Eutanásia chumbada por cinco votos numa votação em que se declamou poesia

30-05-2018
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Do lado de fora do Parlamento apelava à emoção: “Por favor, não matem os velhinhos”, lia-se num cartaz de manifestantes contra a eutanásia. Do lado de dentro também: citou-se Torga, Saramago e Pessoa, pediu-se que os deputados pusessem “a mão no coração” e “não traíssem o povo”. No final, a chave do enigma ficou onde se sabia que ia estar: nas mãos do PSD, que sem ter um deputado que falasse a favor acabou por não deixar as iniciativas passar

Texto Mariana Lima Cunha Fotos Nuno Botelho

Assim que a última deputada, a socialista Wanda Guimarães, anunciou o seu voto, levantou-se um ruído impossível de ignorar nas bancadas. Desde que as votações iam a meio que já se percebia: o contra iria ganhar. Os deputados que se tinham mostrado indecisos e que podiam inclinar a decisão para o “sim” estavam a abster-se ou a mostrar indecisões entre os projetos.

A eutanásia não será despenalizada: faltaram cinco votos favoráveis para isso acontecer (a iniciativa que reuniu mais apoios, a do PS, teve 110 votos a favor, quando precisaria de 115 para ser viabilizada, tendo em conta que estavam 229 deputados presentes). A chave esteve nos indecisos, que acabaram por se dividir na forma como votaram os projetos-lei, que eram quatro - com pequenas diferenças mas que não tinham que ver com o conteúdo propriamente dito. A resposta acabou por ficar, como se previa, nas mãos do PSD. Mas também houve uma surpresa do lado do PS: o deputado Miranda Calha, que não constava nas listas conhecidas de indecisos, votou contra. E vários deputados do PS votaram favoravelmente apenas a proposta do próprio partido, deixando as de BE, PAN e PEV cair.

A tarde foi de suspense. A expectativa prolongava-se, aliás, desde que o dia começou: todas as informações pareciam incertas e mudavam a cada minuto. Se num momento se dava por garantida a vitória do “sim” à despenalização da eutanásia, no seguinte já se comentava que um deputado que seria decisivo ficara doente e não iria ao Parlamento. Quando já decorriam os primeiros minutos do debate, seguramente um dos mais aguardados desde o início do ano, continuava a ser impossível garantir resultados.

Talvez por isso, quando tomou a palavra, o deputado José Manuel Pureza, do BE, fez questão de “dar uma palavra” solidária aos deputados do PSD a favor dos projetos – uma espécie de apelo também, num momento em que estava justamente na mão desses deputados a aprovação dos diplomas. “Quero deixar uma palavra de muita confiança aos que na bancada do PSD saberão hoje interpretar a matriz liberal e humanista do partido”, afirmou, provocando muitos protestos e reclamações na bancada social-democrata.

Apesar de o lado do PSD estar dividido e de residir naquela bancada a chave para a vitória da despenalização, quem tomou repetidamente a palavra para falar e pedir esclarecimentos aos deputados dos outros partidos foi Rubina Berardo, que votou contra os projetos. E seguiu-se Fernando Negrão, líder parlamentar do PSD, que, já se sabia, também não é favorável à despenalização. “Venho falar daquele que acredito ser o sentimento maioritário da bancada social-democrata”, anunciou.

A maioria social-democrata era contra – mas o pequeno grupo de deputados a favor (até ao momento da votação, contavam-se oito) seria o responsável por um possível desempate. Apesar disso, Negrão, que começou por reclamar apenas sobre um debate feito sem “ponderação” ou “para cumprir calendário”, acabou por cair, nos argumentos, para o lado contrário à despenalização. Não se ouviram, do lado do PSD, vozes favoráveis aos projetos. E no momento da votação, acabaram mesmo por não deixar as iniciativas passar.

BE ao ataque associou PCP a CDS e Cavaco

Só dois partidos tinham deixado claro que votariam contra, em peso, os projetos em causa. Era o caso do PCP, que acabou por só esclarecer a sua posição contrária à despenalização na semana passada e que no debate disse ser “inaceitável” que “o mesmo Estado que não garante aos seus cidadãos as condições para um fim de vida digno lhes garanta condições para pôr termo à vida em nome da dignidade”. O Bloco não perdoou. Mariana Mortágua tomou a palavra para atacar diretamente o deputado comunista António Filipe – e associar o partido ao CDS, único outro partido contrário à despenalização. Disse que ambos fizeram o “discurso do medo”, associou o deputado a Cavaco Silva ou a Assunção Cristas, que se assumiram frontalmente contra. E até aos valores do CDS, falando de uma visão “determinada por Deus” – e acabando a citar Saramago.

Do lado do CDS, os argumentos emocionais começavam, minutos antes, de fora do Parlamento. O suspense sentia-se nas escadarias da Assembleia, onde várias centenas se juntavam para ouvir o testemunho de um doente com cancro. Falava em tom inflamado, a pequena multidão respondia de forma acesa. “Por favor não nos matem, queremos viver.” Os manifestantes pelo lado do “não”, que seguravam cartazes nos quais se lia, por exemplo, “por favor não matem os velhinhos”, irrompiam em aplausos. Mas este não era um protesto apolítico: logo atrás do palanque estava um grupo de deputados, à espera de falar. E entre eles Assunção Cristas, presidente do CDS – o partido que, desde que o tema começou a ser discutido, se mostrou intransigentemente contra a despenalização.

Fora do Parlamento, João Gonçalves Pereira, deputado centrista, subia ao palanque para assegurar: “Daqui a momentos irei exercer o meu direito de voto numa matéria em que o meu partido deu liberdade de voto e todos os nossos 18 deputados votarão contra”. Dentro do hemiciclo, a também centrista Isabel Galriça Neto argumentava contra “o homicídio a pedido”, completando: “Não há vidas que valem a pena ser vividas e outras não. Os bons fins nunca justificam maus meios”. E de novo falava de projetos particularmente definidores, que “confrontam de forma radical princípios estruturantes da nossa sociedade, alteram profundamente a atual dinâmica social”.

Pouco depois, era um deputado médico – tal como Galriça Neto -, o socialista António Sales, que se encarregava de responder. Tinha o juramento de Hipócrates na mão e lia excertos: “A saúde e bem-estar do meu doente serão as minhas primeiras preocupações”; “respeitarei a autonomia e a dignidade do meu doente”. E, recusando prolongar doenças que “humilham um ser consciente da sua condição”, arrancava aplausos também às bancadas do BE e do PAN. No PS, o deputado Alexandre Quintanilha era igualmente aplaudido por outras bancadas que não a sua, assumindo uma posição que falava a todos: "O diálogo entre os que olham para a vida humana como uma dádiva e os que a consideram um processo de construção e consolidação não é fácil".

Poesia e coração numa discussão emotiva

Não é todos os dias que se ouve poesia no Parlamento. Mas aconteceu ainda o debate desta tarde não ia longo. O citado foi Fernando Pessoa, através do heterónimo Alberto Caeiro, num verso que reza assim: “O único sentido autêntico das coisas é não terem sentido nenhum”. E o deputado socialista Bacelar Vasconcelos completou: “O único sentido da vida humana é aquele que cada um de nós, em consciência, lhe quiser atribuir”.

As discussões sobre o sentido da vida, os argumentos emotivos, os apelos a que os deputados pusessem “a mão no coração” ou a que não “traíssem o povo” marcaram um debate que foi forçosamente diferente do habitual: o que se discutia era a despenalização da eutanásia, matéria sobre a qual, assumiram todas as partes, não é fácil decidir e legislar. A forma civilizada como decorreu, com menos ataques do que é costume, acabou por merecer um elogio do presidente da Assembleia, Ferro Rodrigues.

A discussão foi “complexa”, como quase todas as bancadas concordaram, e dividiu os próprios partidos. A votação em si também: nada facilitou a tarefa a quem a acompanhava. Primeiro porque, a pedido do CDS, foi feita de forma uninominal, ou seja, à cabeça e não por bancadas, obrigando a que cada deputado se levantasse e dissesse como queria votar. Depois estavam em causa vários projetos (PS, PAN, BE e PEV), o que significou que tiveram de opinar sobre eventuais diferenças entre eles. E, por último, as contas ficaram até à última absolutamente partidas: uma mudança de opinião ou uma abstenção podia ser decisiva, algo passível de acontecer nos dois maiores grupos parlamentares – PSD e PS. Ambos deram liberdade de voto.

Do lado de fora do Parlamento apelava à emoção: “Por favor, não matem os velhinhos”, lia-se num cartaz de manifestantes contra a eutanásia. Do lado de dentro também: citou-se Torga, Saramago e Pessoa, pediu-se que os deputados pusessem “a mão no coração” e “não traíssem o povo”. No final, a chave do enigma ficou onde se sabia que ia estar: nas mãos do PSD, que sem ter um deputado que falasse a favor acabou por não deixar as iniciativas passar

Texto Mariana Lima Cunha Fotos Nuno Botelho

Assim que a última deputada, a socialista Wanda Guimarães, anunciou o seu voto, levantou-se um ruído impossível de ignorar nas bancadas. Desde que as votações iam a meio que já se percebia: o contra iria ganhar. Os deputados que se tinham mostrado indecisos e que podiam inclinar a decisão para o “sim” estavam a abster-se ou a mostrar indecisões entre os projetos.

A eutanásia não será despenalizada: faltaram cinco votos favoráveis para isso acontecer (a iniciativa que reuniu mais apoios, a do PS, teve 110 votos a favor, quando precisaria de 115 para ser viabilizada, tendo em conta que estavam 229 deputados presentes). A chave esteve nos indecisos, que acabaram por se dividir na forma como votaram os projetos-lei, que eram quatro - com pequenas diferenças mas que não tinham que ver com o conteúdo propriamente dito. A resposta acabou por ficar, como se previa, nas mãos do PSD. Mas também houve uma surpresa do lado do PS: o deputado Miranda Calha, que não constava nas listas conhecidas de indecisos, votou contra. E vários deputados do PS votaram favoravelmente apenas a proposta do próprio partido, deixando as de BE, PAN e PEV cair.

A tarde foi de suspense. A expectativa prolongava-se, aliás, desde que o dia começou: todas as informações pareciam incertas e mudavam a cada minuto. Se num momento se dava por garantida a vitória do “sim” à despenalização da eutanásia, no seguinte já se comentava que um deputado que seria decisivo ficara doente e não iria ao Parlamento. Quando já decorriam os primeiros minutos do debate, seguramente um dos mais aguardados desde o início do ano, continuava a ser impossível garantir resultados.

Talvez por isso, quando tomou a palavra, o deputado José Manuel Pureza, do BE, fez questão de “dar uma palavra” solidária aos deputados do PSD a favor dos projetos – uma espécie de apelo também, num momento em que estava justamente na mão desses deputados a aprovação dos diplomas. “Quero deixar uma palavra de muita confiança aos que na bancada do PSD saberão hoje interpretar a matriz liberal e humanista do partido”, afirmou, provocando muitos protestos e reclamações na bancada social-democrata.

Apesar de o lado do PSD estar dividido e de residir naquela bancada a chave para a vitória da despenalização, quem tomou repetidamente a palavra para falar e pedir esclarecimentos aos deputados dos outros partidos foi Rubina Berardo, que votou contra os projetos. E seguiu-se Fernando Negrão, líder parlamentar do PSD, que, já se sabia, também não é favorável à despenalização. “Venho falar daquele que acredito ser o sentimento maioritário da bancada social-democrata”, anunciou.

A maioria social-democrata era contra – mas o pequeno grupo de deputados a favor (até ao momento da votação, contavam-se oito) seria o responsável por um possível desempate. Apesar disso, Negrão, que começou por reclamar apenas sobre um debate feito sem “ponderação” ou “para cumprir calendário”, acabou por cair, nos argumentos, para o lado contrário à despenalização. Não se ouviram, do lado do PSD, vozes favoráveis aos projetos. E no momento da votação, acabaram mesmo por não deixar as iniciativas passar.

BE ao ataque associou PCP a CDS e Cavaco

Só dois partidos tinham deixado claro que votariam contra, em peso, os projetos em causa. Era o caso do PCP, que acabou por só esclarecer a sua posição contrária à despenalização na semana passada e que no debate disse ser “inaceitável” que “o mesmo Estado que não garante aos seus cidadãos as condições para um fim de vida digno lhes garanta condições para pôr termo à vida em nome da dignidade”. O Bloco não perdoou. Mariana Mortágua tomou a palavra para atacar diretamente o deputado comunista António Filipe – e associar o partido ao CDS, único outro partido contrário à despenalização. Disse que ambos fizeram o “discurso do medo”, associou o deputado a Cavaco Silva ou a Assunção Cristas, que se assumiram frontalmente contra. E até aos valores do CDS, falando de uma visão “determinada por Deus” – e acabando a citar Saramago.

Do lado do CDS, os argumentos emocionais começavam, minutos antes, de fora do Parlamento. O suspense sentia-se nas escadarias da Assembleia, onde várias centenas se juntavam para ouvir o testemunho de um doente com cancro. Falava em tom inflamado, a pequena multidão respondia de forma acesa. “Por favor não nos matem, queremos viver.” Os manifestantes pelo lado do “não”, que seguravam cartazes nos quais se lia, por exemplo, “por favor não matem os velhinhos”, irrompiam em aplausos. Mas este não era um protesto apolítico: logo atrás do palanque estava um grupo de deputados, à espera de falar. E entre eles Assunção Cristas, presidente do CDS – o partido que, desde que o tema começou a ser discutido, se mostrou intransigentemente contra a despenalização.

Fora do Parlamento, João Gonçalves Pereira, deputado centrista, subia ao palanque para assegurar: “Daqui a momentos irei exercer o meu direito de voto numa matéria em que o meu partido deu liberdade de voto e todos os nossos 18 deputados votarão contra”. Dentro do hemiciclo, a também centrista Isabel Galriça Neto argumentava contra “o homicídio a pedido”, completando: “Não há vidas que valem a pena ser vividas e outras não. Os bons fins nunca justificam maus meios”. E de novo falava de projetos particularmente definidores, que “confrontam de forma radical princípios estruturantes da nossa sociedade, alteram profundamente a atual dinâmica social”.

Pouco depois, era um deputado médico – tal como Galriça Neto -, o socialista António Sales, que se encarregava de responder. Tinha o juramento de Hipócrates na mão e lia excertos: “A saúde e bem-estar do meu doente serão as minhas primeiras preocupações”; “respeitarei a autonomia e a dignidade do meu doente”. E, recusando prolongar doenças que “humilham um ser consciente da sua condição”, arrancava aplausos também às bancadas do BE e do PAN. No PS, o deputado Alexandre Quintanilha era igualmente aplaudido por outras bancadas que não a sua, assumindo uma posição que falava a todos: "O diálogo entre os que olham para a vida humana como uma dádiva e os que a consideram um processo de construção e consolidação não é fácil".

Poesia e coração numa discussão emotiva

Não é todos os dias que se ouve poesia no Parlamento. Mas aconteceu ainda o debate desta tarde não ia longo. O citado foi Fernando Pessoa, através do heterónimo Alberto Caeiro, num verso que reza assim: “O único sentido autêntico das coisas é não terem sentido nenhum”. E o deputado socialista Bacelar Vasconcelos completou: “O único sentido da vida humana é aquele que cada um de nós, em consciência, lhe quiser atribuir”.

As discussões sobre o sentido da vida, os argumentos emotivos, os apelos a que os deputados pusessem “a mão no coração” ou a que não “traíssem o povo” marcaram um debate que foi forçosamente diferente do habitual: o que se discutia era a despenalização da eutanásia, matéria sobre a qual, assumiram todas as partes, não é fácil decidir e legislar. A forma civilizada como decorreu, com menos ataques do que é costume, acabou por merecer um elogio do presidente da Assembleia, Ferro Rodrigues.

A discussão foi “complexa”, como quase todas as bancadas concordaram, e dividiu os próprios partidos. A votação em si também: nada facilitou a tarefa a quem a acompanhava. Primeiro porque, a pedido do CDS, foi feita de forma uninominal, ou seja, à cabeça e não por bancadas, obrigando a que cada deputado se levantasse e dissesse como queria votar. Depois estavam em causa vários projetos (PS, PAN, BE e PEV), o que significou que tiveram de opinar sobre eventuais diferenças entre eles. E, por último, as contas ficaram até à última absolutamente partidas: uma mudança de opinião ou uma abstenção podia ser decisiva, algo passível de acontecer nos dois maiores grupos parlamentares – PSD e PS. Ambos deram liberdade de voto.

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