O congresso dos leopardos

13-06-2016
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O congresso dos leopardos

Francisco Mendes da Silva | 07 Junho 2016, 20:12

A minha imagem favorita de António Costa está numas fotografias que há cerca de um ano o apanharam na apresentação de "Uma Década para Portugal", o relatório do grupo liderado por Mário Centeno que preparou o programa económico com que o PS se apresentou às legislativas.

Costa, sentando na primeira fila, folheia o documento com um rosto de curiosidade distante, de quem está pela primeira vez a tomar conhecimento do seu conteúdo, no qual aliás não deposita uma confiança exagerada.

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Porventura, a minha percepção está errada: como é óbvio, ela é comandada pela crueldade daquela exacta fracção fotográfica. Mas, de facto, a imagem ilustra a ideia que tenho do actual primeiro-ministro - um político guiado essencialmente pelas circunstâncias, que recorre a planos decenais para dar coerência e respeitabilidade aos discursos, mas demasiado ciente da imprevisibilidade do mundo para se deixar acorrentar a eles. Costa é mais prático do que sistemático, mais pragmático do que programático. Com tudo o que isso tem de prudência e realismo. Com tudo o que isso pode comportar de displicência e cinismo.

O PS entreteve-se no congresso deste fim-de-semana a legitimar a "geringonça". Os militantes celebraram-na nos discursos, os independentes debateram a sua oportunidade intelectual, os comentadores não falaram de outra coisa (Estado social, social-democracia, europeísmo, centrismo, etc.). O líder deve ter assistido ao espectáculo com aquele seu proverbial desapego pelas grandes narrativas. António Costa não esquece que a "geringonça" é o resultado do choque existencial que o PS sentiu nas legislativas, quando percebeu que é possível que o PSD e o CDS, juntos, mesmo com a popularidade em baixo, vençam por regra, dada a distribuição territorial vantajosa do seu eleitorado e o favorecimento das coligações propiciado pelo método de Hondt. Para sobreviver, o PS teria de inutilizar, em vez de ratificar, a vitória da direita.

A união das esquerdas que nos governa não tem, pois, grande substrato ideológico. Qualquer tentativa de a intelectualizar, de a enquadrar em grandes movimentos, é um exercício rebuscado um pouco embaraçoso. Ela é, tão-só, um expediente de obtenção do poder. E é por isso que os críticos internos de António Costa são cada vez mais um bem escasso, como se viu no congresso. Não é preciso ter lido "O Leopardo" de Lampedusa (ou visto o de Visconti) para saber que mais rapidamente alguém se afeiçoa a tempos políticos novos por causa da promessa de poder do que pelo apelo intelectual da novidade.

Talvez Francisco Assis tenha razão quando alerta para o radicalismo que se insinua no PS. Talvez Sousa Pinto tenha razão quando põe aquele ar blasé de enfado (que aprecio) de quem se viu de repente na obrigação de abrir a porta de casa aos bárbaros. Na verdade, porém, há momentos de discurso mais cortante em que não sabemos se o primeiro-ministro sente o que diz ou se se limita a dar conforto aos ouvidos do BE e do PCP, para aguentar as fundações do poder. Por exemplo, no discurso de encerramento do congresso, onde muita gente ouviu um raspanete à União Europeia, eu escutei apenas uma converseta táctica de circunstância. Ao dizer que deseja uma relação com a Europa "sem submissão nem bravatas", Costa não disse realmente nada, tentando apenas justificar o apoio da esquerda sem de facto se comprometer com o que quer que seja.

Foi assim que António Costa montou a "geringonça". Com as regalias do poder atrelou o PS, com a ilusão da retórica atrelou o resto.

Advogado

O congresso dos leopardos

Francisco Mendes da Silva | 07 Junho 2016, 20:12

A minha imagem favorita de António Costa está numas fotografias que há cerca de um ano o apanharam na apresentação de "Uma Década para Portugal", o relatório do grupo liderado por Mário Centeno que preparou o programa económico com que o PS se apresentou às legislativas.

Costa, sentando na primeira fila, folheia o documento com um rosto de curiosidade distante, de quem está pela primeira vez a tomar conhecimento do seu conteúdo, no qual aliás não deposita uma confiança exagerada.

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Porventura, a minha percepção está errada: como é óbvio, ela é comandada pela crueldade daquela exacta fracção fotográfica. Mas, de facto, a imagem ilustra a ideia que tenho do actual primeiro-ministro - um político guiado essencialmente pelas circunstâncias, que recorre a planos decenais para dar coerência e respeitabilidade aos discursos, mas demasiado ciente da imprevisibilidade do mundo para se deixar acorrentar a eles. Costa é mais prático do que sistemático, mais pragmático do que programático. Com tudo o que isso tem de prudência e realismo. Com tudo o que isso pode comportar de displicência e cinismo.

O PS entreteve-se no congresso deste fim-de-semana a legitimar a "geringonça". Os militantes celebraram-na nos discursos, os independentes debateram a sua oportunidade intelectual, os comentadores não falaram de outra coisa (Estado social, social-democracia, europeísmo, centrismo, etc.). O líder deve ter assistido ao espectáculo com aquele seu proverbial desapego pelas grandes narrativas. António Costa não esquece que a "geringonça" é o resultado do choque existencial que o PS sentiu nas legislativas, quando percebeu que é possível que o PSD e o CDS, juntos, mesmo com a popularidade em baixo, vençam por regra, dada a distribuição territorial vantajosa do seu eleitorado e o favorecimento das coligações propiciado pelo método de Hondt. Para sobreviver, o PS teria de inutilizar, em vez de ratificar, a vitória da direita.

A união das esquerdas que nos governa não tem, pois, grande substrato ideológico. Qualquer tentativa de a intelectualizar, de a enquadrar em grandes movimentos, é um exercício rebuscado um pouco embaraçoso. Ela é, tão-só, um expediente de obtenção do poder. E é por isso que os críticos internos de António Costa são cada vez mais um bem escasso, como se viu no congresso. Não é preciso ter lido "O Leopardo" de Lampedusa (ou visto o de Visconti) para saber que mais rapidamente alguém se afeiçoa a tempos políticos novos por causa da promessa de poder do que pelo apelo intelectual da novidade.

Talvez Francisco Assis tenha razão quando alerta para o radicalismo que se insinua no PS. Talvez Sousa Pinto tenha razão quando põe aquele ar blasé de enfado (que aprecio) de quem se viu de repente na obrigação de abrir a porta de casa aos bárbaros. Na verdade, porém, há momentos de discurso mais cortante em que não sabemos se o primeiro-ministro sente o que diz ou se se limita a dar conforto aos ouvidos do BE e do PCP, para aguentar as fundações do poder. Por exemplo, no discurso de encerramento do congresso, onde muita gente ouviu um raspanete à União Europeia, eu escutei apenas uma converseta táctica de circunstância. Ao dizer que deseja uma relação com a Europa "sem submissão nem bravatas", Costa não disse realmente nada, tentando apenas justificar o apoio da esquerda sem de facto se comprometer com o que quer que seja.

Foi assim que António Costa montou a "geringonça". Com as regalias do poder atrelou o PS, com a ilusão da retórica atrelou o resto.

Advogado

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