"Lembro-me de chegar ao museu e ouvir os meus passos ecoar nas salas vazias. Agora já se anda em ziguezague"

08-04-2017
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Em funções desde 2010, trouxe uma nova movida ao Museu Nacional de Arte Antiga. Polémico e desafiador, António Filipe Pimentel, 58 anos, conciliou a investigação e a conservação com a imprescindível comunicação e a gestão de um museu como uma marca. Uma conversa à volta do belo, e do que temos a ganhar em apreciá-lo.

Como vê a relação dos portugueses com a arte e com o património?

É uma espécie de uma relação bifuncional. Há uma nova geração mais educada, há muito mais coisas a acontecer, e o consumo da cultura vai-se tornando parte do mainstream e da vida quotidiana das pessoas. E depois há os que estão agora na reforma, muitas vezes com mais meios do que tinham quando eram jovens, que também têm mais tempo e disposição para usufruir da cultura. Há uma série de feixes que se estão a cruzar e a aproximar o País do primeiro mundo.

Para isso não faz falta uma disciplina como a história de arte obrigatória no ensino português, como existe por exemplo na Alemanha?

Com certeza que faz. O sistema de ensino é muito conservador, globalmente – não é apenas um problema português. Desse ponto de vista, é preciso adequar o sistema de ensino ao consumo cultural, e ele tem um papel fundamental na sociedade contemporânea até nos desafios com que está hoje confrontada. A cultura dá coesão social, a cultura tem em si a mensagem da paz. É um motor de estabelecimento ativo de pontes entre a diferença, por ser guardiã de uma herança múltipla.

Os museus são locais de encontro?

Não é por acaso que os museus são chamados de locus pacis, locais da paz ou locais sagrados, para encontro de toda a gente. Daí a destruição performativa do património cultural por exemplo em Palmira para consumo ocidental: o Daesh monta e encena tudo aquilo porque sabe que nos impressiona. Mas os museus são também locais de experiências individuais. Tive uma experiência engraçada uma vez em Serralves onde vi desembarcar uma excursão de pessoas de aldeia. Nitidamente era a excursão da paróquia, da terceira idade. Tornaram-se para mim o foco de interesse. Foi giríssimo, primeiro vinham um bocado como as ovelhas em rebanhos, encostadas umas às outras a medo. Diziam que aquilo não era para eles, era coisa para os filhos e para os netos. Mas a curiosidade matou o gato, e pouco a pouco começaram a dispersar, cada qual interessado na sua obra, as caras deles começaram a modificar-se e a apreciar. A próxima vez que virem algo do género já vão ter um sentimento de pertença em relação aquele tipo de obra.

A educação ajuda, porque as crianças passam a sentir as obras e o património como seu, a querer conhecê-lo, visitá-lo e valorizá-lo.

Mas tudo isto é complicado. Do lado da tutela política da cultura tenta- -se estimular a pedagogia e abrir os museus às escolas, mas pelo lado ministério da educação dificulta- -se a saída das escolas por questões económicas. Mas é a sociedade que tem de mudar, e a sociedade pressiona depois a regeneração das instituições.

Mas não são também os museus que têm de mudar? Muitas vezes entra-se num museu em Portugal e parece que tudo está feito só para entendidos: entra-se e sai-se e fica- -se na mesma. Não se enquadra nem acrescenta nada.

Sim, é o velho paradigma. O problema com os museus é que muitos passam um sentimento elitista: estruturas feitas como repositórios, panteões sagrados, em estado nalgumas vezes bastante negligenciado. Estruturas majestáticas que não pertencem às pessoas. Os museus têm de modernizar a sua comunicação, e nós estamos a fazê-lo a muitos níveis num paquiderme deste tamanho. Há uma espécie de cultura defensiva dos museus, é um ciclo vicioso. A sociedade acha que os museus são feitos para outros, para o tal grupo elitista que consegue descodificar o que está ali, e os museus também tendem a criar uma cultura contrária e a pensar que as pessoas que cá vêm são as que sabem, e as outras não querem saber e olham para isto como um boi para um palácio. E não é verdade, pelo contrário. Se a informação é bem passada as pessoas leem, querem saber.

As pessoas estão sequiosas de cultura?

Sim. Achei francamente extraordinário aqueles miúdos que tiraram os quadros da Coming Out [uma exposição do MNAA que trouxe réplicas de 31 quadros famosos para as ruas em 2015] e o levaram para a Margem Sul, para o Bairro do Laranjeiro. Eles, no fundo, quiseram apropriar-se da beleza, e disseram “nós também somos gente e também queremos ver arte nas ruas”. E o que achei mais graça, deve ser de Coimbra e achar graça à partida académica, um dos quadros que eles “deslocalizaram” estava na parede da PSP. Achei maravilhoso estarem horas à espera do momento certo para tirarem aquilo, tipo Arsène Lupin [gentleman ladrão, personagem do livro de Maurice Leblanc]! (risos) As pessoas têm de ter um sentimento de pertença em relação aos museus. Por isso é que o Churchill foi trazendo os quadros na National Gallery um a um durante a guerra dizendo “se não é por isto que nós lutamos, é porquê?”. A minha empregada, que era da Sibéria, sentia o Hermitage como o seu museu. Nunca lá tinha ido, mas era o grande museu russo e ela sentia-o como seu.

Comunicar e saber vender-se como uma marca, é tão importante hoje para um museu como conservar e saber expor?

Para comunicar uma marca a primeira coisa que tem de ter é a qualidade do produto. E a qualidade do produto no MNAA é o acervo mas também o projeto que faz sobre ele, e ser também um centro de conhecimento, de reflexão e de investigação. E depois é preciso ter ritmo. Adianta pouco fazer uma coisa com a qual se faz muito barulho e depois adormecer durante dois anos.

Diz que quer fazer no MNAA um desígnio nacional. Como?

A prova de que isso acontece foi a campanha “Vamos pôr o Sequeira no lugar Certo”, para comprar o quadro e trazê-lo para o MNAA. Foi uma espécie de censo indireto ao poder da marca MNAA, um case study muito interessante. Nunca tinha sido feita esta experiência e fui dissuadido o mais que pude por todas as almas sensatas deste País. Não sou teimoso nem obstinado, sou prudente. Só que eu sabia que havia probabilidade daquilo acontecer.

Mas foi um risco. Ninguém, fora de algumas elites, conhecia o Domingos Sequeira.

Havia uma esmagadora ignorância sobre o Sequeira, mas um espesso conhecimento entre alguns embaixadores que podiam falar dele. E a Adoração dos Magos é por si uma pintura maravilhosa. As pessoas perceberam que a arte é uma espécie de tónico. E estavam sedentas de uma mensagem otimista, uma coisa que era privada podia passar a ser de nós todos. Deu-lhes uma noção de poder. “Eu posso fazer algo com o meu euro”. O País envolveu-se de norte a sul. E a vida dá-nos lições incríveis. Quando estivemos na FIL a apresentar o projeto, um sem-abrigo foi lá dentro contribuir com uma moeda de um euro que alguém lhe tinha dado. É comovente.

Há uma campanha que está a decorrer agora e perdura até maio, muito mais pequena para angariar fundos para comprar o Retrato de D. Frei José Maria da Fonseca Évora. Qual é a ideia?

Esta é uma campanha mais pequena – as obras não se medem aos palmos nem aos preços, é evidente. Mas foi sobretudo para não deixar a chama morrer. Foi criada a chama de que todos somos mecenas. E foi aberta uma porta na qual todas as instituições culturais podem e devem entrar.

Os dois diretores anteriores tinham posturas aparentemente diferentes: um voltado para dentro, para a conservação e outro para fora, para a comunicação. A arte está em ficar algures no meio?

Não é no meio, a arte está em juntar tudo. Tenho toda a consideração pelos meus dois antecessores e amigos. A missão de um museu tem de ser salvaguardar o património que lhe está confiado, engrandecê-lo e comunicá-lo. Isso traz uma enorme vantagem para a marca Portugal, para afirmação do prestígio de Portugal até como destino turístico, porque as coleções de arte portuguesas são fundamentais para nos afirmarmos num ciclo de primeira grandeza. E é por isso que nós somos muitas vezes a sala de receções do País – a maior parte das grandes figuras e altos dignitários estrangeiros que nos visitam pedem para vir ao Museu.

A ex-ministra Gabriela Canavilhas disse que o escolheu porque tinha um espírito de gestor. Apressou-se em dizer que não era o homem da Regisconta. Não é importante gerir um museu como uma empresa?

Claro, um grande museu é hoje uma empresa. Está-se a gerir meios públicos com um orçamento para cumprir e cada cêntimo tem de ser rendibilizado, desde logo por uma obrigação ética. A questão é a da hierarquia dos valores. Tal como uma escola ou um hospital, um museu nunca poderá ter como objectivo servir uma atividade lucrativa. Deve ser uma questão meramente instrumental.

Quando chegou disse que encontrou uma casa conservada em formol.

O MNAA estava distanciado desta comunicação direta com as pessoas, e os públicos eram escassos. Era como se o Museu estivesse ali, numa prateleira dentro de um frasco. Quando cheguei, metia-me dentro de um táxi e dizia “é para o Museu Nacional de Arte Antiga” e muitos ainda perguntavam “ah, isso é para as janelas verdes, não é?”. Isso era uma coisa que me doía porque este é o primeiro museu nacional. Hoje já ninguém pergunta nada, seguem diretos para aqui.

As suas declarações sobre a possibilidade de uma calamidade no museu por falta de vigilância nas salas abertas ao público acabaram por se relevar premonitórias, como se viu há pouco tempo com o derrube da escultura do Arcanjo.

Não gosto de misturar as coisas. Os acidentes acontecem, mesmo que estivéssemos um maior nível de guardaria. Aquilo sucedeu porque o visitante se meteu a andar para trás para tirar uma fotografia. Mas vamos ter uma mudança vertiginosa, quando os chineses e os indianos começarem a chegar em massa dentro de dois ou três anos, como já está a acontecer em Espanha. Não estamos preparados para lidar com isso.

Espera um aumento de visitas significativo nos próximos anos?

Sim, sem dúvida. Lembro-me de chegar ao museu e ouvir os meus passos ecoar nas salas vazias. E pensava: “mas que raio, o que é que se passa, isto parece o jazigo dos benfeitores da Misericórdia?!”. Agora já se anda em ziguezague. Dobrámos os visitantes, a última exposição, a das obras em reserva, foi a que teve mais visitantes, mais de 80 mil.

Uma pergunta provocadora: os museus devem entrar no circuito do lifestyle, além do intelectual? Onde as pessoas vão porque faz parte e têm de ir?

Não gosto da ideia de moda que é fútil e efémera e o património deve ser o oposto. Mas os museus devem ser um agente ativo da nossa autoestima. Devemos sair com um ego reforçado, sentirmo-nos bem por vir, ver e aprender. Têm de fazer parte da sociedade informada.

Tem tempo para participar da construção das exposições?

Sim, não se decidem cores nem museografia sem mim. Proporciono-me esses momentos de volúpia! É aí que eu verdadeiramente me sinto mesmo a fazer museu.

Se fosse para uma ilha deserta e só pudesse levar três peças do museu, o que escolhia? Não pode dizer os Painéis de São Vicente nem as Tentações de Santo Antão.

Ai é muito difícil… Francamente é! Sinto-me um pouco como o pai das peças todas, sabe?

É como escolher entre filhos?

É mais ou menos isso, sim! (risos)

Em funções desde 2010, trouxe uma nova movida ao Museu Nacional de Arte Antiga. Polémico e desafiador, António Filipe Pimentel, 58 anos, conciliou a investigação e a conservação com a imprescindível comunicação e a gestão de um museu como uma marca. Uma conversa à volta do belo, e do que temos a ganhar em apreciá-lo.

Como vê a relação dos portugueses com a arte e com o património?

É uma espécie de uma relação bifuncional. Há uma nova geração mais educada, há muito mais coisas a acontecer, e o consumo da cultura vai-se tornando parte do mainstream e da vida quotidiana das pessoas. E depois há os que estão agora na reforma, muitas vezes com mais meios do que tinham quando eram jovens, que também têm mais tempo e disposição para usufruir da cultura. Há uma série de feixes que se estão a cruzar e a aproximar o País do primeiro mundo.

Para isso não faz falta uma disciplina como a história de arte obrigatória no ensino português, como existe por exemplo na Alemanha?

Com certeza que faz. O sistema de ensino é muito conservador, globalmente – não é apenas um problema português. Desse ponto de vista, é preciso adequar o sistema de ensino ao consumo cultural, e ele tem um papel fundamental na sociedade contemporânea até nos desafios com que está hoje confrontada. A cultura dá coesão social, a cultura tem em si a mensagem da paz. É um motor de estabelecimento ativo de pontes entre a diferença, por ser guardiã de uma herança múltipla.

Os museus são locais de encontro?

Não é por acaso que os museus são chamados de locus pacis, locais da paz ou locais sagrados, para encontro de toda a gente. Daí a destruição performativa do património cultural por exemplo em Palmira para consumo ocidental: o Daesh monta e encena tudo aquilo porque sabe que nos impressiona. Mas os museus são também locais de experiências individuais. Tive uma experiência engraçada uma vez em Serralves onde vi desembarcar uma excursão de pessoas de aldeia. Nitidamente era a excursão da paróquia, da terceira idade. Tornaram-se para mim o foco de interesse. Foi giríssimo, primeiro vinham um bocado como as ovelhas em rebanhos, encostadas umas às outras a medo. Diziam que aquilo não era para eles, era coisa para os filhos e para os netos. Mas a curiosidade matou o gato, e pouco a pouco começaram a dispersar, cada qual interessado na sua obra, as caras deles começaram a modificar-se e a apreciar. A próxima vez que virem algo do género já vão ter um sentimento de pertença em relação aquele tipo de obra.

A educação ajuda, porque as crianças passam a sentir as obras e o património como seu, a querer conhecê-lo, visitá-lo e valorizá-lo.

Mas tudo isto é complicado. Do lado da tutela política da cultura tenta- -se estimular a pedagogia e abrir os museus às escolas, mas pelo lado ministério da educação dificulta- -se a saída das escolas por questões económicas. Mas é a sociedade que tem de mudar, e a sociedade pressiona depois a regeneração das instituições.

Mas não são também os museus que têm de mudar? Muitas vezes entra-se num museu em Portugal e parece que tudo está feito só para entendidos: entra-se e sai-se e fica- -se na mesma. Não se enquadra nem acrescenta nada.

Sim, é o velho paradigma. O problema com os museus é que muitos passam um sentimento elitista: estruturas feitas como repositórios, panteões sagrados, em estado nalgumas vezes bastante negligenciado. Estruturas majestáticas que não pertencem às pessoas. Os museus têm de modernizar a sua comunicação, e nós estamos a fazê-lo a muitos níveis num paquiderme deste tamanho. Há uma espécie de cultura defensiva dos museus, é um ciclo vicioso. A sociedade acha que os museus são feitos para outros, para o tal grupo elitista que consegue descodificar o que está ali, e os museus também tendem a criar uma cultura contrária e a pensar que as pessoas que cá vêm são as que sabem, e as outras não querem saber e olham para isto como um boi para um palácio. E não é verdade, pelo contrário. Se a informação é bem passada as pessoas leem, querem saber.

As pessoas estão sequiosas de cultura?

Sim. Achei francamente extraordinário aqueles miúdos que tiraram os quadros da Coming Out [uma exposição do MNAA que trouxe réplicas de 31 quadros famosos para as ruas em 2015] e o levaram para a Margem Sul, para o Bairro do Laranjeiro. Eles, no fundo, quiseram apropriar-se da beleza, e disseram “nós também somos gente e também queremos ver arte nas ruas”. E o que achei mais graça, deve ser de Coimbra e achar graça à partida académica, um dos quadros que eles “deslocalizaram” estava na parede da PSP. Achei maravilhoso estarem horas à espera do momento certo para tirarem aquilo, tipo Arsène Lupin [gentleman ladrão, personagem do livro de Maurice Leblanc]! (risos) As pessoas têm de ter um sentimento de pertença em relação aos museus. Por isso é que o Churchill foi trazendo os quadros na National Gallery um a um durante a guerra dizendo “se não é por isto que nós lutamos, é porquê?”. A minha empregada, que era da Sibéria, sentia o Hermitage como o seu museu. Nunca lá tinha ido, mas era o grande museu russo e ela sentia-o como seu.

Comunicar e saber vender-se como uma marca, é tão importante hoje para um museu como conservar e saber expor?

Para comunicar uma marca a primeira coisa que tem de ter é a qualidade do produto. E a qualidade do produto no MNAA é o acervo mas também o projeto que faz sobre ele, e ser também um centro de conhecimento, de reflexão e de investigação. E depois é preciso ter ritmo. Adianta pouco fazer uma coisa com a qual se faz muito barulho e depois adormecer durante dois anos.

Diz que quer fazer no MNAA um desígnio nacional. Como?

A prova de que isso acontece foi a campanha “Vamos pôr o Sequeira no lugar Certo”, para comprar o quadro e trazê-lo para o MNAA. Foi uma espécie de censo indireto ao poder da marca MNAA, um case study muito interessante. Nunca tinha sido feita esta experiência e fui dissuadido o mais que pude por todas as almas sensatas deste País. Não sou teimoso nem obstinado, sou prudente. Só que eu sabia que havia probabilidade daquilo acontecer.

Mas foi um risco. Ninguém, fora de algumas elites, conhecia o Domingos Sequeira.

Havia uma esmagadora ignorância sobre o Sequeira, mas um espesso conhecimento entre alguns embaixadores que podiam falar dele. E a Adoração dos Magos é por si uma pintura maravilhosa. As pessoas perceberam que a arte é uma espécie de tónico. E estavam sedentas de uma mensagem otimista, uma coisa que era privada podia passar a ser de nós todos. Deu-lhes uma noção de poder. “Eu posso fazer algo com o meu euro”. O País envolveu-se de norte a sul. E a vida dá-nos lições incríveis. Quando estivemos na FIL a apresentar o projeto, um sem-abrigo foi lá dentro contribuir com uma moeda de um euro que alguém lhe tinha dado. É comovente.

Há uma campanha que está a decorrer agora e perdura até maio, muito mais pequena para angariar fundos para comprar o Retrato de D. Frei José Maria da Fonseca Évora. Qual é a ideia?

Esta é uma campanha mais pequena – as obras não se medem aos palmos nem aos preços, é evidente. Mas foi sobretudo para não deixar a chama morrer. Foi criada a chama de que todos somos mecenas. E foi aberta uma porta na qual todas as instituições culturais podem e devem entrar.

Os dois diretores anteriores tinham posturas aparentemente diferentes: um voltado para dentro, para a conservação e outro para fora, para a comunicação. A arte está em ficar algures no meio?

Não é no meio, a arte está em juntar tudo. Tenho toda a consideração pelos meus dois antecessores e amigos. A missão de um museu tem de ser salvaguardar o património que lhe está confiado, engrandecê-lo e comunicá-lo. Isso traz uma enorme vantagem para a marca Portugal, para afirmação do prestígio de Portugal até como destino turístico, porque as coleções de arte portuguesas são fundamentais para nos afirmarmos num ciclo de primeira grandeza. E é por isso que nós somos muitas vezes a sala de receções do País – a maior parte das grandes figuras e altos dignitários estrangeiros que nos visitam pedem para vir ao Museu.

A ex-ministra Gabriela Canavilhas disse que o escolheu porque tinha um espírito de gestor. Apressou-se em dizer que não era o homem da Regisconta. Não é importante gerir um museu como uma empresa?

Claro, um grande museu é hoje uma empresa. Está-se a gerir meios públicos com um orçamento para cumprir e cada cêntimo tem de ser rendibilizado, desde logo por uma obrigação ética. A questão é a da hierarquia dos valores. Tal como uma escola ou um hospital, um museu nunca poderá ter como objectivo servir uma atividade lucrativa. Deve ser uma questão meramente instrumental.

Quando chegou disse que encontrou uma casa conservada em formol.

O MNAA estava distanciado desta comunicação direta com as pessoas, e os públicos eram escassos. Era como se o Museu estivesse ali, numa prateleira dentro de um frasco. Quando cheguei, metia-me dentro de um táxi e dizia “é para o Museu Nacional de Arte Antiga” e muitos ainda perguntavam “ah, isso é para as janelas verdes, não é?”. Isso era uma coisa que me doía porque este é o primeiro museu nacional. Hoje já ninguém pergunta nada, seguem diretos para aqui.

As suas declarações sobre a possibilidade de uma calamidade no museu por falta de vigilância nas salas abertas ao público acabaram por se relevar premonitórias, como se viu há pouco tempo com o derrube da escultura do Arcanjo.

Não gosto de misturar as coisas. Os acidentes acontecem, mesmo que estivéssemos um maior nível de guardaria. Aquilo sucedeu porque o visitante se meteu a andar para trás para tirar uma fotografia. Mas vamos ter uma mudança vertiginosa, quando os chineses e os indianos começarem a chegar em massa dentro de dois ou três anos, como já está a acontecer em Espanha. Não estamos preparados para lidar com isso.

Espera um aumento de visitas significativo nos próximos anos?

Sim, sem dúvida. Lembro-me de chegar ao museu e ouvir os meus passos ecoar nas salas vazias. E pensava: “mas que raio, o que é que se passa, isto parece o jazigo dos benfeitores da Misericórdia?!”. Agora já se anda em ziguezague. Dobrámos os visitantes, a última exposição, a das obras em reserva, foi a que teve mais visitantes, mais de 80 mil.

Uma pergunta provocadora: os museus devem entrar no circuito do lifestyle, além do intelectual? Onde as pessoas vão porque faz parte e têm de ir?

Não gosto da ideia de moda que é fútil e efémera e o património deve ser o oposto. Mas os museus devem ser um agente ativo da nossa autoestima. Devemos sair com um ego reforçado, sentirmo-nos bem por vir, ver e aprender. Têm de fazer parte da sociedade informada.

Tem tempo para participar da construção das exposições?

Sim, não se decidem cores nem museografia sem mim. Proporciono-me esses momentos de volúpia! É aí que eu verdadeiramente me sinto mesmo a fazer museu.

Se fosse para uma ilha deserta e só pudesse levar três peças do museu, o que escolhia? Não pode dizer os Painéis de São Vicente nem as Tentações de Santo Antão.

Ai é muito difícil… Francamente é! Sinto-me um pouco como o pai das peças todas, sabe?

É como escolher entre filhos?

É mais ou menos isso, sim! (risos)

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