser totalmente feito com dinheiro do Estado.Mais do que intervenção, a inação do Estado parece marcar mais a relação entre o acionista e o banco público. “As irregularidades detetadas pelos órgãos de controlo interno foram reportadas ao Ministério das Finanças, não existindo evidência de diligências no sentido de as colmatar”. Foi sobretudo Teixeira dos Santos, o único ex-ministro das Finanças a ser ouvido, a explicar como eram geridas as interações com a administração da Caixa, tendo deixado garantias de zero intervenção ao nível da gestão corrente e dos vários negócios do banco.Outra das audições mais foi a de Manuel de Oliveira Rego, um ex-revisor de contas externo que indicou que enviava “relatórios trimestrais” à tutela, bem como ao próprio banco — nesses relatórios constavam indícios de coisas graves que se passavam no banco público. Questionado na altura pelo deputado Paulo Sá, do PCP, sobre o que faziam os diferentes ministros das Finanças e se algum dia houve alguma intervenção, Oliveira Rego respondeu: “nunca tivemos nenhum contacto”.Minutos depois, o responsável retificou, ligeiramente, a resposta. “Está aqui a dizer-me o meu colega que, efetivamente, a partir de determinada altura, não sei em que altura foi, o Ministério das Finanças começou a pedir-nos alguns quadros…” Que altura foi essa? “A partir de 2012”, respondeu — ou seja, só em pleno período da troika é que a tutela começou a pedir “uns quadros” ao revisor oficial de contas do banco público. O que Oliveira Rego não chegou a explicar, porém, é porque é que, tendo essas razões para fazer esses avisos, porque é que nunca fez uma reserva às contas — algo que teria tido consequências bem mais concretas.Para Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda, uma das coisas que falharam, e que ficou demonstrada, foi o comportamento do Governo. “Foi mais que negligente, foi errado”, tendo em conta os incentivos dados à gestão para obter lucros de curto prazo, e dividendos para o Estado. E a definição do papel da Caixa como banco público e das suas missões foi outra das falhas apontadas ao poder político, que também não esteve bem na escolha dos gestores e na sua responsabilização.

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Ana Suspiro

Edgar Caetano

Foi a II Comissão de Inquérito à Caixa e teve acesso a documentos como nunca antes. Mesmo assim, o relatório preliminar chega a vários factos, mas em grande medida fica-se pelas perceções.

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Foram mais de 136 horas de audições, nem todas transcritas a tempo para a elaboração da proposta de relatório, milhares de documentos, muitos dos quais marcados como confidenciais e cuja utilização pública teve de ser feita com pinças.A II Comissão de Inquérito à Caixa teve acesso a documentos como nunca antes depois da lei aprovada este ano pelo Parlamento que obrigou bancos e o supervisor bancário a remeterem relatórios, inspeções, pareceres e atas de reuniões que até então tinham recusado entregar em nome dos sigilo bancário e do segredo de supervisão. E foram ouvidos pela primeira vez não só diretores e segundas linhas da Caixa, mas também os clientes responsáveis pelos créditos mais problemáticos que ficaram por pagar
O relatório preliminar proposto pelo deputado João Almeida chega a vários factos, mas em algumas das questões mais polémicas acabou por ficar pelas perceções, tal como notou Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda, durante a apresentação dos calendários. Ainda assim, a linha de imputação de responsabilidades é mais ou menos clara: em primeiro lugar, a gestão da Caixa e depois a supervisão bancária “burocrática” do Banco de Portugal e o Estado acionista que tutelava o banco e nomeava os seus gestores. De fora deste elenco de responsabilidades ficaram os devedores, mas o projeto de relatório não os esquece nas consequências que defende a título de recomendações.

A CGD tem que apurar as responsabilidades dos processos ruinosos, e utilizar todos os meios legais para se ressarcir das perdas".

O que correu melhor
Esta foi a primeira comissão de inquérito a ter acesso a informação e documentos confidenciais que até agora bancos e supervisor se recusavam a entregar por causa do sigilo. Isso fez com que estes trabalhos tivessem bases muito mais sólidas para trabalhar do que a primeira comissão, no início de 2017. Desta feita, os deputados queixaram-se de que receberam muito material em cima da hora (ou depois da hora) e tiveram de bater o pé para conseguir alguns documentos — mas, globalmente, o resultado foi positivo.
Houve audições mais objetivas e factuais — e menos politizadas, embora fosse possível discernir, em alguns momentos, algumas “sensibilidades” a virem ao de cima. De um modo geral, também, houve perguntas bem fundamentadas e deputados atentos a respostas que não batiam certo com os factos que conheciam — foram exigentes no contraditório.Apesar do voluntarismo do PSD e da resistência do PS, e em certo grau do PCP, à realização de uma comissão de inquérito à Caixa, no final dos trabalhos, Duarte Pacheco (PSD) e João Paulo Correia (PS) concordaram na conclusão: Valeu a pena ter havido esta comissão de inquérito — até porque, como disse o presidente, Luís Leite Ramos, em entrevista ao Observador, houve figuras que foram chamadas a depor e que, para essas pessoas, “ser chamado a uma comissão parlamentar de inquérito é pior do que sentar-se num tribunal”.Ainda que a auditoria independente da consultora EY não tenha sido a base dos trabalhos da comissão, esse trabalho contribuiu para focar os deputados nos principais créditos problemáticos. A falta de tempo invocada por João Almeida como um condicionante negativo aos trabalhos da comissão acabou por ter, pelo menos, um efeito positivo: obrigar os deputados a concentrarem-se naquilo que consideravam verdadeiramente importante esclarecer, evitando desvios politizados por temas acessórios e um número excessivo de audições, como aconteceu em inquéritos mais recentes.Esta comissão beneficiou, também, de uma grande pluralidade dos protagonistas chamados. Sendo esta a segunda comissão de inquérito à recapitalização da Caixa na atual legislatura, muitos dos nomes evidentes a chamar já tinham sido ouvidos. Ainda que fosse incontornável voltar a chamar alguns deles — ex-ministros, ex-presidentes da Caixa, governador do Banco de Portugal — este inquérito teve o mérito de chegar aos níveis intermédios de decisão dentro da Caixa. Não só ex-administradores, mas também a diretores que tudo preparam e fundamentam para as decisões finais — e aos técnicos que fazem recomendações ou alertas. E foi possível perceber como esses inputs são seguidos ou ultrapassados e como se dividem. Ou em muitos casos como não se dividem, nem se assumem.Luís Leite Ramos considerou que, para alguns, ir para uma comissão de inquérito pública é pior do que se sentar num tribunal. A audição a Joe Berardo foi o melhor exemplo.
O desfile de clientes problemáticos pelo parlamento permitiu ao país perceber melhor como funciona o mundo dos negócios, ou pelo menos como funcionava antes da famigerada crise — que frequentemente foi apontada como a desculpa para tudo. Ficou exposta a facilidade com que os milhões trocavam de mãos e a desculpabilização dos que ficaram a dever porque os negócios correram mal — e que, apesar de não pagarem as dívidas, por sinal não estão a cometer nenhuma ilegalidade.A audição a Joe Berardo foi emblemática nesta matéria e, para muitos, um ponto de viragem pela reação pública que gerou. Mas não só: um dos destaques nas conclusões elaboradas por João Almeida foi que durante os trabalhos desta comissão, “verificaram-se importantes desenvolvimentos e ações do setor financeiro no sentido de recuperar os montantes em dívida”. Com que resultados práticos? Veremos.O que falhou na Caixa
A audição das segundas linhas de decisão permitiu perceber como funcionava o processo de decisão interno dentro da Caixa Geral de Depósitos e as falhas e debilidades que apresentava, sobretudo antes da subida dos níveis de exigência por força da regulação após a crise financeira. E essa foi uma fragilidade evidente em vários dos processos de concessão de crédito e ou decisões de negócios que vieram a gerar prejuízos.É nesta linha que aparecem os pareceres condicionados (ou, mesmo desfavoráveis) da direção do risco que foram ignorados ou ultrapassados, sem que isso tivesse ficado devidamente explicado e fundamentado no papel.Ainda que as decisões da administração de um banco sejam colegiais, tornou-se claro que houve protagonismo de alguns antigos administradores em alguns negócios que correram mal. O caso de Vale do Lobo, cujo dossiê com a proposta de crédito chegou aos serviços comerciais da Caixa via Armando Vara, é o mais evidente, mas não foi o único.A aparente ausência de discussão interna dentro dos órgãos decisores da Caixa, sejam os conselhos de crédito, seja o conselho de administração, é aliás sublinhada numas das conclusões propostas: “Segundo alguns depoimentos, a presença de alguns administradores (…) destinava-se à mera constituição de quórum, no pressuposto da confiança, sem evidência de debate ou confronto de posições, o que frustrou os resultados de alterações introduzidas na governance da CGD”.Esta situação potenciou situações detetadas ao longo das audições: ninguém se chegou à frente para assumir a paternidade das operações mais ruinosas, o que dificulta o apuramento de responsabilidades individuais — ainda que o relatório proposto por João Almeida nomeie Santos Ferreira, Armando Vara, Maldonado Gonelha e Francisco Bandeira como tendo “intervenção direta nos créditos mais problemáticos – e até institucionais de cada órgão. Isto além da constatação evidente feita por Teixeira dos Santos, ex-ministro das Finanças, de que “todos falhámos um pouco”.E para o autor do projeto de relatório, “foi evidente, nesta comissão, que a CGD não foi gerida de forma sã e prudente, na concessão de créditos analisados”. O PSD no debate do relatório foi mais longe com Duarte Pacheco a falar em “gestão potencialmente danosa” e comportamentos “potencialmente criminosos”, o que levou João Paulo Correia a avisar: Não cabe ao Parlamento fazer julgamentos.O relatório nomeia Carlos Santos Ferreira (na foto), Armando Vara, Maldonado Gonelha e Francisco Bandeira como tendo “intervenção direta nos créditos mais problemáticos”.
Mas houve coisas que correram mesmo mal e isso é assumido até por protagonistas que tiveram envolvidos nas decisões, ainda que descrito como “normal” para a época e desculpabilizado pela crise financeira. Uma delas foi a concessão de empréstimos para a compra de ações, aceitando como garantia esses títulos. A Caixa chegou a ter 4.600 milhões de euros de crédito suportado em ações, dos quais uma boa fatia estava enterrado no BCP. Um negócio especulativo que para a esquerda nunca deveria ter sido promovido pelo banco público. Mas sobretudo um negócio que correu mal e que pela natureza dos colaterais nem permitia a sua execução. E são várias as conclusões que o apontam:
“As operações de financiamento à aquisição de participações consistiram, e era previsível que assim fosse, um enorme risco sistémico, expondo largamente a CGD à evolução de outro banco”.
“Os financiamentos às aquisições de ações foram concedidos com elevados níveis de alavancagem”.
“A CGD colocou-se várias vezes numa situação em que ficou refém de si própria, credora e acionista de mutuários, o que condicionava os seus direitos nos casos de insolvência”.
E esta última nota reporta-se aos dois negócios que entram no top dos mais ruinosos, onde a Caixa entrou como acionista, sendo também a principal, na verdade quase única, financiadora: Vale do Lobo e a La Seda e Artlant, o nome do projeto de construção de uma fábrica em Sines que acabou por ser totalmente paga pelo banco público depois da empresa química catalã ter falido.O que falhou na supervisão
Para que os problemas na Caixa tenham atingido a dimensão que atingiram — e não só na Caixa, mas em vários bancos — contribuiu o facto de o Banco de Portugal, essencialmente no mandato de Vítor Constâncio, ter sido um supervisor meramente “burocrático”, acusam as conclusões do documento entregue na Assembleia da República esta segunda-feira.O relatório não foi ao ponto de dizer que Vítor Constâncio e a sua equipa eram meros “contabilistas de rácios de capital”, como apontou Mariana Mortágua numa das audições. Mas fica para registo futuro, nas conclusões desta comissão, que o Banco de Portugal nunca tentou  “olhar para além dos rácios de solvabilidade e níveis adequados de liquidez, de cada banco, e não percebendo o risco sistémico de algumas operações”.O caso mais paradigmático foi a exposição que a Caixa Geral de Depósitos chegou a ter ao concorrente BCP, via investidores como Joe Berardo, e que, como vários responsáveis explicaram nesta comissão, se tornou uma bomba-relógio: a Caixa não podia vender tudo no mercado caso contrário isso poderia levar o BCP — e, quiçá, o setor bancário português — a ter problemas muito graves nos mercados financeiros.Mas não foi só na antecipação desses “problemas sistémicos” que o Banco de Portugal falhou. O relatório aponta que o Banco de Portugal se preocupou “com o reforço dos modelos de governance, mas não com a sua operacionalidade”.Um dos pontos criticados aqui é que, a certa altura, pediu-se que houvesse mais administradores a participar nos conselhos de crédito. Mas de que valeu isso se, depois, estes gestores adicionais não questionavam nada, se iam lá só para fazer número, como disse Carlos Costa na entrevista que deu, a dada altura, à SIC?Carlos Costa começou por ser uma das figuras em destaque no início da comissão, mas o seu papel acabou por ser relegado para segundo plano.
O Banco de Portugal “também se dedicou ao registo pró-forma da idoneidade mas não avaliou o comportamento dos administradores, a concretização da segregação de poderes”. O relator, João Almeida, argumentou na apresentação do relatório que nunca houve uma verdadeira avaliação da idoneidade dos administradores da Caixa e de outros bancos.“A supervisão seguiu acriticamente as notas técnicas dos serviços do BdP, não exigindo mais informação do que aquela fornecida, demonstrando mais receio no confronto jurídico com os supervisionados do que com a possibilidade de erros ou fraudes”, acusa o relatório. Palavras duras para Vítor Constâncio, que veio à comissão de inquérito duas vezes e, tanto na primeira como na segunda audição, defendeu que nenhuma falha do supervisor possa ser imputada a uma má atuação do Banco de Portugal enquanto supervisor.Além disso, a comissão encontrou casos em que ficou evidente uma “dualidade de critérios” na atuação de casos semelhantes por parte do Banco de Portugal. “Veja-se Vale do Lobo, onde o BdP escreveu cartas a exigir detalhes da operação mas, depois, no caso do BCP, não exerceu o mesmo zelo; ou como foi usada a “moral suasion” para afastar Filipe Pinhal mas restringiu-se no caso de Francisco Bandeira ou Armando Vara o BdP veio invocar motivos legais para cumprir o seu papel”. Por outras palavras, “o mesmo BdP que invocava a inexistência de atribuição legal para atuar em certos casos, não deixava de o fazer noutros idênticos”.A audição a Filipe Pinhal foi uma das mais marcantes destes trabalhos, sobretudo pelas questões relacionadas com o BCP.
Eduardo Paz Ferreira, ex-presidente da comissão de auditoria da CGD, comentou na sua audição que “é necessário que a banca tenha uma gestão competente e íntegra e que existam mecanismos de fiscalização e supervisão de excelência”. Mas esta comissão revelou, a julgar pelas conclusões, que “o BdP teve uma confiança extrema nas linhas internas de defesa das instituições – direção de risco, auditoria, administração – e externas – revisores e auditores -, tanto que nem perante reparos, ênfases ou denúncias públicas, atuou com celeridade, colocando assim em causa a utilidade da sua supervisão”.A garantia que foi deixada por Carlos Costa, atual governador do Banco de Portugal, é que “o paradigma da atividade de supervisão alterou-se materialmente — e diria substancialmente — no pós-crise. A supervisão passou a ser mais intrusiva, mais cética, mais desafiante, mais pró-ativa, mais abrangente, mais adaptável e mais conclusiva.Ficou a ideia, no debate que houve na segunda-feira, que o PCP gostaria de ver palavras ainda mais duras contra o supervisor. Supervisão burocrática? “Podemos acrescentar outros adjetivos. Sonolenta e sem eficácia”.O que falhou na tutela
Numa comissão de inquérito onde o tema da interferência política foi constante, as conclusões propostas por João Almeida acabam por não a dar como provada. Apesar da aceleração do investimento da Artlant em Sines, com financiamentos da Caixa, “foi reveladora da vontade política de realizar o investimento” que originalmente era da La Seda, mas acabou por ser totalmente feito com dinheiro do Estado.Mais do que intervenção, a inação do Estado parece marcar mais a relação entre o acionista e o banco público. “As irregularidades detetadas pelos órgãos de controlo interno foram reportadas ao Ministério das Finanças, não existindo evidência de diligências no sentido de as colmatar”. Foi sobretudo Teixeira dos Santos, o único ex-ministro das Finanças a ser ouvido, a explicar como eram geridas as interações com a administração da Caixa, tendo deixado garantias de zero intervenção ao nível da gestão corrente e dos vários negócios do banco.Outra das audições mais foi a de Manuel de Oliveira Rego, um ex-revisor de contas externo que indicou que enviava “relatórios trimestrais” à tutela, bem como ao próprio banco — nesses relatórios constavam indícios de coisas graves que se passavam no banco público. Questionado na altura pelo deputado Paulo Sá, do PCP, sobre o que faziam os diferentes ministros das Finanças e se algum dia houve alguma intervenção, Oliveira Rego respondeu: “nunca tivemos nenhum contacto”.Minutos depois, o responsável retificou, ligeiramente, a resposta. “Está aqui a dizer-me o meu colega que, efetivamente, a partir de determinada altura, não sei em que altura foi, o Ministério das Finanças começou a pedir-nos alguns quadros…” Que altura foi essa? “A partir de 2012”, respondeu — ou seja, só em pleno período da troika é que a tutela começou a pedir “uns quadros” ao revisor oficial de contas do banco público. O que Oliveira Rego não chegou a explicar, porém, é porque é que, tendo essas razões para fazer esses avisos, porque é que nunca fez uma reserva às contas — algo que teria tido consequências bem mais concretas.Para Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda, uma das coisas que falharam, e que ficou demonstrada, foi o comportamento do Governo. “Foi mais que negligente, foi errado”, tendo em conta os incentivos dados à gestão para obter lucros de curto prazo, e dividendos para o Estado. E a definição do papel da Caixa como banco público e das suas missões foi outra das falhas apontadas ao poder político, que também não esteve bem na escolha dos gestores e na sua responsabilização.

Não queremos ser todos iguais, pois não?

Maio de 2014, nasceu o Observador. Junho de 2019, nasceu a Rádio Observador.

Há cinco anos poucos acreditavam que era possível criar um novo jornal de qualidade em Portugal, ainda por cima só online. Foi possível. Agora chegou a vez da rádio, de novo construída em moldes que rompem com as rotinas e os hábitos estabelecidos.

Nestes anos o caminho do Observador foi feito sem compromissos. Nunca sacrificámos a procura do máximo rigor no nosso jornalismo, tal como nunca abdicámos de uma feroz independência, sem concessões. Ao mesmo tempo não fomos na onda – o Observador quis ser diferente dos outros de órgãos de informação, porque não queremos ser todos iguais, nem pensar todos da mesma maneira, pois não?

Fizemos este caminho passo a passo, contando com os nossos leitores, que todos os meses são mais. E, desde há pouco mais de um ano, com os leitores que são também nossos assinantes. Cada novo passo que damos depende deles, pelo que não temos outra forma de o dizer – se é leitor do Observador, se gosta do Observador, se sente falta do Observador, se acha que o Observador é necessário para que mais ar fresco circule no espaço público da nossa democracia, então dê o pequeno passo de fazer uma assinatura.

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